terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Gente que você não conhece, mas devia conhecer - Hebe Camargo




Te Contei, não ? - Depoimento de Rita Lee



Eu tinha 13 anos, em Fortaleza, quando ouvi gritos de pavor. Vinham da vizinhança, da casa de Bete, mocinha linda, que usava tranças. Levei apenas uma hora para saber o motivo. Bete fora acusada de não ser mais virgem e os irmãos a subjugavam em cima de sua estreita cama de solteira, para que o médico da família lhe enfiasse a mão enluvada entre as pernas e decretasse se tinha ou não o selo da honra. 

 Como o lacre continuava lá, os pais respiraram, mas a Bete nunca mais foi à janela, nunca mais dançou nos bailes e acabou fugindo para o Piauí, ninguém sabe como, nem com quem. Eu tinha apenas 14 anos, quando Maria Lúcia tentou escapar, saltando o muro alto do quintal da sua casa para se encontrar com o namorado. Agarrada pelos cabelos e dominada, não conseguiu passar no exame ginecológico. O laudo médico registrou vestígios himenais dilacerados, e os pais internaram a pecadora no reformatório Bom Pastor, para se esquecer do mundo. Realmente; esqueceu, morrendo tuberculosa. Estes episódios marcaram para sempre e a minha consciência e me fizeram perguntar que poder é esse que a família e os homens têm sobre o corpo das mulheres? 

Ontem, para mutilar, amordaçar, silenciar. Hoje, para manipular, moldar, escravizar aos estereótipos. Todos vimos, na televisão, modelos torturados por seguidas cirurgias plásticas. Transformaram seus seios em alegorias para entrar na moda da peitaria robusta das norte americanas. Entupiram as nádegas de silicone para se tornarem rebolativas e sensuais, garantindo bom sucesso nas passarelas do samba. Substituíram os narizes, desviaram costas, mudaram o traçado do dorso para se adaptarem à moda do momento e ficarem irresistíveis diante dos homens. E, com isso, Barbies de facaria, provocaram em muitas outras mulheres - as baixinhas, as gordas, as de óculos - um sentimento de perda de auto-estima. Isso exatamente no momento em que a maioria de estudantes universitários (56%) é composta de moças. Em que mulheres se afirmam na magistratura, na pesquisa científica, na política, no jornalismo. E, no momento em que as pioneiras do minismo passam a defender a teoria de que é preciso feminilizar o mundo e torná-lo mais distante da barbárie mercantilista e mais próximo do humanismo. Por mim, acho que só as mulheres podem desarmar a sociedade. Até porque elas são desarmadas pela própria natureza. Nascem sem pênis, sem o poder fálico da penetração e do estupro, tão bem representado por pistolas, revólveres, flechas, espadas e punhais. Ninguém diz, de uma mulher, que ela é de espadas. Ninguém lhe dá, na primeira infância, um fuzil de plástico, como fazem com os meninos, para fortalecer sua virilidade e violência. As mulheres detestam o sangue, até mesmo porque têm que derramá-lo na menstruação ou no parto. Odeiam as guerras, os exércitos regulares ou as gangues urbanas, porque lhes tiram os filhos de sua convivência e os colocam na marginalidade, na insegurança e na violência. É preciso voltar os olhos para a população feminina como a grande articuladora da paz. E para começar, queremos pregar o respeito ao corpo da mulher. Respeito às suas pernas que têm varizes porque carregam latas d'água e trouxas de roupa. Respeito aos seus seios que perderam a firmeza porque amamentaram seus filhos ao longo dos anos. Respeito ao seu dorso que engrossou, porque elas carregam o país nas costas. São as mulheres que irão impor um adeus às armas, quando forem ouvidas e valorizadas e puderem fazer prevalecer à ternura de suas mentes e a doçura de seus corações. 

- "Nem toda feiticeira é corcunda. - Nem toda brasileira é só bunda.“ 

Texto: Rita Lee

domingo, 29 de janeiro de 2012

Crônica do Dia - Pinheirinhos - Plínio de Arruda Sampaio



A reintegração de posse no Pinheirinho, em São José dos Campos, deveria ter acontecido? 

Não 

O conluio entre os poderes econômico e político 

Até quando os noticiários dos jornais e da televisão mostrarão as cenas degradantes dos despejos de famílias sem-teto? 

A mais recente delas, realizada em uma área de São José dos Santos, expulsou famílias que ocupavam, há oito anos, uma área periférica da cidade. 

Oito mil policiais foram desviados das suas funções de manutenção da segurança da população para essa inglória tarefa. 

Agindo com violência, esses policiais feriram as pessoas, destruíram as casas e os objetos dessa pobre gente, atingindo até as crianças. Foi uma barbaridade. 

O promotor público, obrigado por lei a presenciar essas operações, brilhou pela ausência. 

Chama a atenção igualmente a ausência de parlamentares, especialmente daqueles pertencentes aos partidos de esquerda. 

Com a exceção honrosa do senador Eduardo Suplicy, é muito raro ver parlamentares presentes nesses eventos com a finalidade de prevenir excessos da força policial. 

O mais incrível é que o mesmo Estado que realizou o despejo estava negociando com o proprietário do terreno a aquisição da área, para vender aos ocupantes. Os advogados dessas famílias fizeram um grande esforço para demonstrar à juíza do processo que a solução do problema era uma questão de dias. 

Indiferente ao drama humano que sua decisão causaria, a juíza aplicou mecanicamente a lei e determinou o despejo. Não contente, um juiz de direito acompanhou o despejo e indeferiu de plano, em pleno local, todas as petições que foram apresentadas pelos advogados com o proposito de evitar a execução do mandado. Só se justificaria a presença de um magistrado em eventos desse tipo se fosse para prevenir excessos da força policial. No entanto, a presença de um juiz de direito no Pinheirinho não causou nenhuma inibição nos soldados, em uma evidente demonstração do conluio entre o poder econômico e o poder político nos Estados hegemonizados pela burguesia. 

Nesses Estados, a prioridade primeiríssima é sempre a defesa do sacrossanto direito de propriedade. Todo o resto -os direitos humanos, a integridade física, os pequenos pertences das pessoas- fica subordinado ao direito maior. 

Por isso, o direito à propriedade de um milionário relapso, que deve milhões de tributos não pagos ao Estado brasileiro, justifica o espancamento de pessoas e a destruição de seus bens. 

