terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Te Contei, não ? - Uma geração descobre o prazer de ler



“Ler obras juvenis ou best-sellers é apenas o começo de uma longa e produtiva convivência com os livros. Essa é a lição que anima os jovens a se aventurarem na boa literatura atual e nos clássicos.” 

Por Bruno Méier

Deixe-se o sexo para uma discussão posterior. No que diz respeito à leitura, uma graciosa menina carioca é uma das inúmeras evidencias do que se lê na capa de “Veja”. Em janeiro, a universitária Iris Figueiredo, de 18 anos, anunciou em seu blog a intenção de organizar encontros para discutir clássicos da literatura. A ideia era reunir jovens que estavam cansados de ler as séries de ficção que lideram as vendas nas livrarias e passar a ler obras de grandes autores. Trinta respostas chegaram rapidamente. No mês seguinte, o evento notável de Iris começou: vinte adolescentes procuraram uma sombra junto ao Museu de Arte Contemporânea de Niterói - cada um com seu exemplar de “Orgulho e Preconceito”, da inglesa Jane Austen, debaixo do braço e sentaram-se para conversar. Durante duas horas, leram os trechos de sua preferência, analisaram a influência da autora sobre escritores contemporâneos (descobriram, por exemplo, que certas frases do romance foram emuladas em diálogos da série “O Diário de Bridget Jones”, de Helen Fielding) e destrincharam os dilemas pelos quais passaram a vivaz Elizabeth Bennett e o arrogante Mr. Darcy, os protagonistas do romance. Iris se entusiasma ao falar do sucesso de suas reuniões que já abordaram títulos como “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde, “1984”, de George Orwell, e “Feliz Ano Novo”, de Rubem Fonseca. Desde pequena, ela é boa leitora. Mas foi só ao descobrir a série “Harry Potter” que se apaixonou pela leitura e a transformou em parte central de seu dia a dia. Quando a saga do bruxinho virou mania entre as crianças e os adolescentes, uma década atrás, vários críticos apressaram-se em decretar que esse seria um fenômeno de resultados nulos. Com o eminente crítico americano Harold Bloom à frente, argumentavam que Harry Porter só formaria mais leitores de Harry Potter os livros da inglesa J.K. Rowling seriam incapazes de conduzir a outras leituras e propiciar a evolução desses iniciantes. Jovens como Iris desmentem essa tese de forma cabal. Ler é prazer. E, uma vez que se prova desse deleite, ele é mais e mais desejado. Basta um pequeno empurrãozinho como o que a universitária ofereceu por meio do convite em seu blog - para que o leitor potencial deslanche e, guiado por sua curiosidade, se aventure pelos caminhos infinitos que, em 3000 anos de criação literária, incontáveis autores foram abrindo para seus pares. 

 Várias vezes, no decorrer do último século, previu-se a morte dos livros e do hábito de ler. O avanço do cinema, da televisão, dos videogames, da internet, tudo isso iria tornar a leitura obsoleta. No Brasil da virada do século XX para o XXI o vaticínio até parecia razoável: o sistema de ensino em franco declínio e sua tradição de fracasso na missão de formar leitores, o pouco apreço dado à instrução como valor social fundamental e até dados muito práticos, como a falta e a pobreza de bibliotecas públicas e o alto preço dos exemplares impressos aqui, conspiravam (conspiram, ainda) para que o contingente de brasileiros dados aos livros minguasse de maneira irremediável. Contra todas as expectativas, porém, vem surgindo uma nova e robusta geração de leitores no país movida, sim, por sucessos globais como as séries “Harry Porter”, “Crepúsculo” e “Percy Jackson”. Em 2005, a rede de livrarias Saraiva vendeu 277000 exemplares de títulos voltados para o público infantojuvenil. Em 2010, foram 1,7 milhão - um estarrecedor aumento de 514%. O crescimento deve-se em parte à ampliação da rede, com a compra da Siciliano, em 2008. Mas nenhum outro segmento se desenvolveu tanto quanto o juvenil. 

