Revista Época - 09/01/2012
Na mesma região onde 900 pessoas morreram no ano passado, as vítimas das enchentes sabem que a culpa não é só da natureza
No livro de Jó, um dos mais belos e dramáticos da Bíblia, um homem temente a Deus perde fortuna, saúde e dinheiro por interferência de Satanás. Na foto ao lado, a dona de casa Conceni Florindo, de 38 anos, olha para o vazio depois de um turbilhão de tribulações. Há sete anos ela vem construindo o imóvel de dois andares que aparece ao fundo na foto. A casa fica na Rua José Pedro Goreti, em Nova Friburgo, a 150 quilômetros do Rio de Janeiro. É um lugar bucólico, entre um córrego e uma montanha repleta de verde. A temperatura média anual é de 16 graus, um convite para atividades ao ar livre. Ali, as crianças brincavam sem preocupação, ao som dos canários-da-terra que habitam a mata. Hoje, o lugar parece uma cidade fantasma. Por dois anos seguidos, o bairro de Córrego Dantas foi devastado pela chuva. A primeira vez foi em janeiro do ano passado, quando pelo menos 900 pessoas morreram na região serrana do Rio, numa das maiores tragédias naturais da história brasileira. O pequeno córrego que deu o nome ao povoado e trouxe os primeiros moradores virou um caudaloso rio. Parte da montanha veio abaixo. A beleza natural que era seu maior atrativo foi também a causa da tragédia: espremida entre o riacho e a montanha, a rua foi engolida pela água. Só a última residência, no fim da Pedro Goreti, ainda tem uma família. É de lá que Conceni olha o cenário devastado, pedindo aos céus não só a proteção de Deus, mas também uma trégua na chuva que caiu durante a semana inteira, matando sete pessoas e deixando 44 mil desabrigados no Rio de Janeiro e em Minas Gerais.
Na Bíblia, Jó se questiona sobre quem seria o culpado das desventuras de sua vida. As vítimas das enchentes, como Conceni, sabem que a natureza não é a única culpada por seus infortúnios – no caso, as chuvas que, pelo segundo ano consecutivo, castigaram a região serrana do Rio de Janeiro. E que, ao longo da semana, provocaram morte e destruição também nos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo. As razões do que aconteceu a Conceni e a vários outros moradores da região são complexas – entre elas, o loteamento das verbas federais usando critérios mais políticos do que planejamento ou pareceres técnicos (leia a respeito no início na seção Opinião). A isso se soma a corrupção pura e simples. O resultado dessa conta perversa é o que se viu na semana passada. O raio caiu duas vezes nos mesmos lugares: a cidade de Nova Friburgo e o telhado de Conceni.
No Rio de Janeiro, as regiões mais atingidas foram a norte e a noroeste, com 34.800 desalojados. A foto mais eloquente da tragédia veio de Campos, onde um dique do Rio Muriaé novamente se rompeu e pela terceira vez um trecho de uma estrada foi arrastado. Dois dias depois da última chuva em Nova Friburgo, a marca da água chegava a 3 metros de altura. Havia lama no teto das casas, geladeiras retorcidas nas calçadas, carros abandonados e lixo por todo canto. Casas deixadas para trás há um ano foram objeto de marretadas dadas por ladrões para arrancar portas e janelas. É impossível distinguir, entre os estragos, quais foram feitos pelas chuvas do ano passado e quais são obra das chuvas recentes.
Teresópolis, na região serrana do Rio, também reviveu seu medo. A cidade, que recebeu R$ 7 milhões do governo federal para recuperação, foi uma das que mais sofreram no ano passado. Um ano depois, pelo estado de alguns bairros, parece que a enchente foi ontem. Ainda há casas destruídas, árvores tombadas e pedregulhos pelas ruas em bairros como Campo Grande. O acesso ao lugar é feito por uma rua com trechos difíceis para carros comuns.
Em Minas Gerais, 87 cidades decretaram estado de emergência. A região mais atingida é a central, além da Zona da Mata. Quatro das cinco pontes do município de Ponte Nova foram interditadas. Pequenos trajetos levam horas por causa das interdições e dos alagamentos. No Espírito Santo, outras seis cidades também estão em estado de emergência, com 2.200 desabrigados e desalojados.
