terça-feira, 23 de agosto de 2011

Nos Tempos da Literatura ...............



Márcia Camargos
22, o ano em que as elites acertaram

A jornalista que se especializou na intelectualidade brasileira da primeira metade do século 20, diz que os organizadores da Semana de Arte Moderna puseram São Paulo no mapa das companhias artísticas européias

Por Roberto Lopes

No Brasil, criticar as elites econômicas e sociais é quase um esporte. A jornalista Márcia Camargos – dona de um pós-doutorado em História na USP – ousa dizer o contrário.

Nesta entrevista exclusiva à Leituras da História, Márcia, que mês passado foi uma das atrações da FLIP (Festival Literário Internacional de Paraty), afirma: foram os ricos empresários do café e de outros segmentos produtivos de São Paulo que viabilizaram a Semana de Arte Moderna de 1922 – a mais renovadora manifestação cultural de amplo espectro já havida no país a qualquer tempo.

“Ela foi espontânea, casual, era para acontecer numa livraria, e virou uma bola de neve”, diz a escritora, “resultando no sucesso marcante que conhecemos hoje”.

Marcia nasceu em Belo Horizonte, em 1955, e é uma das maiores especialistas no universo intelectual brasileiro da primeira metade do século 20. Ela escreveu, entre outros, A Semana de 22: entre vaias e aplausos (2002), Villa Kyrial: crônica da Belle Époque paulistana (2001) e Entre a vanguarda e a tradição: os artistas brasileiros na Europa – 1912-1930, lançado este ano. Considerada uma das principais especialistas em Oswald de Andrade e curadora da obra de Monteiro Lobato (ela escreveu, em coautoria, a biografia Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia, de 1997), também publicou, ano passado, a crônica de viagem O Irã sob o chador. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Leituras da História – O que a levou a escrever A Semana de 22: entre vaias e aplausos, livro em que a senhora resgata o movimento como um divisor de águas?
Márcia Camargos – Abordei esse tema porque o evento acarretou um prejuízo considerável a seus organizadores, e foi também bastante difamado por boa parte da imprensa da época. A Semana de 22 recebeu mais vaias que aplausos, e, apesar disso, até hoje continua despertando muito interesse. Eu precisei mergulhar no universo intelectual da época, examinar um grande número de documentos e consultar uma bibliografia considerável. Mais do que identificar causas e efeitos, ou simplesmente relatar os fatos, procurei mostrar o festival modernista sob diversos ângulos, numa abordagem crítica que revela aspectos pouco visitados pela bibliografia e também apontando algumas ambiguidades, tanto do movimento como da reflexão que ele provocou.
LDH – E apesar de toda essa repercussão, não lhe parece que ele resultou de voluntarismos, de uma mobilização até certo ponto descoordenada?
MC – Foi totalmente descoordenado! O que aconteceu foi um movimento espontâneo, casual... era para ser numa livraria, depois saíram correndo para alugar o Teatro Municipal...
LDH – Mas um evento que acabou tendo um mérito enorme...
MC – Isso. A Semana de 22 foi o primeiro ato público daquilo que, um pouco mais tarde, viríamos a conhecer como Modernismo. Foi uma dessas coisas que estavam no lugar certo na hora certa... A partir desse movimento é que surgiriam o Pau-Brasil, Antropofagia, Macunaíma... Em 22 o entendimento que temos hoje do Modernismo ainda não existia. Havia sim, quem falasse ‘nos Modernos’ ou em ‘pruridos novos’, mas o Modernismo com a característica de alguma coisa que tem normas, ainda não existia. Posso me lembrar do relato feito por Menotti del Picchia sobre uma leitura de Oswald de Andrade que aconteceu na Casa Trianon, em janeiro de 1921, onde hoje é o MASP. Eles integravam o “Grupo dos Modernistas”, também conhecido como “Grupo dos Futuristas”, mas insisto: o Modernismo, como o conhecemos hoje, ainda não existia. E há outra coisa que não deve ser esquecida: a Semana de 22 foi uma coisa de grã-finos...
“ Desde os anos de 1910 que a cidade vinha incorporando equipamentos urbanos, mas a agenda cultural ficou para trás, apequenada. Foi aí que surgiram pessoas como Marinette Prado, mulher do Paulo Prado, uma francesa de inteligência viva”
Oswald de Andrade
LDH – Esse é um tema delicado, porque no Brasil atacar as elites é quase um divertimento popular...
MC – Pois é, mas a verdade é que o movimento surgiu no espaço do status quo, financiada pela elite cafeeira, pelo voluntarismo dessas pessoas, em um tempo muito difícil para a arte em São Paulo...
LDH – Difícil como?
MC – Difícil porque São Paulo estava fora do mapa cultural, ou artístico, do país. As grandes companhias de espetáculos européias iam ao Rio e de lá seguiam de navio diretamente para Buenos Aires. São Paulo não existia nesse roteiro delas pela América do Sul.
LDH – Esse parece ser outro ponto interessante: a função política da Semana de 22...
MC – Desde os anos de 1910 que a cidade vinha incorporando equipamentos urbanos, mas a agenda cultural ficou para trás, apequenada. Foi aí que surgiram pessoas como Marinette Prado, mulher do Paulo Prado, uma francesa de inteligência viva, voluntariosa, que se envolveu na organização na Semana de 22 com o espírito de quem já assistira as festas multiculturais na França, que reuniam festivais de pintura, música, declamação de versos e até moda. Isso lembra muito a nossa Semana de 22, não lembra?
“ É preciso deixar claro que este foi um movimento organizado por paulistas, e sem que eles abrissem mão disso. Foi bem aquela coisa: ‘Não sou conduzido, conduzo’, que é o lema dos paulistas ”
LDH – E apesar de toda essa energia, os organizadores do movimento tiveram a sensação de que o tiro havia saído pela culatra?
MC – Eles tiveram a sensação de que toda aquela inovação havia saído do controle, de terem patrocinado um grande ‘mico’. A burguesia saiu daquelas apresentações enojadas. Houve vaias, houve quem atirasse batatas no palco... Foi um escândalo.
LDH – Os organizadores da mostra segregaram a classe artística residente no Rio?
MC – Bom, em primeiro lugar é preciso dizer que aqueles eram tempos em que as comunicações eram péssimas, ou, pelo menos, muito menos abrangentes do que são hoje. Portanto, não podemos falar de uma mobilização a nível nacional, e nem mesmo de uma repercussão nacional. Mas eu diria que não, não houve uma segregação da classe artística do Rio. Foram feitos vários convites a artistas lá radicados. Sei que houve um convite, por exemplo, a Manuel Bandeira, que se dava muito bem com o Mário de Andrade, aqui em São Paulo.
O Bandeira não veio à Semana de 22, ele tinha uma saúde frágil, mas pouco tempo depois esteve em São Paulo, e conheceu muitos, ou a maior parte, dos organizadores do movimento. Existiu até a história de um ônibus Pullman que seria disponibilizado para trazer esses convidados a São Paulo. Agora sim: é preciso deixar claro que este foi um movimento organizado por paulistas, e sem que eles abrissem mão disso. Foi bem aquela coisa: ‘Não sou conduzido, conduzo’, que é o lema dos paulistas. Está na bandeira do Estado...
LDH – Foi um movimento que também excluiu a arte negra...
MC – É verdade, não tinha violão, um instrumento extraordinariamente popular nos bairros cariocas, não tinha arte negra. Foi coisa de paulista. Exitosa, marcante, extremamente renovadora, mas coisa de paulista.

REVISTA - LEITURA DA HISTORIA

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