Também para os cidadãos mais maduros abriram-se largas portas de entrada à leitura. A autoajuda (e os romances com fortes tintas de autoajuda, como “A Cabana”) é uma delas; os volumes que às vezes caem nas graças do público, como “A Menina que Roubava Livros”, ou os autores que tem o dom de fisgar com suas histórias, como o romântico Nicholas Sparks, são outra. E os títulos dedicados a recuperar a história do Brasil, como “1808”, “1822” ou “Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil”, são uma terceira, e muito acolhedora, dessas portas. É mais fácil tornar a leitura um hábito, claro, quando ela se inicia na infância. Mas qualquer idade é boa, é favorável, para adquirir esse gosto. Basta sentir aquele comichão do prazer, e da curiosidade - e então fazer um esforço, bem pequeno, para não se acomodar a uma zona de conforto, mas seguir adiante e evoluir na leitura. Um livro puxa outro, não há dúvida. Por isso, nas páginas desta reportagem oferecemos sugestões de caminhos pelos quais enveredar a partir de certos pontos iniciais que as listas de mais vendidos comprovam ser eficazes: as séries “Harry Potter” e “Crepúsculo”, os best-sellers “A Cabana” e “A Menina que Roubava Livros” e os romances de Nicholas Sparks. Os aventureiros de espírito podem zarpar de um desses pontos e chegar a destinos fulgurantes como “Moby Dick”, “Grande Sertão: Veredas” ou “Em Busca do Tempo Perdido”.

Veja-se o exemplo da universitária catarinense Taize Odelli, de 21 anos (foto acima). Taize, como a carioca Iris Figueiredo, caiu de amores pela leitura por meio de “Harry Potter”, anos atrás. Hoje, discute com desenvoltura sobre a obra do clássico russo Fiodor Dostoievski ou a do contemporâneo anglo-indiano Salman Rushdie. Taize percorreu esse trajeto levada por sua curiosidade, e agora cuida de despertá-la em outros jovens como ela. A cada mês, recebe cerca de dez lançamentos de quatro editoras nacionais e os resenha em seu blog. Para as editoras, ela é uma ponte com um público que resiste aos canais tradicionais de divulgação, como jornais e revistas. Para a garotada que acompanha seu blog (ou o de Iris, que, funcionando nos mesmos moldes, conta cerca de 16000 acessos mensais), ela é um caminho alternativo: os livros, na escola, costumam ser motivo de tédio; redescobri-los como fonte de deleite, passo a passo com pessoas da mesma idade, é um papel que a internet sim, uma daquelas invenções que iriam assassinar a leitura, segundo os pessimistas vem desempenhando de forma espontânea e com surpreendente eficácia. "Não gosto de Machado de Assis até hoje porque lembro que fui obrigado a lê-lo no colégio quando ainda não estava preparado", diz o administrador paulista Eduardo Ribeiro. Machado de Assis é frequentemente um dos primeiros autores a ser indicados como leitura obrigatória em sala de aula e tem se tornado um pesadelo para qualquer docente que deseja transformar a leitura em fruição e não em aversão. "Exigir a leitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas e marcar uma prova semanas depois definitivamente não é o caminho", diz a pedagoga Elizabeth Baldi, fundadora da Escola Projeto, em Porto Alegre. 