E agora? Como ficam as famílias despejadas? Quem cuidará delas? Elas obviamente irão ocupar outra área. Serão novamente expulsas e voltarão a sofrer os mesmos vexames e as mesmas violências. Isso acontece e continuará acontecendo enquanto não houver uma legislação que coíba a especulação imobiliária, porque é ela que causa o aumento extorsivo do preço dos terrenos e, desse modo, exclui as famílias pobres do mercado. Pacífica, despolitizada e sem organização, essa população tem aceitado a situação intolerável sem recorrer à violência. Até quando? 

Isso vai continuar acontecendo enquanto os partidos de esquerda deixarem de cumprir seu papel de conscientizar e organizar essa massa, para que ela resista a esses ataques de armas na mão. Na hora em que isto for uma realidade, não haverá violência, porque a consciência dessa realidade será suficiente para manter os cassetetes na cintura. 


 . PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO, 81, advogado, foi deputado federal pelo PT-SP (1985-1991), consultor da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) e candidato a presidente pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade)

sábado, 28 de janeiro de 2012

Te Contei, não ? - Você sabe o que é uma Conotação ?




Conotação é a associação subjetiva, cultural e/ou emocional, que está para além do significado estrito ou literal de uma palavra, frase ou conceito. Além da sua denotação, o sentido referencial, literal, cada palavra remete a inúmeros outros sentidos, virtuais, conotativos, que são apenas sugeridos, evocando outras idéias associadas, de ordem abstrata, subjetiva. 

 Bonita definição, não? 

 Mas você não entendeu nada, não foi ? 

Então vamos lá ... 

Conotação é quando você pega uma palavra que já tem um significado específico e a emprega em um contexto já com um outro significado, criado por você. 

 Quer um exemplo ? 

Assista ao vídeo e observe o sentido das palavras "pinguim", "geladeira", "xaxim" e "trepadeira" nesta debochada canção da nossa mestra da Conotação, Rita Lee. 






 Pega Rapaz 

Rita Lee 

 Pega rapaz 
Meu cabelo à la garçon 
Prova o gosto desse ton-sur-ton 
Do meu baton na tua boca 
 Alô doçura 
Me puxa pela cintura 
Tem tudo a ver o meu pinguim 
Com a tua geladeira 
 Nós dois afim 
De cruzar a fronteira 
Numa cama voadora, fazedora de amor 
De frente, de trás 
Eu te amo cada vez mais 
De frente, de trás 
Pega rapaz, me pega rapaz 
De frente, de trás 
Eu te amo cada vez mais 
Pega rapaz, me pega rapaz 
De frente, de trás, cada vez mais! 
 Pega rapaz 
Meu cabelo à la garçon 
Prova o gosto desse ton-sur-ton 
Do meu baton na tua boca 
 Alô doçura 
Me puxa pela cintura 
Tem tudo a ver o teu xaxim 
Com a minha trepadeira 
 Nós dois pra lá 
Bem pra lá de Nirvana 
Numa cama voadora, fazedora de amor 
De frente, de trás 
Eu te amo cada vez mais 
De frente, de trás 
Pega rapaz, me pega rapaz 
De frente, de trás 
Eu te amo cada vez mais 
Pega rapaz, me pega rapaz 
De frente, de trás 
Cada vez mais

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Crônica do Dia - O preconceito no armário - Ruth de Aquino



 O preconceito fica guardado nas gavetas das coisas ditas e ouvidas. Até que sai de forma irracional

 RUTH DE AQUINO 

Ele está ali no meio das roupas que vestimos a cada dia. Invisível, sem cheiro. É como se fosse uma caspa que só os outros enxergam. O preconceito fica guardado nas gavetas das coisas ditas e ouvidas, em casa, na escola, no trabalho. Escondemos, por vergonha. Ou, o que é pior, nos recusamos a reconhecer que ele existe. Até o momento em que o preconceito sai do armário de forma irracional. 

Foi o que aconteceu na USP com um PM, o sargento André Ferreira. O sargento parecia uma pessoa normal, dialogando com universitários que ocupavam um espaço da universidade. Pedia que se retirassem dali. De repente, viu ao fundo um rapaz negro, com cabelo rasta, de tranças longas. 

O sargento se transformou num ogro. “E você aí, é estudante? Cadê a carteirinha?”, perguntou. O rapaz respondeu: “Sou. Dou a minha palavra”. Mas não mostrou documento. O sargento se descontrolou: apontou a arma, puxou-o pelos cabelos e pela roupa, empurrou, agrediu e o enxotou. No fim, Nicolas Menezes Barreto tirou a carteira de estudante da USP do bolso. O vídeo (assista no blog Bombou na Web) é de uma brutalidade que atinge qualquer um que tenha noção de direitos humanos. A Polícia Militar afastou o sargento por despreparo e descontrole emocional. 

Mas por que o rapaz negro não mostrou logo o documento que o policial branco exigiu? Insolente, não conhece o seu lugar. É o que muita gente boa diz por aí. Entendo a reação do estudante à atitude ofensiva do PM. Foi uma cena de preconceito racial explícito. O sargento não teria agido assim com um branco. Nicolas sabia disso. Deve ter sido a enésima vez em que enfrentou suspeita pela cor da pele. 

Por muito menos, já me recusei a mostrar a carteira de jornalista. Cobri como repórter a temporada de Fórmula 1 em 1990. A cada corrida, eu era abordada por fiscais do autódromo nos bastidores. Os fiscais não pediam a credencial de meus colegas homens. No terceiro país em que isso se repetiu, eu estava acompanhada de um amigo sem a credencial adequada. O fiscal exigiu meu documento. Eu disse: “Não vou mostrar. Vá pedir ao Bernie Ecclestone (o homem forte da F-1)”. Era evidente que, só por eu ser mulher, eles desconfiavam que eu fosse uma maria gasolina da vida. Depois de um tempo, irrita. Esse e outros episódios me revelaram que eu trafegava muitas vezes numa pista masculina. 

 Sou contra cotas sexuais ou raciais. O mérito determina uma promoção. Mas o último Censo do IBGE me surpreendeu. A educação deveria ter reduzido mais a desigualdade entre os sexos. A mulher tem hoje no Brasil dois anos de escolaridade a mais que o homem, mas ganha em média 30% menos que ele. E, quanto mais instruída é a mulher, maior a diferença entre seu salário e o do homem com a mesma escolaridade. Dos brasileiros que ganham acima de 20 salários mínimos, os homens são mais de 80%. Só um punhado de mulheres chega à direção e a cargos executivos. Existe ou não uma discriminação sutil no mundo que manda? 

