A inquietude do gênio
Elisa Byington
Exposição redescobre o excepcional renascentista Lorenzo Lotto. Desafiou convenções sacras, antecipou o barroco e foi um iluminado, mesmo depois de abdicar do mecenato veneziano. Por Elisa Byington, de Roma. Imagem: Accademia Carrara-Gamec/Bergamo
Só, sem caminho certo e muito inquieto de mente”, descreveu-se Lorenzo Lotto (1480-1556) no melancólico testamento redigido aos “cerca de 66 anos”, ocasião na qual se recolheu como religioso na Santa Casa de Loreto. Devoto, esquivo, suscetível e ansioso, o pintor teve o nome quase esquecido pela história. Ainda assim, a excelência de sua produção renascentista continuava a integrar as maiores coleções internacionais. Mas suas obras de composição refinada e qualidade pictórica singular apenas foram apreciadas, copiadas e compradas quando atribuídas a outros grandes nomes da pintura, como Ticiano, Giorgione, Corregio, Hans Holbein e Van Dyck.
Lotto, contudo, tinha um estilo próprio ao pintar. Ele datou e assinou a maior parte de seus trabalhos, e buscou fazê-lo em locais com significado narrativo na tela, a atestar sua participação emotiva dentro dela. Veja-se o nome “cinzelado” aos pés do anjo que anota as súplicas dos fiéis em Retábulo de San Bernardino. Ou aquele escrito em um bilhete colocado entre cerejas e laranjas, símbolos de sacrifício e recompensa, no primeiro plano do quadro no qual Cristo se despede da Virgem Mãe. Ou, ainda, a assinatura sobre um braço da cruz de Cristo na subida do Calvário, obra que antecipou o naturalismo e a teatralidade adotados pelo barroco cem anos depois.
Nascido em Veneza, chamado de pintor celeberrimus nas primeiras décadas de carreira, Lorenzo Lotto flertou com o passado e antecipou o futuro. Pertenceu à espetacular leva de pintores, entre eles Bellini, Vivarini, Palma il Vecchio, Giorgione, Ticiano, Tintoretto, Veronese e Carpaccio, que fez a glória da cidade quando esta perdia a invencibilidade nos mares. Gozava-se então do fausto acumulado e respirava-se uma refinada cultura humanística que resultaria em quadros alegóricos de mensagens cifradas. Nesta realidade cultural, o pintor se inseriu como protagonista.
Uma exposição até 12 de junho, nas Scuderie del Quirinale, em Roma, reconstrói a trajetória desse gênio inquieto, que jamais se adaptou às cortes nem se ligou a mecenas, marcado pela independência e por um sentimento de inadequação que o tornaria afeito à sensibilidade atual. Entre as cerca de 60 obras expostas, há retratos, alguns dos mais notáveis do Renascimento, e originalíssimas composições sacras em telas, 11 polípticos e retábulos monumentais.
Apreciar tais obras em uma única oportunidade deve contribuir de maneira decisiva para a recondução de Lorenzo Lotto aos livros de história da arte. Contudo, a espetacular exibição não faz inteiramente jus à obra do pintor. Isso porque mostra no mesmo local os polípticos que requereriam peregrinação pela região das Marcas e da Lombardia para ser de todo apreciados. Conhecer Lorenzo Lotto de maneira integral significa viajar até as igrejas onde suas obras foram originalmente expostas. Dentro dessas construções, artisticamente inferiores às invenções do pintor, a obra do artista ganha sentido visionário.
É possível que o anseio de liberdade, a vontade de experimentar soluções novas e a necessidade de indagar sobre a existência humana, somados à incapacidade de transitar pelo poder, tivessem levado Lorenzo Lotto a abandonar a ribalta veneziana e a procurar fora dela outra classe de mecenas. Profissionais liberais, ricos comerciantes e a pequena aristocracia eram menos comprometidos com o gosto dominante na cidade cosmopolita. A escolha de Lotto favoreceu o não menos genial Ticiano, pintor da província, mas com talento para interpretar a vontade dos poderosos e as demandas dos venezianos. Lotto deixou-lhe o campo livre e foi trabalhar em arredores como Recanati e Loreto.
“Ninguém consegue colher o candor dos olhares e a verdade de um personagem como Lorenzo Lotto”, escreveu Bernard Berenson no ensaio de 1895 que redescobriu o pintor. O novo interesse ocorria dentro do horizonte da psicanálise, na vigília de um século mais sensível às razões do seu percurso biográfico, marcado pela inquietude e pelo nomadismo. Nas paróquias e cidades de uma região italiana, até hoje alheia ao turismo, o artista experimentou uma nova síntese entre passado e presente, misturou elementos da tradição bizantina e medieval e antecipou a teatralidade barroca.
Esse é o caso da Giuditta com a Cabeça de Holofernes, que, em razão de sua ousadia, havia sido atribuída a algum “seguidor de Caravaggio”. A crítica julgara que o quadro fora composto um século- depois de seu ano de realização, 1512, até que pesquisas recentes restituíram à obra as verdadeiras data e autoria. O mesmo ocorreu com Retábulo de San Bernardino, pertencente a uma igreja nos arredores de Bergamo e agora presente na exposição. Na obra, anjos em voo cobrem a cena sacra com um grande pano verde, trazendo-o na direção do espectador.
Lotto surpreende com obras novas para o período, como a Anunciação do museu de Recanati, na qual, ao susto da Virgem com a aparição do anjo, corresponde o pulo do gato que foge. Seus sentimentos são revelados ali de maneira inédita dentro de um dos gêneros mais codificados da pintura sacra. E o retrato das Virgens raramente corresponde à iconografia tradicional. De nariz forte, sobrancelha espessa, pescoço pouco aristocrático, sua figura angulosa é dissonante do gosto do período. O tema contido em Matrimônio Místico de Santa Catarina com Jesus (Sposalizio Místico di Santa Caterina) retornaria em diversos quadros. Colorista extraordinário, pintor de rara qualidade na representação das aparências da matéria, dos veludos às joias, das rugas às verrugas, Lotto nunca tornou suas imagens plácidas ou tranquilizantes. Pintor anticlássico, recusou a grandiosidade escultórica que o rodeava e retratou a humanidade cheia de tormentos.
REVISTA CARTA CAPITAL
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