Em Nova Friburgo, cartazes da prefeitura anunciam obras que as ruas desmentem. Pichações de moradores denunciam o desvio de verbas. "Essa obra é uma vergonha", diz uma. "Cadê o dinheiro, seus ladrões?", pergunta outra. Tanto o prefeito de Teresópolis quanto o de Friburgo foram afastados dos cargos, suspeitos de desviar as verbas. Em Teresópolis, duas únicas empresas levaram R$ 5,7 milhões dos R$ 7 milhões liberados pelo governo. A Controladoria-Geral da União e a Procuradoria da República constaram indícios de desvio. Basta um passeio pelas ruas dos bairros atingidos pela tragédia para ver que o dinheiro pode ter ido para qualquer lugar, menos para lá.
Também não foi para o jardineiro Avenir Silva Lima, de 49 anos, que perdeu tudo nas enchentes do ano passado. Até hoje ele ainda luta sem sucesso para conseguir o "aluguel social" de R$ 500, a verba destinada pelo governo do Estado a quem perdeu a casa no ano passado. "Foram 30 anos para construir e cinco minutos para acabar", diz ele. Depois veio a avalanche da burocracia. Ele já esteve seis vezes na prefeitura. Jamais conseguiu receber o dinheiro para pagar seu aluguel. Também não conseguiu o prometido kit de móveis. Só alugou uma nova casa com a ajuda de sua patroa. Hoje, o aluguel que paga e a prestação dos móveis consomem 70% de seu salário. Caminhando sobre os destroços, ele mostra as áreas devastadas como se fosse um sinistro guia turístico, a exibir as ruínas de um lugar que não existe mais: "Aqui ficava uma família com cinco, morreu todo mundo, até o bebê. Ali era um casal. Naquela casa morava uma menina grávida de nove meses, ela tinha um outro menino de nove meses", diz, apontando os escombros.
O dinheiro que não chegou a Avenir entrou sem muitas dificuldades para os cofres do governo do Estado. Entrou, mas não saiu. R$ 80 milhões liberados pelo governo federal para a recuperação de pontes ainda não foram gastos porque, segundo o governo estadual, as enchentes alteraram as características dos rios e os projetos de engenharia são mais difíceis. Outros R$ 70 milhões, segundo o governo, foram aplicados na contenção de encostas e obras contra enchentes. Na semana passada, depois da cheia, o governador Sérgio Cabral visitou a região serrana e negou problemas na liberação do dinheiro. Segundo ele, o Estado está investindo R$ 200 milhões para a construção de casas. Cabral disse ainda que o governo preferiu priorizar o pagamento de "aluguel social" às obras de infraestrutura. Aquele mesmo dinheiro que Avenir não consegue receber.
Em Minas, muitos moradores também reviveram o drama de enchentes passadas. Enquanto esperava o resgate na laje de sua casa em Guidoval, cidade de 7 mil habitantes da Zona da Mata mineira, Antônio Pacheco, de 65 anos, viu o helicóptero da Defesa Civil resgatar dois de seus irmãos. "Vi a casa deles tremendo, e eles em cima da laje pedindo socorro. Seis minutos depois de entrarem no helicóptero, a casa toda caiu", disse chorando. Em Guidoval, foram registradas duas das seis mortes causadas pelas fortes tempestades em Minas. Inúmeras fábricas, mercearias e casas foram completamente destruídas. Só na família de Antônio, um irmão perdeu a mercearia e a loja de móveis de uma irmã foi levada pela água, que atingiu 6 metros de altura. Do alto de sua laje, Antônio ainda viu a ponte da cidade cair, a casa de seu pai desabar e ele ser carregado, aos 91 anos, por um dos irmãos. Não é a primeira vez que a chuva lhe causa estragos. Em dezembro de 2008, as águas levaram R$ 25 mil em peças de automóveis. Desta vez, ele calcula um prejuízo três vezes maior.
A força das águas faz Antônio lembrar a tragédia que o Japão viveu também em janeiro do ano passado, mesma época que a região serrana do Rio foi devastada. "A gente achou que era o tal do tsunami", diz ele. Três meses depois, templos, shoppings, estradas e casas já estavam praticamente reconstruídos pelos japoneses. As fotos da agência Associated Press mostrando bairros japoneses destroçados e reconstruídos apenas 90 dias depois circularam pela internet. A rapidez era tão impressionante que muitas pessoas juravam que se tratava de montagens. Para quem está acostumado com o descaso nacional, a eficiência parece mesmo uma miragem.
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