Os gays sofrem mais. O ator Marcelo Serrado não deseja que sua filha de 7 anos veja um beijo gay na novela das 21 horas. Ele faz o caricato Crô, um dos personagens mais populares de Fina estampa. Serrado acha que homossexuais só devem se beijar na televisão depois das 23 horas. Assassinatos, traições, prostituição, porradas do marido na mulher, isso tudo passa no horário nobre. “Detesto a homofobia, mas as barreiras devem ser quebradas aos poucos”, disse Serrado. “Tenho vários amigos gays, um foi jantar na minha casa na sexta-feira passada.” 

Homossexuais influentes lastimaram a declaração de Serrado. “Ele tem o direito de educar sua filha como quiser”, diz Alexandre Vidal Porto, diplomata brasileiro, em Tóquio, com 46 anos e relacionamento estável há nove. “O que acho péssimo é o ator, mesmo não querendo que a filha presencie um beijo gay, declarar que não é homofóbico. Parece aquela senhora que diz não ser racista, mas preferiria que a filha não se casasse com um negro. Ou seja, Marcelo Serrado é um homofóbico no armário. Precisa sair dele.” Vidal Porto é casado em Nova York e seu marido, americano, tem passaporte diplomático e seguro de saúde concedidos pelo Itamaraty: “Como sabemos nos defender – ele é advogado por Yale, e eu por Harvard –, é difícil nos discriminar”. 

O beijo é uma manifestação de afeto. Se os telejornais mostram casais gays reais se beijando em casamentos coletivos, por que na ficção a cena seria imprópria a crianças e adolescentes? 

Em 1978, o deputado Harvey Milk foi morto por defender os homossexuais. Dez anos antes, em 1968, o Nobel da Paz Martin Luther King foi morto por defender os negros. Há quase um século, em 1913, a inglesa Emily Wilding Davison morreu ao defender o voto das mulheres. O mundo mudou, felizmente. Mas não o bastante.

Crônicas do Dia - A mãe natureza e a mãe pátria - Lya Luft





 A mãe natureza sempre teve seus contrastes, seus caprichos, seus ardis, encantos e horrores. A um tempo fera e fada, pode nos destruir com um terremoto, ou avalanche, ou um deslizamento, e nos levar ao paraíso com suas belezas e surpresas. Diante dela somos a um tempo reis e pobres desamparados. Não sei se é apenas por influência das nossas perversas atividades humanas, industriais e outras, que ela anda resmungando, mas o que se sabe é que sempre, em milhões e milhões de anos, houve alternâncias de bonança e terror, épocas de gelo, de seca, de calor, de vida e destruição. Não sei se somos perniciosos, pequenas cracas grudadas feito parasitas na pele rugosa dessa velhissima bruxa, mas, seja como for, as coisas não andam calmas. 

 Entre nós, de um lado chove demais, no Rio, em Minas e outros locais. Assim se tragam vidas humanas, casas, lares, passado e futuro de muitíssima gente; de outro, a seca atormenta, angustia e empobrece quem com grande dificuldade e pouco apoio se dedica a produzir alimento. As notícias dos jornais e televisão são de cortar o coração: mais ainda do que a dor atual, a vergonha que é ver em Nova Friburgo, por exemplo, carros atolados na lama há um ano, casas destruídas ou desaparecidas totalmente no barro, montanhas de escombros, um teleférico encarapitado num morro, e gente desalojada, em abrigos, em casa de amigos, em barracas,há um ano. 

 Aí entra a mãe pátria: o que anda fazendo para socorrer tanto sofrimento inocente? O que cumpriu daquilo que prometeu? Imagino que as autoridades tenham destinado bom dinheiro e amplos recursos para resolver essa desgraceira, e não submeter o povo sofrido a tanta indignidade. Naturalmente recursos existem, não somos a sexta potência mundial? Não damos aumentos vastos a deputados, senadores, juízes e outros? Não temos planos mirabolantes para copas e olimpíadas e demais esportividades? 

 Não parece que muita coisa tenha ido além de promessas, ou os carros não estariam mais atolados na lama, as casas esmagadas ou soterradas no barro, os cadáveres nunca encontrados teriam seu repouso decente, as pessoas não andariam curvadas ao peso do abandono, da decepção e do sofrimento humilhante. Da falta de casa, de trabalho, de saúde, de esperança. Da decepção com todas aquelas promessas de um ano atrás. Ou mais ainda, pois em Niterói, aquele Morro do Bumba, que parou em espanto e emoção o país inteiro há um ano e mais, deve continuar na mesma. A mãe natureza exerce seu papel de bela ou cruel: nós, a mãe pátria, como exercemos a nossa finalidade de cuidar bem de nossos filhos? Ninguém mora em encostas perigosas porque deseja, mas possivelmente porque não tem dinheiro, instrução, amparo, para viver de melhor forma. Ninguém quer construir seu lar, por modesto que seja, onde seus filhos serão sepultados em lama e horror. Oportunidade de vida digna é o que a mãe pátria tem obrigação de dar a seus filhos, todos, sobretudo os mais desassistidos. Aliás, não haver desassistidos deve ser, e imagino que seja, o objetivo maior de todo bom governante, fugindo a politicagens, acordos, jogos de poder, troca de favores e desmanchando estruturas perversas. 

Nunca entendi de política, sempre me deu mais medo do que interesse, e ainda me assombra nossa facilidade para desviar os olhos das grandes dores do povo. Admiro e respeito o esforço sobre-humano de quem, na mais alta posição, tem realmente vontade e determinação de acenar, de ajudar, de amparar, de verdadeiramente mudar alguns rumos e consertar velhos hábitos ruins desta mãe pátria nossa. As previsões são sombrias quanto ao clima, e não muito animadoras quanto à atitude e providências imediatas que precisam ser tomadas, superando divergências, egoísmos, competições menos nobres, interesses menos dignos, em favor dos que tanto e há tanto tempo aguardam desesperadamente soluções imediatas, sem desculpas, sem enganos, sem cruéis adiamentos ou mentiras. Que nos ajudem os deuses, todos, e que nos abençoem principalmente os da esperança finalmente atendida.

Revista Veja 

Te Contei, não ? - Lobato e os Negros



Os livros de Monteiro Lobato, considerados racistas pelo Conselho Nacional de Educação em 2010, passaram a ser rejeitados pelos negros, certo? 

Errado. 

Uma pesquisa feita pela Biblioteca Nacional com 800 negros em bibliotecas públicas do país mostrou que Lobato continua em primeiro lugar na lista dos autores brasileiros preferidos dos entrevistados. 

