NÃO CAI NO ENEM
Tratamento dado à Literatura no exame põe em jogo ensino da disciplina em escolas
Há algo de muito errado no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). É verdade, ele veio junto com ótimas iniciativas do MEC: um enorme aumento de oferta de vagas das universidades federais; uma saudável horizontalização do exame de ingresso nas universidades, puxando para diante regiões conservadoras e oferecendo mobilidade para milhares de jovens; programas multidisciplinares que tendem a abolir questões dependentes de mera decoreba e a propor outras mais criativas, que privilegiam a leitura atenta e o raciocínio.
Mas o Enem (ele mesmo e seu papel institucional) carrega muitos e graves problemas. Ao se impor como exame quase universal de acesso ao ensino federal superior, ele na prática bloqueia experiências inventivas; ele passou de exame diagnóstico do ensino médio para exame de ingresso à universidade sem a devida reflexão sobre as consequências disso; e, finalmente, no mesmo processo de horizontalização que criou, impôs a existência de um mercado nacional que tem gerado concentração de vagas, para os cursos mais procurados, na mão de candidatos das regiões mais ricas, que em regra oferecem ensino mais exigente.
O caso aqui abordado, envolvendo a literatura, se soma aos problemas anteriores. É menos visível, mas pode botar a perder esforços importantes. Mas antes de entrar no detalhe, é preciso reter uma preliminar, óbvia para quem trabalha no ensino médio mas invisível para quem vive apenas na universidade ou nos gabinetes de Brasília: desde os anos 1960, quando a universidade no Brasil passou a ser procurada massivamente, há sempre mais candidatos do que vagas, e os vestibulares passaram a ser o paradigma maior do ensino médio. O que cai no vestibular entra no programa de ensino da escola; o que não cai, deixa de existir, com raríssimas exceções. Então cabe a indagação: o que o Enem está cobrando em literatura?
Entre a leitura e a cultura
O Enem apresenta perguntas sobre literatura? Sim. Mas a natureza e a qualidade dessas perguntas fazem pensar que o futuro do ensino nessa área está em vésperas de sofrer um golpe.
O caso é que o Enem tende a tratar o texto literário como um texto qualquer. Forçando um pouco, dá para dizer que o Enem tende a tratar um poema de Drummond ou um conto de Machado de Assis no mesmo nível de uma reportagem de jornal, uma tira em quadrinhos ou um anúncio publicitário. Examinando a filosofia da prova da área que abrange a literatura, “Linguagens, códigos e suas tecnologias” (nome aborrecidamente tecnocrático para um ajuntamento de Português, Literatura, Tecnologia da Informação e, sim, Linguagem Corporal!), se percebe que quem comanda é o variacionismo, que pouca atenção dá à tradição literária culta, preferindo uma abordagem que avalia a destreza de leitura operacional, nada mais. O Enem quer da literatura a proficiência de leitura, sem $ção detida ao ambiente cultural letrado; e nós, professores de literatura, queremos da literatura isso mas também a cultura, o contexto, as relações entre os textos e os autores. Simplificadamente: o Enem examina a literatura-leitura, e nós queremos também a literatura-cultura.
É ótimo que o Enem despreze as perguntas cretinas de certos vestibulares, que querem a mera decoreba e os clichês, que lamentavelmente ainda têm força em colégios e cursinhos. Ocorre que o bom ensino de literatura há tempos não faz isso, e se o fazia era para atender exatamente à cretinice de certos vestibulares. Certo, há questões mais delicadas: $que o ensino formal existe no Brasil, a área de literatura foi governada pela visão escolástica, primeiro jesuítica, depois nacionalista, depois determinista etc. Não foi o vestibular de massas que inventou essa imbecilidade de que ensinar literatura é igual a impor interpretações canônicas sobre os livros: desde 1500 estamos nas antípodas do ensino emancipador na área.
Parêntese: um graduado agente do MEC defendeu em público o estilo das provas do Enem por serem, na visão dele, um antídoto contra os nefastos cursinhos, encarnações do capeta. Uma tolice, obviamente: em sociedade livre, quando há mais candidatos $vagas tendem a se criar mecanismos de preparação, como os cursinhos. Que eles não devem dar o tom da prova nem dos programas de ensino, é óbvio; mas que uma filosofia de prova possa acabar com eles, é fantasia esquerdista.
A tal prova de “Linguagens etc.” inclui literatura, mas em seu programa não define qualquer escritor, gênero literário, período de tempo, nada. O que cai na prova são itens abstratos, pertinentes (por exemplo “relações entre a dialética cosmopolitismo/localismo e a produção literária nacional”), mas imprecisos e até obscuros se vistos desde o ensino médio; este, é claro, já está tratando de preparar os alunos para a prova do Enem, mas na prática as escolas estão tentando adivinhar o que cai no exame.
Pesquisa revela tendências do exame
Quer saber o que cai? Bem: lemos todas as provas da área de “Linguagens etc.” do Enem (de 1998 a 2010, até a prova vazada em 2009, num total de 164 questões), série histórica na qual se pode encontrar tendências. Procuramos o que havia de literatura, num levantamento que acolheu todas as menções a qualquer coisa ligada à literatura, desde os gêneros literários clássicos (romance, conto, poesia) e os para ou semiliterários (crítica, drama, canção, quadrinhos e textos de jornal), até menções ao universo digital e mesmo pintores. E vimos o seguinte:
(a) Há, por ano, 13% de questões, em média, que mencionam textos literários e semiliterários; em torno de metade delas são de fato ligadas à literatura-cultura; em 2010 caíram pela metade os dois números, abrindo perspectiva assustadora;
(b) Poesia e letra de canção somadas comparecem em 42% das questões; romance, medíocres 12%; conto, apenas 3%; em contraste, histórias em quadrinhos têm gordos 19%. O que a escola pergunta é: vai ser mesmo necessário o candidato ler um romance sequer para fazer o Enem?
(c) Por épocas, a soberania inconteste é do Modernismo: a literatura produzida nas décadas de 20 e 30 aparece em 30% das questões! Toda a literatura brasileira anterior a 1920 alcança só 17% — e isso inclui Gregório, Cláudio, Alencar, Machado, Euclides, Lima Barreto!
(d) Frequências: Drummond é quem mais aparece, 19 vezes; em segundo vêm Machado de Assis e Bandeira, 7; depois, nenhum autor aparece mais de 5 vezes. Graciliano Ramos e João Cabral aparecem 3 vezes cada, menos do que Jim Davis (do Garfield) e Bob Thaves (da tira “Frank e Ernest”), com 4 vezes cada.
Com este Enem, por sua filosofia e por sua força institucional, estamos caminhando para programas de literatura no ensino médio desencarnados, sem densidade cultural, tendo no centro princípios abstratos que parecem poder ser atendidos praticamente sem leitura direta dos textos literários. Nada auspicioso para quem quer formar leitores destros e cultos, e por isso autônomos.
*LUÍS AUGUSTO FISCHER é professor de Literatura Brasileira da UFRGS.
A pesquisa foi feita por Gabriela Luft, Karina Lucena, Carla Vianna, Guto Leite, Marcelo Frizon e Daniel Weller,
alunos do PPG Letras da UFRGS e professores de literatura.
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