Os leitores adolescentes impulsionaram os maiores sucessos das livrarias na última década. Nunca se produziu, traduziu e fez circular tanto livro para eles como agora e na lista de mais vendidos de “Veja”, na categoria ficção, eles figuram nas melhores posições. A série “Harry Potter” com vendas mundiais que ultrapassam os 400 milhões de exemplares (no Brasil, chegaram a 3 milhões), detonou essa onda, é evidente. Em 2008, um novo sucesso surgiu no país: a saga “Crepúsculo”, com 120 milhões de exemplares comercializados (5,5 milhões no Brasil). E aí o fenômeno começou a ganhar novos contornos: através de comunidades e perfis nas redes sociais, os adolescentes passavam horas discutindo o destino da menina Isabella Swan e do vampiro Edward Cullen - e, nessa fase, se um amigo demonstra um interesse, é rapidamente copiado pelos outros. "Não é mais possível lançar um livro para esse público sem pensar numa estratégia de atração por meio das redes sociais", diz Jorge Oakim, editor da Intrínseca. Ele é um caso exemplar de ajuste às mudanças ocorridas no mercado editorial. Desde a inauguração de sua editora, em 2003, viu seu negócio mudar radicalmente: no início, 15% dos lançamentos eram destinados ao público jovem - Atualmente; esse número saltou para 80% -, e esse mesmo percentual representa o faturamento atual da editora com os jovens. No meio do curso na faculdade, garotas como a carioca Iris Figueiredo e a catarinense Taize Odelli não estão ainda pensando em emprego. Mas não é exagero especular que, com seus blogs de resenhas, já estão se profissionalizando. Mesmo quando os benefícios dos livros não parecem tão imediatos. porém, eles são concretos e até quantificáveis. Um estudo divulgado no mês passado pela Universidade Oxford demonstra uma conexão inequívoca entre leitura e sucesso profissional. Conduzida pelo americano Mark Taylor, do departamento de sociologia, a pesquisa ouviu 17 200 pessoas nascidas em 1970. Comparou as atividades extracurriculares desenvolvidas por elas quando tinham 16 anos com a sua posição hierárquica aos 33. A leitura se revelou o único fator que, de forma consistente, esteve associado à ascensão profissional. Para as mulheres. a chance de ter um cargo mais elevado cresce de 25% para 39% quando lêem; para os homens, de 48% para 58%. Nenhuma outra atividade - cinema, esportes, visitas a museus e galerias - teve impacto significativo. O progresso pode estar associado ao desenvolvimento do vocabulário e ao domínio de conceitos abstratos propiciados pelo hábito da leitura. E vale enfatizar: a pesquisa centrou-se na leitura extracurricular. Ou seja, o livro lido por prazer - e não porque foi exigido em uma disciplina escolar - é o que realmente conta. 

 Para quem não tem o hábito da leitura (e, entre os brasileiros, muitos não o tem), o projeto de se tornar um leitor sofisticado pode parecer inatingível e tedioso, e cansativo. (Inútil não o é mesmo, como está demonstrado no parágrafo acima.) Mas imagine se, dez anos atrás, alguém pedisse a você que tomasse decisões com a carga de responsabilidade das que toma hoje, ou que manejasse os programas de computador que hoje lhe são habituais: impossível, assustador. Com a leitura, dá-se esse mesmo processo de aprendizado, cumulativo e, por que não, suave. Se atualmente a sua leitura preferida são os romances adocicados de Nicholas Sparks e outros autores do gênero, um livro como “Guerra e Paz”, de Leon Tolstoi, talvez pareça impenetrável (e chato). Ora, a saída simples e prazerosa é percorrer um circuito menos acidentado. Passe antes por “Tess”, de Thomas Hardy, ou até por um conto breve como “Bola de Sebo”, de Guy de Maupassant. Um livro não apenas puxa outro, como prepara para o seguinte. Em um ano, ou dois, ou três, quando abrir de novo as páginas de “Guerra e Paz”, é provável que a leitura já lhe pareça agradável e instigante e não mais um martírio. 

Ler é indispensável para aqueles que querem se expressar bem: mostra as diversas possibilidades da língua, aumenta o vocabulário e enriquece o conhecimento. "E a forma mais eficiente de saber e de humanizar-se, colocando-se no papel do outro. Deixa a pessoa mais próxima da civilização e mais distante da barbárie", diz o escritor Miguel Sanches Neto, exemplo de cidadão que, mesmo num ambiente de pobreza material e cultural, buscou o melhor da literatura. Todas essas benesses, porém, só são adquiridas quando o leitor passa a buscar uma leitura mais seletiva e procura o melhor que os autores clássicos e célebres já produziram ao longo do tempo. "Existem livros que tratam a pessoa como consumidora e acompanhante passiva da história. Esses dispensam a atividade do leitor", diz Luís Augusto Fischer, professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de “Filosofia Mínima – Ler, Escrever, Ensinar, Aprender”. E aí se chega a uma recomendação importante: nos primeiros meses, não importa muito o que a pessoa lê, desde que ela adquira a habilidade essencial de ler apenas por prazer. Tom Wolfe, um dos mais celebrados jornalistas e escritores americanos, leu apenas e tão somente sobre beisebol até os 16 anos de idade - mas leu. 