Paulo Coelho aparece na segunda posição, seguido de Jorge Amado.

www.veja.com

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Gente que você não conhece, mas vale a pena conhecer ! - Carmem Miranda


Te Contei, não ? - A maldição do petróleo - Revista Veja Rio



Com favelização crescente, a enriquecida e problemática Macaé é alvo da primeira ocupação no modelo das UPPs fora da capital

 por Caio Barretto Briso 


 A cidade dos condomínios de luxo sofre com a criminalidade O barulho de obra é trilha sonora permanente em Macaé. De prédios comerciais a condomínios de luxo à beira-mar, impressiona a quantidade de empreendimentos em construção no município do norte fluminense distante 200 quilômetros da capital. Chamam atenção também as cifras envolvidas. Algumas unidades chegam a custar 3 milhões de reais, preço compatível com o de bairros valorizados do Rio. Quem tem cacife para tanto? Os altos funcionários da indústria petroleira, atividade responsável por uma guinada na vida dessa cidade. Desde que, na década de 70, a Petrobras começou a extrair o ouro negro em seu litoral, Macaé ganhou um enorme empuxo econômico. É o segundo município do país que mais arrecada com royalties, uma compensação pelos riscos da exploração. No ano passado, seus cofres receberam 480 milhões de reais. Um privilégio, sem dúvida, mas que apresenta também uma contrapartida preocupante. Por negligência do poder público, faltou planejamento urbano eficaz para dar vazão à grande migração de mão de obra. O município assistiu impassível ao estouro populacional e suas consequentes mazelas, entre as quais a favelização e a violência. Assim, com exceção da Região Metropolitana, Macaé se tornou o ponto mais problemático para o setor de segurança pública estadual. 

 Há duas semanas, o município protagonizou cenas típicas da metrópole ao virar alvo de uma grande operação policial para reprimir o tráfico de drogas nas favelas de Nova Holanda (homônima da carioca), Nova Esperança, Malvinas e Botafogo, situadas a apenas 1 quilômetro do epicentro comercial da cidade. Foi o desfecho de uma intervenção iniciada no ano passado, que contou com a participação de agentes civis, militares e federais. A ação segue o modelo das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs), com a ocupação permanente da região. “A única diferença para as UPPs é que os policiais comunitários não serão recém-formados”, destaca o tenente-coronel reformado Edmilson Jório, coordenador do Gabinete de Gestão Integrada daquele município. 

 Nas ruas para combater o problema, operação policial ocupou as favelas próximas ao centro 

Resultado de uma equação que leva em conta a abastança financeira e o crescimento desordenado, Macaé replica os contrastes frequentes nas grandes aglomerações urbanas . Seus índices são extremos, seja para o bem, seja para o mal. Encaixam-se nesse segundo caso os números relativos à segurança. De acordo com o Mapa da Violência divulgado na terça passada pelo instituto de pesquisas Sangari em parceria com o Ministério da Justiça, ocorrem no município 51 homicídios anuais para cada grupo de 100 000 habitantes, mais que o dobro do número registrado na capital. A comparação fica ainda pior se levarmos em consideração o último ano. Enquanto houve uma queda significativa nesse tipo de crime no Rio, em Macaé, ao contrário, ele cresceu. O panorama negativo atinge principalmente as favelas, onde vive mais de um quinto da população local, calculada pelo IBGE em 210 000 habitantes, mas estimada pela prefeitura em cerca de 370 000. Quando a Petrobras se instalou ali, o lugar não passava de um sossegado balneário com 34 000 pessoas, na maioria de famílias de pescadores. 

 A descoberta de óleo na camada pré-sal, que pode levar as reservas brasileiras a dar um salto de 13 milhões para 80 milhões de barris, causa expectativa sobre como reagirá Macaé a mais essa previsível enxurrada de dinheiro - e gente. Caso não sejam mudadas drasticamente as regras de repartição dos royalties, estima-se que a cidade receberá nos próximos cinco anos mais 70 000 moradores, a esmagadora maioria sem a qualificação necessária para se empregar no ramo petrolífero. A possibilidade de o ciclo perverso se intensificar virou um pesadelo para os governantes. “Meus antecessores não entenderam o processo”, afirma a atual prefeita, Marilena Garcia, do PT. Para evitar novos problemas, foi criado o projeto Planejando Macaé, que visa ao reordenamento urbano por meio de grandes obras. Com o objetivo de repensar a cidade, foi contratado o arquiteto curitibano Jaime Lerner. Único vereador da oposição, Danilo Funke mostra ceticismo com relação ao futuro. “A pujança econômica não foi acompanhada de desenvolvimento social”, diz ele. “Essa história de eldorado é pura ilusão. Reverter o quadro será difícil.” Não é tão complicado assim. Basta aplicar corretamente a fortuna proporcionada pelo petróleo. Dinheiro não pode ser problema. A falta dele, sim.

Crônica do Dia - A palavra e o sexo - Ruth Aquino




 É justo que a sociedade condene automaticamente um homem acusado de estupro? 

RUTH DE AQUINO 

Era uma vez Emir. Imigrante marroquino, em Paris, apaixonou-se por uma belga. Ela foi morar no apartamento que ele alugava. Emir é garçom e músico. Brigas azedaram o amor e o casal se separou. Um dia, ela telefonou. Insistiu num encontro para discutir a relação. Foi para a casa dele. Beberam. Fizeram sexo. Na manhã seguinte, cedo, ela foi à delegacia e o acusou de estupro. Disse que Emir a forçou a fazer o que não queria. 

Não havia marca de violência. Era a palavra do homem contra a da mulher. Ele jurava ser inocente. Afirmou que o sexo tinha sido consentido. Emir contratou advogado, foi julgado e condenado a três anos de prisão. O julgamento estarreceu seus patrões, franceses. Amigos de Emir acharam a condenação sexista e racista. Ele ficou incomunicável um bom tempo. 

Acabo de reencontrar Emir, servindo mesas novamente em Paris. Ficou um ano na prisão. Tem uma companhia inseparável: a tornozeleira eletrônica. Flutua entre dois mundos – o de seu apartamento alugado, único bem que conservou, e o restaurante. Se decide, dentro do metrô, mudar a conexão para o mesmo destino, recebe imediatamente um telefonema e é convocado pela Justiça a se explicar. Se escolhe outra rua em seu trajeto, o celular toca. 

Emir é grato ao juiz pela liberdade vigiada, que compara a uma ressurreição. Não quer processar ninguém. Só provar que nunca foi uma ameaça às mulheres. Tenta reconstruir suas economias, porque faliu. Ouviu dizer que a ex se mudou para a Itália com um amigo dele e com a indenização que foi condenado a pagar. Emir sempre foi gentil, atencioso, educado. Está mais calado, por temor e mágoa. 

