domingo, 28 de agosto de 2011

Ah, se é do Machado, vale a pena ler (6)


O Rio de Machado, além das batatas
Orlando Margarido

Perdoem o guloso, roga Machado de Assis em crônica de 25 de março de 1894 publicada na Gazeta de Notícias, ao descrever a Confeitaria Pascoal, da qual era assíduo frequentador num Rio de Janeiro ainda capital do Império. “Este nome, que nenhuma comoção produz na alma do rapaz nascido com o século, acorda em mim saudades vivíssimas. A casa da mesma rua (…), onde ainda ontem comprei um excelente paio (…), na qual passei horas excelentes.” Apesar de costumeiras, as referências ao bem comer nos textos do escritor não autorizam acreditar que se tratasse de um glutão ou gourmet. “Ele era sóbrio ao se alimentar”, diz Rosa Belluzzo, especialista em antropologia cultural e história da alimentação. “Mesmo porque era muito doente e isso o limitava para comer. De todo modo, homem de seu tempo, acompanhava as transformações do Rio naquela época e isso incluía os hábitos alimentares.”
As mudanças em questão têm início com a chegada da família real portuguesa ao Brasil e a introdução por ela de itens importados como a manteiga francesa e chá, além de doces típicos lusitanos. Prossegue com a difusão do costume de comer fora nas casas de pasto e nas confeitarias e hotéis de luxo. Alcança, por fim, a República e o reforço do “ideal civilizador”, que apura a arte culinária e traz a opulência para jantares, comemorações e saraus. Todas essas fases são narradas por Rosa Belluzzo- em Machado de Assis – Relíquias culinárias (Unesp, 156 págs., R$ 80), no qual o escritor é personagem condutor em meio às novidades que se sucediam.
Nos romances e crônicas machadianos, a cientista social busca apreciação sobre os fatos da vida mundana carioca, ao mesmo tempo que os contextualiza na linha histórica. Dizem muito as 25 receitas do período selecionadas para o livro, entre elas a canja do imperador, o francês bouillabaisse e o sorvete de pitanga. Foram adaptadas e testadas para a publicação. “Tirei exageros de molho, gordura e condimentos pesados, muito comuns na época”, explica.
Rosa voltou a todos os títulos de Machado para concluir o trabalho e pesquisou o legado de suas publicações periódicas na Biblioteca Nacional. “Cosmopolita e urbano, ele frequentava os grandes salões e registrava tudo o que via, os banquetes, a preparação dos cardápios, a etiqueta e os hábitos que iam se refinando.” O resultado são trechos de descrição de festas, a exemplo do conto As Bodas do Dr. Duarte, no qual comenta um jantar nupcial já iluminado pelo fornecimento a gás inaugurado pelo Barão de Mauá “como verdadeira fonte de Moysés”, ou entre personagens de seus romances, sendo o Rubião de Quincas Borba caso simbólico. Se aqui a questão se refere ao aparato luxuoso de um serviço de café, com o peculiar protagonista de Memórias Póstumas de Brás Cubas Machado vai direto a seu apreço pelos acepipes durante uma celebração em família: “Aqui o ananás em fatias, ali o melão em talhadas, as compoteiras de cristal deixando ver o doce de coco, finamente ralado, amarelo como uma gema, ou então o melado escuro e grosso, não longe do queijo e do cará”.
O trecho revela outra característica da postura de Machado em relação ao refinamento europeu. “Ele valorizava essa conduta, reconhecia o que era bom, mas defendia que muitos hábitos importados, como usar botas de couro, tinham seu equivalente nas alpercatas nacionais”, lembra Rosa. “Com as receitas não era diferente.” Exemplos são as bouchées de dames, bolachinhas doces sabor de laranja, que poderiam ser substituídas pela mãe-benta, bolinhos de coco entre seus favoritos. O franguinho de cabidela aparecia na dianteira de seu gosto.
O livro também detalha como as classes menos favorecidas se alimentavam. No primeiro império, as quitandeiras negras vendiam manuê, um tipo de bolo de fubá, sonhos, pão de ló, café e sucos. Nas décadas que se seguiram ao coroamento de dom Pedro II, em 1840, meninos vendedores de balas e biscoitos atuavam nos bondes do Largo da Carioca, enquanto a cidade evoluía devagar com progressos como o esgoto doméstico. E sob essa mesma ideia de modernização os quiosques do centro seriam extintos por Floriano Peixoto, já na República, atitude lamentada por Machado no jornal. Ainda que tenha desfrutado do Brasil de lautos banquetes e os analisado com perspicácia, o escritor mantinha a sobriedade, a melancolia. Para ele, perante tudo o que testemunhou, o melhor era “ajuntar os restos do festim, mandar fazer o que a arte culinária chama roupa velha e comê-la com os amigos, sem vinho”. •

REVISTA CARTA CAPITAL

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