quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Te Contei, não ? - A multiplicação dos Santos - Marcelo Bortoloti



A descoberta no Peru de uma peça atribuída a Aleijadinho aprofunda o mistério sobre o mestre do barroco brasileiro

 A biografia de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, mestre do barroco brasileiro, está re­pleta de pontos obscuros. Foi fruto do relacionamento de uma escrava com um arquiteto e mestre de obras. Se­gundo os historiadores, seu nascimento pode ter ocorrido tanto em 1730 como em 1738. Não há consenso nem sobre a natureza da doença que o impediu de trabalhar perto de morrer, aos estima­dos 80 anos. Dono de talento ímpar pa­ra entalhar em santos, anjos e profetas os traços do brasileiro comum, o escul­tor chegou a comandar uma oficina com. mais de uma dezena de auxiliares. Mas nunca assinava as peças, e nem elas fo­ram documentadas, eternizando um mistério até agora insolúvel: Aleijadi­nho é o artista do período colonial a quem mais se atribuem obras cuja auto­ria não pode ser certificada além da dú­vida. O anúncio recente de que seria de sua lavra a cabeça encaixada no corpo de um santo de uma igreja de Cuzco, no Pe­ru, aprofundou o mistério. A cabeça, en­contrada por um antiquário paulista em férias naquele país, seria a primeira obra do mestre mineiro a ter viajado incógnita para fora do Brasil. “Essa história não faz sentido”, diz Olinto Rodrigues, téc­nico do Instituto do Patrimônio Históri­co e Artístico Nacional (Iphan) e um dos autores do mais rigoroso catálogo sobre a produção do escultor mineiro. 

 O antiquário que descobriu a peça em Cuzco, Marcelo Coimbra, acaba de publicar, em parceria com o advogado e historiador Márcio Jardim, um compên­dio que atribui a Aleijadinho a autoria de 486 esculturas. O Iphan só reconhe­ce oficialmente 163. Coimbra alega que a lista do instituto, produzida em 1951, está defasada: “Para alguém que fez das imagens sacras seu ganha-pão por tan­tos anos, são até poucas as obras. De­vem aparecer ainda umas 200″. Ele ar­gumenta que boa parte das peças do seu livro integra coleções particulares a que a maioria dos pesquisadores oficiais não teve acesso. Não é bem assim. A maior parte dessas peças pertence ao empresário Renato Whitaker. Das 52 obras de Whitaker, apenas quatro são reconhecidas como autênticas por espe­cialistas do Iphan. As argumentações de Coimbra se enfraquecem ainda mais pela inclusão na sua lista de obras que mesmo um leigo apontaria como falsa­mente atribuídas a Aleijadinho. Entre elas, a contrafação mais flagrante é um São Manuel balofo que em nada lembra o talhe anatômico e econômico das obras do escultor mineiro. 

Aleijadinho passou a ocupar posi­ção central na cultura brasileira nos anos 1920, celebrado pelo modernismo como o herói mestiço com os olhos amendoados e cabelos cacheados de suas esculturas que melhor represen­tava os valores nacionalistas. Na dé­cada de 50, seu nome ganhou projeção mundial por influência do francês Gennain Bazin, conservador do Museu do Louvre, que considerava o mineiro representante máximo de um barroco que teria eclodido apenas no Brasil. Data desse período o catálogo oficial de Aleijadinho produzido pelo Iphan. As expedições dos técnicos a arquivos de igrejas, conventos e órgãos públicos localizaram comprovantes de paga­mento a Antônio Francisco Lisboa de duas imagens de uma igreja de Sabará e de todo o conjunto de esculturas do santuário de Congonhas do Campo, a famosa coleção dos profetas entalhados em pedra-sabão. As demais obras de Aleijadinho foram autenticadas com base em análises comparativas. Desde a publicação do catálogo do Iphan, a produção de Aleijadinho se valorizou no mesmo ritmo da multiplicação de obras atribuídas a ele no mercado de artes nacional. Embora sejam raros os casos de peças suas vendidas no exte­rior – a última de que se tem notícia foi leiloada pela casa inglesa Christie’s por 380000 dólares em 1998 -, um Aleijadinho autêntico tem alto valor e liquidez imediata no mercado. O pro­blema é justamente garantir a autentici­dade. O único órgão habilitado para is­so, o Iphan, raramente aceita analisar obras, muito menos contratar peritos para autenticar esculturas. Uma das ra­ras ocasiões em que o instituto exami­nou uma peça ocorreu em 2006. O Iphan não teve escolha. Foi obrigado a isso por uma decisão judicial. O laudo pericial resultante da ordem judicial descreveu a peça como uma falsifica­ção grosseira. Era a imagem de um soldado romano que fora colocada à venda por I milhão de dólares por um marchand de Embu das Artes, em São Pau­lo. Para chegar à sua conclusão, o Iphan contou com a ajuda de um laboratório da Universidade Federal de Minas Ge­rais capaz de identificar o tipo de tinta, a madeira e até as ferramentas usadas pelo escultor. São técnicas tão avança­das quanto as utilizadas pela fundação holandesa que, desde os anos 1970, vem examinando os quadros atribuídos a Rembrandt (1606-1669), talvez o maior pintor de todos os tempos. Caiu de 600 para 250 o número de telas comprovadamente pintadas por Rembrandt. Falsário,tremei!

Nenhum comentário:

Postar um comentário