A lei hoje é mais rigorosa em suspeitas de abuso sexual. A palavra do homem vale bem menos que a palavra da mulher. É justo? Há casos tenebrosos de estupro contra meninas, moças, mulheres, filhas, sobrinhas, pacientes. Podemos concluir então que o homem, pelo poder e força física, tende a estuprar? Podemos nos permitir algumas injustiças escabrosas para equilibrar o jogo? 

“A história fala de homens que submeteram mulheres a viver com medo e intimidadas, e o sexo também se prestou a isso”, diz o psicanalista Sócrates Nolasco. “Todavia, os tempos são outros, e o estupro, prática de alguns homens, passou a ser considerado uma prerrogativa masculina. Algumas mulheres usam essa prerrogativa para manipular ou tirar proveito de uma situação. Acontece nas varas de família, como vingança. Ou no caso da camareira em Nova York com Strauss-Kahn.” Nesta coluna, levada pela gravidade da acusação, o histórico de DSK e a reação da Justiça americana, dei crédito à camareira e me retratei pela precipitação. É justo que a sociedade condene automaticamente um homem acusado de estupro? 

 As fronteiras entre o sexo consentido e o abuso costumam ser claras. Às vezes, não são. Penetramos então no terreno obscuro da subjetividade. O efeito do álcool ou da droga torna a mulher vítima potencial do homem? A mulher adulta precisa saber quem ela leva para a cama ou na cama de quem ela vai parar. E com que fim. Normalmente, não é para conversar ou rezar, mas ela tem o direito de mudar de opinião. Ele também. Se a mulher quiser perder o controle sobre si mesma, dificilmente controlará os atos do outro. 

O que aconteceu com Daniel, do BBB, me pareceu exemplar e simbólico. Antes mesmo de se ouvir Monique, a moça que contracenou com ele as carícias explosivas sob o edredom, a sociedade já condenara o homem. Foi estupro. Foi abuso. Ouvi mulheres indignadas com os comentários dos machistas de plantão: ela pediu, ela estava de sainha, ela o espicaçou. Sempre existirão os ignorantes que acham que uma mulher atraente e sensual pede para ser abusada. Mas ainda assim eu me perguntava: quem disse que a moça sofreu abuso? Ah, ela estava bêbada e não podia discernir o que fazia. 

Argumentei que homens bêbados também são levados para a cama por mulheres levemente mais sóbrias e, no dia seguinte, não se lembram de nada. E nem por isso a mulher é acusada de estupro. Ouvi de amigas que um homem bêbado não consegue transar obrigado. Será? Tem homem que, ao perceber com quem dormiu, pensa: “Eu só posso ter bebido demais”. Machismo meu? Ou vontade de não infantilizar as mulheres e não demonizar os homens? 

O que chocou na semana passada foi a ideia de que um “estupro” teria sido transmitido pelo BBB, um dos programas mais vistos no Brasil, também pelas classes A e B. A ira prematura contra Daniel desabou quando Monique declarou que tudo foi consentido. O comportamento dos participantes de reality shows em todos os países – e na França inclusive – costuma ser inadequado. Não assisto porque não gosto do formato nem me identifico. E você, assiste? 

Mais cruel que os reality shows é o enredo real que aprisionou Emir. A meu ver, ele sempre foi inocente. Mas de que adianta minha opinião?

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Olhares sobre Castro Alves X - Programa Vereda Literária






Olhares sobre Castro Alves IX- Resposta de Machado de Assis à carta de José de Alencar



Resposta de Machado de Assis à carta de José de Alencar, de 18 de fevereiro de 1868 

 Rio de Janeiro, 29 de fevereiro de 1868. 