 A leitura consolidou-se como uma experiência individual e solitária. E lendo em silêncio, para nós mesmos, que melhor entendemos e apreciamos uma obra - qualquer obra. seja o árduo “Paraíso Perdido”, de John Milton, ou o saboroso “Alta Fidelidade”, de Nick Hornby. Relembrando a juventude em suas “Confissões”, Santo Agostinho expressa sua surpresa ao ver como, em torno do ano 384, Santo Ambrósio, bispo de Milão, realizava suas leituras: "Quando ele lia, seus olhos perscrutavam a página e seu coração buscava o sentido, mas sua voz ficava em silêncio e sua língua, quieta". Na Antiguidade, lia-se em voz alta, até para ajudar no entendimento das frases. pois ainda não existiam sinais de pontuação. Não admira, portanto, que Agostinho tenha registrado com tanta ênfase a quietude concentrada de seu mestre. O mergulho quase solipsista na página, a absorção na voz íntima do livro, que hoje reconhecemos na pessoa que lê em uma biblioteca universitária, em uma praça ou em um banco de ônibus, era ainda excepcional. Em “Uma História da Leitura”, Alberto Manguel informa que a leitura silenciosa só se tornaria usual no Ocidente a partir do século X. Em um ensaio sobre o culto aos livros, o escritor argentino Jorge Luis Borges - um dos maiores leitores do século XX - descobre na atitude descrita por Santo Agostinho a prefiguração de uma nova postura cultural em relação ao livro: "Aquele homem passava diretamente do signo da escrita à intuição, omitindo o signo sonoro; a estranha arte que se iniciava, a arte de ler em voz baixa, conduziria a consequências maravilhosas. Conduziria, passados muitos anos, ao conceito de livro como fim, não como instrumento de um fim”. Ainda assim, subsistem formas de congraçamento social em torno do livro. Ler para o outro pode ser uma forma de generosidade ou uma celebração do talento. No século XIX, o romancista inglês Charles Dickens atraía multidões para as sessões públicas de leitura de seus romances. Em âmbito bem mais modesto, no Brasil, José de Alencar lembra, em “Como e Porque Sou Romancista”, que era chamado por sua mãe e outras mulheres da família para ler em voz alta folhetins açucarados, que elas ouviam, às lágrimas, enquanto costuravam e faziam tarefas domésticas. Festivais de literatura contemporâneos continuam a trazer escritores consagrados para sessões de leitura de suas obras. De novo, pode ser também a tecnologia a varinha de condão que reúne os homens em torno dos livros e ideias: o Kindle, leitor digital comercializado pela megalivraria global Amazon, possui ferramentas que fazem com que o usuário tenha a sensação de que não está sozinho. Ao sublinhar um trecho de um capítulo que atraiu particularmente sua atenção, por exemplo, o usuário é informado do número de leitores que marcaram a mesma passagem. Outros recursos permitem o gesto amigável de emprestar um livro digital a outra pessoa, ou ouvir o texto em voz alta. O que hoje entendemos como literatura precede a escrita: a “Ilíada” e a “Odisséia”, os dois grandes épicos gregos compostos em torno de VII a.C. e atribuídos a Homero, surgiram como poemas a ser memorizados e recitados, e não lidos. Seja qual for o meio - a voz, o papel, a tela do leitor eletrônico -, a leitura existe para isso: para ligar os homens pelo fio comum de sua experiência. 

Cena verídica observada em um dos mais caros shopping centers paulistanos: uma mãe passeia pelos corredores com seus dois filhos, de uns 5 e 8 anos, quando o mais velho exclama, entusiasmado: "Olha, uma livraria! Vamos lá, mamãe?" Ao que ela repreende, seguindo na direção contrária: "Livraria? E o que é que você quer fazer lá?". Ora, mamãe, por favor. Da próxima vez, deixe que seu filho a puxe pela mão e se perca entre as estantes. E aproveite para fazer o mesmo. Você vai se surpreender com o que encontrará lá e consigo mesma.



Revista Veja 

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