terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Crônica do dia - Sal a gosto - Joaquim Ferreira dos Santos


Saber que o mundo vai acabar melhora os planos para 2012

 Eu já estive em outros fins de mundo, como esse que mais uma vez se anuncia para 2012, e não quero ser estraga-prazeres. É frustrante. Você fica de olho no céu esperando que uma bola de fogo saia como uma erupção da base da estátua do Redentor, e, lá pelas três da madrugada, percebe morto de sono que não vai acontecer nada. Você está vivo. Eu não compraria ingresso para o show do fim do mundo de 2012. O Senhor dos Raios, responsável em pôr termo à essa nossa civilização chinfrim, sempre dá uma de João Gilberto. O Cara simplesmente não comparece.
 Foi assim nos anos 1970, quando uma multidão de hippies acampou em Saquarema, alertada para mais um fim dos tempos. Eu estava lá. Mais uma vez não vi. 
 Anunciava-se o evento, como se fosse um show do Vímana, o Pink Floyd carioca, pelo jornal “Flor do Mal”. Astrólogos garantiam a aterrissagem de uma esquadrilha de discos voadores. Eles trariam a arma definitiva que nos libertaria desse inútil sofrimento terráqueo. Seriam os novos deuses, fariam a faxina necessária para implantar em seguida uma raça mais viajandona, que não se amarrasse em dinheiro, não, mas na vida em grupo, na paz e no amor, bicho, que eram os mitos de felicidade nos 1970. Era a década do desbunde. Drogas por todos os lados. A comunidade dos Novos Baianos em Jacarepaguá, da mesma maneira que a Apple hoje no Vale do Silício, anunciava aquele modo de vida como o futuro da civilização. Todos os hippies de Rio e São Paulo foram para o descampado em Saquarema, uma pista perfeita para a chegada dos discos. Os tripulantes das naves, continuava a revista “Planeta”, exterminariam os ditadores da época, transformariam em vapor branco os fumadores de maconha e colocariam no poder uma nova ordem mundial. Namorou- se muito na noite de Saquarema, apertouse de tudo, mas o fim do mundo que estava na conclamação deu uma de João — alegou falta de gasolina nos motores dos discos, fumaça demais dificultando a visão do pouso, não me lembro —, e o fim do mundo mais uma vez não aconteceu.
 A ideia de que vai acabar e não ficará Redentor sobre a montanha, tudo tão rápido que não dará tempo sequer de digitar os 140 toques no Twitter com a maior notícia de todos os tempos desde a Criação — a possibilidade de fim do mundo para 2012 — não é necessariamente apavorante. Pode criar uma ânsia especulativa, de saber se com uma praga de gafanhotos ou um tsunami que encheria o Rebouças de polvos famintos. De resto, resolveria os inevitáveis planos do que se fazer com os próximos dias. 
 Eu, mais crédulo fosse com a possibilidade de que desta vez acaba mesmo, descompromissarme- ia com a necessidade da prosa elegante e chafudar- me-ia no pântano, na pocilga dessas delícias vagabundas que a língua oferece ao riso vernacular. Em seguida, dormiria tranquilo, pois antes de ler o jornal, antes de fazer a crítica da edição me esculhambando o estilo, o ombudsman estaria devorado pelas mesmas centopeias incandescentes, todas malignamente polissílabas, que surgiriam das frestas dos terremotos e exterminariam esses pruridos linguísticos e seus xerifes. 
 Todo mundo que brinca o carnaval sabe que o melhor dos dias é a terça-feira, chacoalhado pelo grito de “é hoje só, amanhã não tem mais”. O fim do mundo, previsto para amanhã, desencuca a humanidade para 2012. Todos poderão se dedicar ao que interessa a cada um. Chegar ao futuro com a biografia escorreita está fora do projeto porque, ficou claro agora, os punks estavam certos quando pichavam os muros com o “No future”. 
 O mundo acabou, já sinto a eletricidade dos raios cruzando a camada de ozônio e começando a esquentar os miolos humanos. A energia liberada pelos raios aumentará centenas de vezes o tamanho dos besouros da Floresta da Tijuca, que serão os novos senhores da Terra. Não haverá onde se esconder. Os próximos minutos serão os mais sinceros da vida de todos. A hora da verdade, a vida como deveria ser na receita fundamental que o grande Chef escreveu, mas ninguém praticou. Sal a gosto, minha gente. 
 Andar nu? Colocar os cotovelos sobre a mesa? Dizer umas verdades ao chefe? Pela primeira vez, seus atos não serão medidos pelas consequências sociais, mas pelo que lhe aprouver a deliciosa e nunca priorizada argumentação dos sentidos. Leia na minha camisa: “Relaxa, bebê”. 
 Eu só quero lembrar mais uma vez que o João Gilberto dos raios, tsunamis e pragas de gafanhoto prometeu o mesmo show dezenas de outras vezes e, como de costume, não compareceu. Carmen Miranda cantou um fim do mundo desses, já na década de 1930, e já que não haveria amanhã com sua moralidade careta, ela saiu beijando a boca de quem não devia, dançou o samba em traje de maiô, e o tal do mundo não se acabou. 
 Eu sou um jornalista. Tenho por princípio de solidariedade e sobrevivência acreditar nas coisas publicadas no mesmo papel que divulga meus dribles de letra. Li que o mundo acaba, confirmando previsões seculares dos maias. Acredito. Não há mais com o que se preocupar. A todos o mesmo destino, corra-se os 7km em volta da Lagoa ou enferruje- se o colesterol sentado vendo uma maratona de “The mentalist” na TV. Não imitarei Carmen. Beijarei a mesma boca de sempre, mas tocarei meus dias com desapego e estresse zero. Desde já, perdoem as vírgulas desparagonadas. A obrigação de escrever com estilo a grande crônica do ano está com o Senhor dos condões. 
 Ele mandará bolas de fogo, ele apagará as luzes da árvore da Lagoa com uma ventania de areia do deserto, fará chover gafanhotos, ele escolherá o fecho de ouro. Não há como concorrer com tão terrível Escritor. Desestressado, verbos na contramão da ordem, certo de que os e-mails de crítica não terão tempo de alcançar minha caixa postal, eu espero apenas o apagar das luzes. O ano em que o João Gilberto Divino promete o mais desafinado de seus shows. 
 Que venha 2012 — se é que, nesta primeira segunda-feira, ele já não acabou.

Jornal O Globo 

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