 Exmo. Sr. — 

É boa e grande fortuna conhecer um poeta; melhor e maior fortuna é recebê-lo das mãos de V. Exa, com uma carta que vale um diploma, com uma recomendação que é uma sagração. A musa do Sr. Castro Alves não podia ter mais feliz intróito na vida literária. Abre os olhos em pleno Capitólio. Os seus primeiros cantos obtêm o aplauso de um mestre. — Mas se isto me entusiasma, outra coisa há que me comove e confunde, é a extrema confiança, que é ao mesmo tempo um motivo de orgulho para mim. De orgulho, repito, e tão inútil fera dissimular esta impressão, quão arrojado seria ver nas palavras de V. Exa. mais do que uma animação generosa. — A tarefa da crítica precisa destes parabéns; é tão árdua de praticar, já pelos estudos que exige, já pelas lutas que impõe, que a palavra eloqüente de um chefe é muitas vezes necessária para reavivar as forças exaustas e reerguer o ânimo abatido. — Confesso francamente, que, encetando os meus ensaios de crítica, fui movido pela idéia de contribuir com alguma coisa para a reforma do gosto que se ia perdendo, e efetivamente se perde. Meus limitadíssimos esforços não podiam impedir o tremendo desastre. Como impedi-lo, se, por influência irresistível, o mal vinha de fora, e se impunha ao espírito literário do país, ainda mal formado e quase sem consciência de si? Era difícil plantar as leis do gosto, onde se havia estabelecido uma sombra de literatura, sem alento nem ideal, falseada e frívola, mal imitada e mal copiada. Nem os esforços dos que, como V. Exa, sabem exprimir sentimentos e idéias na língua que nos legaram os mestres clássicos, nem esses puderam opor um dique à torrente invasora. Se a sabedoria popular não mente, a universalidade da doença podia dar-nos alguma consolação quando não se antolha remédio ao mal. — Se a magnitude da tarefa era de assombrar espíritos mais robustos, outro risco havia: e a este já não era a inteligência que se expunha, era o caráter. Compreende V. Ex.a que, onde a crítica não é instituição formada e assentada, a análise literária tem de lutar contra esse entranhado amor paternal que faz dos nossos filhos as mais belas crianças do mundo. Não raro se originam ódios onde era natural travarem-se afetos. Desfiguram-se os intentos da crítica, atribui-se à inveja o que vem da imparcialidade: chama-se antipatia o que é consciência. Fosse esse, porém, o único obstáculo, estou convencido que ele não pesaria no ânimo de quem põe acima do interesse pessoal o interesse perpétuo da sociedade, porque a boa fama das musas o é também. — Cansados de ouvir chamar bela à poesia, os novos atenienses resolveram bani-la da república. — O elemento poético é hoje um tropeço ao sucesso de uma obra. Aposentaram a imaginação. As musas, que já estavam apeadas dos templos, foram também apeadas dos livros. A poesia dos sentidos veio sentar-se no santuário e assim generalizou-se uma crise funesta às letras. Que enorme Alfeu não seria preciso desviar do seu curso para limpar este presepe de Augias? — Eu bem sei que no Brasil, como fora dele, severos espíritos protestam com o trabalho e a lição contra esse estado de coisas: tal é, porém, a feição geral da situação, ao começar a tarde do século. Mas sempre há de triunfar a vida inteligente. Basta que se trabalhe sem trégua. Pela minha parte, estava e está acima das minhas posses semelhante papel, contudo. entendia e entendo — adotando a bela definição do poeta que V. Exa dá em sua carta — que há para o cidadão da arte e do belo deveres imprescritíveis, e que, quando uma tendência do espírito o impele para certa ordem de atividade, é sua obrigação prestar esse serviço às letras. — Em todo o caso não tive imitadores. Tive um antecessor ilustre, apto para este árduo mister, erudito e profundo, que teria prosseguido no caminho das suas estréias, se a imaginação possante e vivaz não lhe estivesse exigindo as criações que depois nos deu. Será preciso acrescentar que aludo a V. Ex.a? — Escolhendo-me para Virgílio do jovem Dante que nos vem da pátria de Moema, impõe-me um dever, cuja responsabilidade seria grande se a própria carta de V. Exa não houvesse aberto ao neófito as portas da mais vasta publicidade. A análise pode agora esmerilhar nos escritos do poeta belezas e descuidos. O principal trabalho está feito. — Procurei o poeta cujo nome havia sido ligado ao meu, e, com a natural ansiedade que nos produz a notícia de um talento robusto, pedi-lhe que me lesse o seu drama e os seus versos. — Não tive, como V. Exa, a fortuna de os ouvir diante de um magnífico panorama. Não se rasgavam horizontes diante de mim: não tinha os pés nessa formosa Tijuca, que V. Exa chama um escabelo entre a nuvem e o pântano. Eu estava no pântano, em torno de nós agitava-se a vida tumultuosa da cidade. Não era o ruído das paixões nem dos interesses; os interesses e as paixões tinham passado a vara à loucura: estávamos no carnaval. — No meio desse tumulto abrimos um oásis de solidão. — Ouvi o Gonzaga e algumas poesias. — V. Exa já sabe o que é o drama e o que são os versos, já os apreciou consigo, já resumiu a sua opinião. Esta carta, destinada a ser lida pelo público, conterá as impressões que recebi com a leitura dos escritos do poeta. — Não podiam ser melhores as impressões. Achei uma vocação literária, cheia de vida e robustez, deixando antever nas magnificências do presente as promessas do futuro. Achei um poeta original. O mal da nossa poesia contemporânea é ser copista — no dizer, nas idéias e nas imagens. Copiá-las é anular-se. A musa do Sr. Castro Alves tem feição própria. Se se adivinha que a sua escola é a de Vítor Hugo, não é porque o copie servilmente, mas porque uma índole irmã levou-o a preferir o poeta das Orientais ao poeta das Meditações. Não lhe aprazem certamente as tintas brancas e desmaiadas da elegia; quer antes as cores vivas e os traços vigorosos da ode. — Como o poeta que tomou por mestre, o Sr. Castro Alves canta simultaneamente o que é grande e o que é delicado, mas com igual inspiração e método idêntico a pompa das figuras, a sonoridade do vocábulo, uma forma esculpida com arte, sentindo-se por baixo desses lavores o estro, a espontaneidade, o ímpeto. Não é raro andarem separadas estas duas qualidades da poesia: a forma e o estro. Os verdadeiros poetas são os que as têm ambas. Vê-se que o Sr. Castro Alves as possui; veste as suas idéias com roupas finas e trabalhadas. O receio de cair em um defeito, não o levará a cair no defeito contrário? Não me parece que lhe haja acontecido isso; mas indico-lhe o mal, para que fuja dele. É possível que uma segunda leitura dos seus versos me mostrasse alguns senões fáceis de remediar; confesso que os não percebi no meio de tantas belezas. — O drama, esse li-o atentamente; depois de ouvi-lo, li-o, e reli-o, e não sei bem se era a necessidade de o apreciar, se o encanto da obra, que me demorava os olhos em cada página do volume. — O poeta explica o dramaturgo. Reaparecem no drama as qualidades do verso; as metáforas enchem o período; sente-se de quando em quando o arrojo da ode. Sófocles pede as asas a Píndaro. Parece ao poeta que o tablado é pequeno; rompe o céu de lona e arroja-se ao espaço livre e azul. — Esta exuberância que V. Exa com justa razão atribui à idade, concordo que o poeta há de reprimi-la com os anos. Então conseguirá separar completamente a língua lírica da língua dramática; e do muito que devemos esperar temos prova e fiança no que nos dá hoje. — Estreando no teatro com um assunto histórico, e assunto de uma revolução infeliz, o Sr. Castro Alves consultou a índole do seu gênio poético. Precisava de figuras que o tempo houvesse consagrado; as da Inconfidência tinham além disso a auréola do martírio. Que melhor assunto para excitar a piedade? A tentativa abortada de uma revolução, que tinha por fim consagrar a nossa independência, merece do Brasil de hoje aquela veneração que as raças livres devem aos seus Espártacos. O insucesso fê-los criminosos; a vitória tê-los-ia feito Washingtons. Condenou-os a justiça