A descoberta no Peru de uma peça atribuída a Aleijadinho aprofunda o mistério sobre o mestre do barroco brasileiro
A biografia de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, mestre do barroco brasileiro, está repleta de pontos obscuros. Foi fruto do relacionamento de uma escrava com um arquiteto e mestre de obras. Segundo os historiadores, seu nascimento pode ter ocorrido tanto em 1730 como em 1738. Não há consenso nem sobre a natureza da doença que o impediu de trabalhar perto de morrer, aos estimados 80 anos. Dono de talento ímpar para entalhar em santos, anjos e profetas os traços do brasileiro comum, o escultor chegou a comandar uma oficina com. mais de uma dezena de auxiliares. Mas nunca assinava as peças, e nem elas foram documentadas, eternizando um mistério até agora insolúvel: Aleijadinho é o artista do período colonial a quem mais se atribuem obras cuja autoria não pode ser certificada além da dúvida. O anúncio recente de que seria de sua lavra a cabeça encaixada no corpo de um santo de uma igreja de Cuzco, no Peru, aprofundou o mistério. A cabeça, encontrada por um antiquário paulista em férias naquele país, seria a primeira obra do mestre mineiro a ter viajado incógnita para fora do Brasil. “Essa história não faz sentido”, diz Olinto Rodrigues, técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e um dos autores do mais rigoroso catálogo sobre a produção do escultor mineiro.
O antiquário que descobriu a peça em Cuzco, Marcelo Coimbra, acaba de publicar, em parceria com o advogado e historiador Márcio Jardim, um compêndio que atribui a Aleijadinho a autoria de 486 esculturas. O Iphan só reconhece oficialmente 163. Coimbra alega que a lista do instituto, produzida em 1951, está defasada: “Para alguém que fez das imagens sacras seu ganha-pão por tantos anos, são até poucas as obras. Devem aparecer ainda umas 200″. Ele argumenta que boa parte das peças do seu livro integra coleções particulares a que a maioria dos pesquisadores oficiais não teve acesso. Não é bem assim. A maior parte dessas peças pertence ao empresário Renato Whitaker. Das 52 obras de Whitaker, apenas quatro são reconhecidas como autênticas por especialistas do Iphan. As argumentações de Coimbra se enfraquecem ainda mais pela inclusão na sua lista de obras que mesmo um leigo apontaria como falsamente atribuídas a Aleijadinho. Entre elas, a contrafação mais flagrante é um São Manuel balofo que em nada lembra o talhe anatômico e econômico das obras do escultor mineiro.
Aleijadinho passou a ocupar posição central na cultura brasileira nos anos 1920, celebrado pelo modernismo como o herói mestiço com os olhos amendoados e cabelos cacheados de suas esculturas que melhor representava os valores nacionalistas. Na década de 50, seu nome ganhou projeção mundial por influência do francês Gennain Bazin, conservador do Museu do Louvre, que considerava o mineiro representante máximo de um barroco que teria eclodido apenas no Brasil. Data desse período o catálogo oficial de Aleijadinho produzido pelo Iphan. As expedições dos técnicos a arquivos de igrejas, conventos e órgãos públicos localizaram comprovantes de pagamento a Antônio Francisco Lisboa de duas imagens de uma igreja de Sabará e de todo o conjunto de esculturas do santuário de Congonhas do Campo, a famosa coleção dos profetas entalhados em pedra-sabão. As demais obras de Aleijadinho foram autenticadas com base em análises comparativas. Desde a publicação do catálogo do Iphan, a produção de Aleijadinho se valorizou no mesmo ritmo da multiplicação de obras atribuídas a ele no mercado de artes nacional. Embora sejam raros os casos de peças suas vendidas no exterior – a última de que se tem notícia foi leiloada pela casa inglesa Christie’s por 380000 dólares em 1998 -, um Aleijadinho autêntico tem alto valor e liquidez imediata no mercado. O problema é justamente garantir a autenticidade. O único órgão habilitado para isso, o Iphan, raramente aceita analisar obras, muito menos contratar peritos para autenticar esculturas. Uma das raras ocasiões em que o instituto examinou uma peça ocorreu em 2006. O Iphan não teve escolha. Foi obrigado a isso por uma decisão judicial. O laudo pericial resultante da ordem judicial descreveu a peça como uma falsificação grosseira. Era a imagem de um soldado romano que fora colocada à venda por I milhão de dólares por um marchand de Embu das Artes, em São Paulo. Para chegar à sua conclusão, o Iphan contou com a ajuda de um laboratório da Universidade Federal de Minas Gerais capaz de identificar o tipo de tinta, a madeira e até as ferramentas usadas pelo escultor. São técnicas tão avançadas quanto as utilizadas pela fundação holandesa que, desde os anos 1970, vem examinando os quadros atribuídos a Rembrandt (1606-1669), talvez o maior pintor de todos os tempos. Caiu de 600 para 250 o número de telas comprovadamente pintadas por Rembrandt. Falsário,tremei!
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