Do enfeite indígena à maconha
Escavações para construção do polo petroquímico revelam turbulento passado do Estado do Rio
Publicada em 27/08/2011 às 10h35m
Renato Grandelle (renato.grandelle@oglobo.com.br)
RIO - Não é de hoje que Itaboraí, lar do futuro Complexo Petroquímico do Rio (Comperj), é uma região concorrida. Nos últimos quarenta séculos, aquela região foi habitada pelos pré-históricos sambaquieiros, por ceramistas tupinambás, jesuítas e escravos. De boa parte dessa trajetória sobraram objetos de poucos centímetros, mas grande relevância arqueológica. Entre eles, um tembetá, enfeite tupi pela primeira vez encontrado no estado, e cachimbos, onde a descoberta de maconha surpreendeu os pesquisadores.
Estes objetos estão reunidos a partir de hoje no Museu Nacional. A exposição "Santo Antônio de Sá: primeira vila do Recôncavo da Guanabara" conta a história da ocupação estabelecida ali pelos portugueses em 1697. Pioneiro no interior fluminense, o assentamento seria abandonado apenas no século XIX, devastado por epidemias de febre, malária e tifo.
A mostra representa um esforço para estudar as heranças culturais dispersas nos 45 sítios arqueológicos da região. Embora volte os holofotes para Santo Antônio de Sá, a exposição não deixa de abordar os povos que dominaram o Norte fluminense muito antes dos lusitanos.
- Para a instalação de qualquer grande obra no país, como o Comperj, é necessário fazer uma investigação arqueológica da região, como a que operamos agora - ressalta Madu Gaspar, arqueóloga do Museu Nacional e coordenadora da exposição. - E houve muitas surpresas em nosso trabalho. Encontramos novos registros de sambaquis e da ocupação africana. Suspeitávamos que havia escravos por ali, mas ainda não tínhamos qualquer evidência. Conseguimos finalmente este testemunho, descobrindo uma coleção de mais de cem cachimbos feitos pelos negros e seus descendentes.
Tupinambás, os primeiros escravos
Muito antes de a sociedade do século XVIII encher seus cachimbos com maconha, as terras eram dos sambaquieiros. Quatro mil anos atrás, esta população já estava distribuída por toda a costa fluminense, onde pescava e construía portos para chegar com suas canoas.
Os sambaquieiros habitavam locais secos, embora o mais próximos possível do mar. A marca registrada desse povo eram os sambaquis, um amontoado de conchas, restos de alimentos e artefatos, que ocasionalmente serviam como tumbas.
- Foi o primeiro povo a colonizar a região, e o fez numa área diferente à de seus sucessores - compara Madu. - Enquanto eles estavam sempre na baía, os tupinambás buscavam rios pequenos, porque, para eles, o mais importante era encontrar terras onde pudessem praticar a agricultura.
Proveniente da Amazônia, os tupinambás expandiram-se a partir do início da era cristã, sempre pela guerra. Os confrontos com os índios macro-jê perduraram séculos e foram testemunhados pelos portugueses, que aproveitam a rivalidade tribal para unir-se cada hora a um dos lados. Os vencidos lhes serviam como escravos.
Estranhos às terras tropicais e ao seu cultivo, os portugueses priorizam a ocupação das áreas indígenas - assim, bastava delegar-lhes o trabalho no campo.
- Os portugueses não sabiam sequer se os nativos tinham alma e se deveriam ser reconhecidos como gente. Mas isso não os impediu de depender do conhecimento desses mesmos índios para sobreviver - observa Madu. - Houve, porém, uma inadequação dos índios àquela atividade. O estilo de vida deles não era compatível a um trabalho rotineiro e sistemático no campo.
Cansados de uma tarefa na qual não viam sentido, os tupinambás fugiram para áreas vizinhas - alguns não saíram a tempo de evitar uma represália violenta dos portugueses. Sem ter quem os sustentasse naquele povoado, fundado em 1648, e renomeado Vila Santo Antônio de Sá em 1697, os portugueses recorreram aos escravos africanos que já serviam como motor da economia carioca.
Os tupinambás se mudaram para os arredores da vila - ainda brigando entre si. Um de seus legados, que integra a exposição no Museu Nacional, é o tembetá. Trata-se da primeira vez que os pesquisadores identificam este adorno, de apenas três centímetros, no estado.
A peça era considerada uma joia pelos tupis no século XVI. Graças a ela, foi possível saber como essas tribos distribuíram-se em terras fluminenses nas primeiras décadas após o Descobrimento.
- Era um adereço usado pelos homens desde a infância - explica Madu. - Quando a criança nascia, faziam um pequeno orifício em seu lábio, que aumentava com o tempo. Este era verde, talvez de quartzo, e ficava com uma protuberância para o lado de fora. Podia, também, ser usado na orelha, o que vem sendo feito hoje por muitos jovens.
Sucessores dos índios, os escravos assumiram a agricultura e a produção de açúcar - à época uma especiaria - e de lenha. A madeira cortada do Norte fluminense era levada de barco para o Rio, onde abastecia lareiras e fogões.
Assim como os tupis, os africanos também deixaram objetos curiosos para os arqueólogos desvendarem. Um deles era a fôrma do pão de açúcar, que tinha furinhos no fundo. A cana era espremida e o açúcar ficava no molde, enquanto o melaço escorria para fora dele.
- Foi esta fôrma que deu o nome do Pão de Açúcar, nosso cartão postal - destaca Madu. - Depois, o açúcar era usado em chás. Ao contrário de hoje, em que é consumido em larga escala, no século XVIII este produto era muito caro.
Outra curiosidade descoberta entre os vestígios da vila é uma coleção de dezenas de cachimbos africanos. Chamou a atenção dos pesquisadores o tamanho da pipa, muito pequena em alguns exemplares. Seria o indício de que eles receberiam algo mais forte do que o fumo comum. E a suspeita foi confirmada pela análise de microvestígios ali encontrados.
- Havia restos de maconha nos cachimbos - conta Madu. - Ainda precisamos fazer mais análises para confirmar. Se for isso mesmo, é muito provável que a substância fosse fumada por todos as classes sociais, e não apenas escravos. Houve uma mistura muito grande entre brancos e negros. Há gravuras da época mostrando até mesmo as mulheres europeias com os cachimbos.
No século XVIII, madeira e produtos agrícolas contribuíram para que a vila atingisse seu apogeu econômico. O centro nervoso local era o Convento de São Boaventura, administrados pelos jesuítas. Mas tudo foi reduzido a ruínas a partir dos anos 1800, quando a região, encharcada e pantanosa, foi vítima de seguidos surtos de doenças. Sem qualquer domínio sobre saneamento básico, restou à população - cujo tamanho ainda é ignorado pelos arqueólogos - mudar-se para áreas mais elevadas.
Os vestígios do convento sobreviveram até hoje por se localizarem numa propriedade privada, e num local de difícil acesso. Ao redor dele estão os campos de onde saíram, por exemplo, as faianças, porcelanas portuguesas e espanholas com brasões de famílias que deram origem ao sobrenome de grande parte dos brasileiros - Silva entre eles. A exposição, que conta com o apoio da Petrobras e da Sociedade dos Amigos do Museu, está aberta ao público de terça a domingo, das 10h às 16h, até o dia 26 de novembro. A entrada custa R$ 3.
JORNAL O GLOBO - 27/08/11