legal; reabilita-os a justiça histórica. — Condensar estas idéias em uma obra dramática, transportar para a cena a tragédia política dos Inconfidentes, tal foi o objeto do Sr. Castro Alves, e não se pode esquecer que, se o intuito era nobre, o cometimento era grave. O talento do poeta superou a dificuldade; com uma sagacidade que eu admiro em tão verdes anos, tratou a história e a arte por modo que, nem aquela o pode acusar de infiel, nem esta de copista. Os que, como V. Exa, conhecem esta aliança, hão de avaliar esse primeiro merecimento do drama do Sr. Castro Alves. — A escolha de Gonzaga para protagonista foi certamente inspirada ao poeta pela circunstância dos seus legendários amores, de que é história aquela famosa Marília de Dirceu. Mas não creio que fosse só essa circunstância. Do processo resulta que o cantor de Marília era tido por chefe da conspiração, em atenção aos seus talentos e letras. A prudência com que se houve desviou da sua cabeça a pena capital. Tiradentes, esse era o agitador; serviu à conspiração com uma atividade rara; era mais um conspirador do dia que da noite. A justiça o escolheu para a forca. Por tudo isso ficou o seu nome ligado ao da tentativa de Minas. — Os amores de Gonzaga traziam naturalmente ao teatro o elemento feminino, e de um lance, casavam-se em cena a tradição política e a tradição poética, o coração do homem e a alma do cidadão. A circunstância foi bem aproveitada pelo autor; o protagonista atravessa o drama sem desmentir a sua dupla qualidade de amante e de patriota; casa no mesmo ideal os seus dois sentimentos. Quando Maria lhe propõe a fuga, no terceiro ato, o poeta não hesita em repelir esse recurso, apesar de ser iminente a sua perda. Já então a revolução expira; para as ambições, se ele as houvesse, a esperança era nenhuma; mas ainda era tempo de cumprir o dever. Gonzaga preferiu seguir a lição do velho Horácio corneiliano: entre o coração e o dever a alternativa é dolorosa. Gonzaga satisfaz o dever e consola o coração. Nem a pátria nem a amante podem lançar-lhe nada em rosto. — O Sr. Castro Alves houve-se com a mesma arte em relação aos outros conjurados. Para avaliar um drama histórico, não se pode deixar de recorrer à história; suprimir esta condição é expor-se a crítica a não entender o poeta. — Quem vê o Tiradentes do drama não reconhece logo aquele conjurado impaciente e ativo, nobremente estouvado, que tudo arrisca e empreende, que confia mais que todos no sucesso da causa, e paga enfim as demasias do seu caráter com a morte na forca e a profanação do cadáver? E Cláudio, o doce poeta, não o vemos todo ali, galhofeiro e generoso, fazendo da conspiração uma festa e da liberdade uma dama, gamenho no perigo, caminhando para a morte com o riso nos lábios, como aqueles emigrados do Terror? Não lhe rola já na cabeça a idéia do suicídio, que praticou mais tarde, quando a expectativa do patíbulo lhe despertou a fibra de Catão, casando-se com a morte, já que se não podia casar com a liberdade? Não é aquele o denunciante Silvério, aquele o Alvarenga, aquele o padre Carlos? Em tudo isso é de louvar a consciência literária do autor. A história nas suas mãos não foi um pretexto; não quis profanar as figuras do passado, dando-lhes feições caprichosas. Apenas empregou aquela exageração artística, necessária ao teatro, onde os caracteres precisam de relevo, onde é mister concentrar em pequeno espaço todos os traços de uma individualidade, todos os caracteres essenciais de uma época ou de um acontecimento. — Concordo que a ação parece às vezes desenvolver-se pelo acidente material. Mas esses raríssimos casos são compensados pela influência do princípio contrário em toda a peça. — O vigor dos caracteres pedia o vigor da ação, ela é vigorosa e interessante em todo o livro; patética no último ato. Os derradeiros adeuses de Gonzaga e Maria excitam naturalmente a piedade, e uns belos versos fecham este drama, que pode conter as incertezas de um talento juvenil, mas que é com certeza uma invejável estréia. — Nesta rápida exposição das minhas impressões, vê V. Exa que alguma coisa me escapou. Eu não podia, por exemplo, deixar de mencionar aqui à figura do preto Luís. Em uma conspiração para a liberdade, era justo aventar a idéia da abolição. Luís representa o elemento escravo Contudo o Sr. Castro Alves não lhe deu exclusivamente a paixão da liberdade. Achou mais dramático pôr naquele coração os desesperos do amor paterno. Quis tornar mais odiosa a situação do escravo pela luta entre a natureza e o fato social, entre a lei e o coração. Luís espera da revolução, antes da liberdade a restituição da filha; é a primeira afirmação da personalidade humana; o cidadão virá depois. Por isso, quando no terceiro ato Luís encontra a filha já cadáver, e prorrompe em exclamações e soluços, o coração chora com ele, e a memória, se a memória pode dominar tais comoções, nos traz aos olhos a bela cena do rei Lear, carregando nos braços Cordélia morta. Quem os compara não vê nem o rei nem o escravo: vê o homem. — Cumpre mencionar outras situações igualmente belas. Entra nesse número a cena da prisão dos conjurados no terceiro ato. As cenas entre Maria e o governador também são dignas de menção, posto que prevalece no espírito o reparo a que V. Exa aludiu na sua carta. O coração exigira menos valor e astúcia da parte de Maria; mas, não é verdade que o amor vence as repugnâncias para vencer os obstáculos? Em todo o caso uma ligeira sombra não empana o fulgor da figura. — As cenas amorosas são escritas com paixão: as palavras saem naturalmente de uma alma para outra, prorrompem de um para outro coração. E que contraste melancólico não é aquele idílio às portas do desterro, quando já a justiça está prestes a vir separar os dois amantes! — Dir-se-á que eu só recomendo belezas e não encontro senões? Já apontei os que cuidei ver. Acho mais — duas ou três imagens que me não parecem felizes: e uma ou outra locução suscetível de emenda. Mas que é isto no meio das louçanias da forma? Que as demasias do estilo, a exuberância das metáforas, o excesso das figuras devem obter a atenção do autor, é coisa tão segura que eu me limito a mencioná-las: mas como não aceitar agradecido esta prodigalidade de hoje, que pode ser a sábia economia de amanhã? — Resta-me dizer que, pintando nos seus personagens a exaltação patriótica, o poeta não foi só à lição do fato, misturou talvez com essa exaltação um pouco do seu próprio sentir. É a homenagem do poeta ao cidadão. Mas, consorciando os sentimentos pessoais aos dos seus personagens, é inútil distinguir o caráter diverso dos tempos e das situações. Os sucessos que em 1822 nos deram uma pátria e uma dinastia, apagaram antipatias históricas que a arte deve reproduzir quando evoca o passado. — Tais foram as impressões que me deixou este drama viril, estudado e meditado, escrito com calor e com alma. A mão é inexperiente, mas a sagacidade do autor supre a inexperiência. Estudou e estuda; é um penhor que nos dá. Quando voltar aos arquivos históricos ou revolver as paixões contemporâneas, estou certo que o fará com a mão na consciência. Está moço, tem um belo futuro diante de si. Venha desde já alistar-se nas fileiras dos que devem trabalhar para restaurar o império das musas. — O fim é nobre, a necessidade é evidente. Mas o sucesso coroará a obra? É um ponto de interrogação que há de ter surgido no espírito de V. Exa. Contra estes intuitos, tão santos quanto indispensáveis, eu sei que há um obstáculo, e V. Exa. o sabe também: é a conspiração da indiferença. Mas a perseverança não pode vencê-la? Devemos esperar que sim. — Quanto a V. Exa, respirando nos degraus da nossa Tijuca o hausto puro e vivificante da natureza, vai meditando, sem dúvida, em outras obras-primas com que nos há de vir surpreender cá embaixo. Deve faze-lo sem temor. Contra a conspiração da indiferença, tem V. Exa um aliado invencível: é a conspiração da posteridade. Machado de Assis Publicada no Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 1º de março de 1868

Olhares sobre Castro Alves VIII - Diálogo espistolar entre José de Alencar e Machado de Assis



DIÁLOGO ESPISTOLAR entre JOSÉ DE ALENCAR E MACHADO DE ASSIS

 JOSÉ DE ALENCAR 

 À época do encontro com Castro Alves, José de Alencar era o nome mais importante da literatura brasileira, já tendo publicado, entre outros, O Guarani (1857) e Iracema (1865). Conservava, todavia, a frustração de não ter conseguido firmar-se como autor teatral. 

 CARTA DE JOSÉ DE ALENCAR 

 Tijuca [Rio de Janeiro], 18 de fervereiro de 1868. Il.mo Sr. Machado de Assis. Recebi ontem a visita de um poeta. O Rio de Janeiro não o conhece ainda; muito breve o há de conhecer o Brasil. Bem entendido, falo do Brasil que sente; do coração e não do resto. O Sr. Castro Alves é hóspede desta grande cidade, alguns dias apenas. Vai a S. Paulo concluir o curso que encetou em Olinda. Nasceu na Bahia, a pátria de tão belos talentos; a Atenas brasileira que não cansa de produzir estadistas, oradores, poetas e guerreiros. Podia acrescentar que é filho de um médico ilustre. Mas para quê? A genealogia dos poetas começa com o seu primeiro poema. E que pergaminhos valem êstes selados por Deus? O Sr. Castro Alves trouxe-me uma carta do Dr. Fernandes da Cunha, um dos pontífices da tribuna brasileira. Digo pontífice, porque nos caracteres dessa têmpera o talento é uma religião, a palavra um sacerdócio. Que júbilo para mim! Receber Cícero que vinha apresentar Horácio, a eloqüência conduzindo pela mão a poesia, uma glória esplêndida mostrando no horizonte da pátria a irradiação de uma límpida aurora! Mas também quanto, nesse instante, deplorei minha pobreza, que não permitia dar a tão caros hóspedes régio agasalho. Carecia de ser Hugo ou Lamartine, os poetas-oradores, para preparar esse banquete da inteligência. Se, ao menos, tivesse nesse momento junto de mim a plêiade rica de jovens escritores, à qual pertencem o senhor, o Dr. Pinheiro Guimarães, Bocaiúva, Múzio, Joaquim Serra, Varela, Rozendo Moniz, e tantos outros!... Entre estes, por que não lembrarei o nome de Leonel de Alencar, a quem o destino fez ave de arribação na terra natal? Em literatura não há suspeições: todos nós, que nascemos em seu regaço, não somos da mesma família? Mas a todos o vento da contrariedade os tem desfolhado por aí, como flores de uma breve primavera. Um fez da pena espada para defender a pátria. Alguns têm as asas crestadas pela indiferença; outros, como douradas borboletas, presas da teia d'aranha, se debatem contra a realidade de uma profissão que lhes tolhe os vôos. Felizmente estava eu na Tijuca. O senhor conhece esta montanha encantadora. A natureza a colocou a duas léguas da Corte, como um ninho para as almas cansadas de pousar no chão. Aqui tudo é puro e são. O corpo banha-se em águas cristalinas, como o espírito na limpidez deste céu azul. Respira-se à larga, não somente os ares finos que vigoram o sopro da vida, porém aquele hálito celeste do Criador, que bafejou o mundo recém-nascido. Só nos ermos em que não caíram ainda as fezes da civilização, a terra conserva essa divindade do berço. Elevando-se a estas eminências, o homem aproxima-se de Deus. A Tijuca é um escabelo entre o pântano e a nuvem, entre a terra e o céu. O coração que sobe por este genuflexório, para se prostrar aos pés do Onipotente, conta três degraus; em cada um deles, uma contrição. No alto da Boa Vista, quando se descortina longe, serpejando pela várzea, a grande cidade réptil, onde as paixões pululam, a alma que se havia atrofiado no foco do materialismo, sente-se homem. Embaixo era uma ambição; em cima contemplação. Transposto este primeiro estádio, além, para as bandas da Gávea, há um lugar que chamam Vista Chinesa. Este nome lembra-lhe naturalmente um sonho oriental, pintado em papel de arroz. É uma tela sublime, uma decoração magnífica deste inimitável cenário fluminense. Dir-se-ia que Deus entregou a algum de seus arcanjos o pincel de Apeles, e mandou-lhe encher aquele pano de horizonte. Então o homem sente-se religioso. Finalmente, chega-se ao Pico da Tijuca, o ponto culminante da serra, que fica do lado oposto. Daí os olhos deslumbrados vêem a terra como uma vasta ilha a submergir-se entre dois oceanos, o oceano do mar e o oceano do éter. Parece que estes dois infinitos, o abismo e o céu, abrem-se para absorver um ao outro. E no meio dessas imensidades, um átomo, mas um átomo-rei, de tanta magnitude. Aí o ímpio é cristão e adora o Deus verdadeiro. Quando a alma desce destas alturas e volve ao pó da civilização, leva consigo uns pensamentos sublimes, que do mais baixo remontam à sua nascença, pela mesma lei que faz subir ao nível primitivo a água derivada do topo da terra. Nestas paragens não podia meu hóspede sofrer jejum de poesia. Recebi-o dignamente. Disse à natureza que pusesse a mesa, e enchesse as ânforas das cascatas de linfa mais deliciosa que o falerno do velho Horácio. A Tijuca esmerou-se na hospitalidade. Ela sabia que o jovem escritor vinha do Norte, onde a natureza tropical se espaneja em lagos de luz diáfana, e, orvalhada de esplendores, abandona-se lasciva como uma odalisca às carícias do poeta. Então a natureza fluminense, que também, quando quer, tem daquelas impudências celestes, fez-se casta e vendou-se com alvas roupagens de nuvens. A chuva a borrifou de aljôfares; as névoas resvalavam pelas encostas como as fímbrias da branca túnica roçagante de uma virgem cristã. Foi assim, a sorrir entre os nítidos véus, com um recato de donzela, que a Tijuca recebeu nosso poeta. O Sr.Castro Alves lembrava-se, como o senhor e alguns poucos amigos, de uma antiguidade de minha vida; que eu outrora escrevera para o teatro. Avaliando sobre medida minha experiência neste ramo difícil da literatura, desejou ler-me um drama, primícia de seu talento. Essa produção já passou pelas provas públicas em cena competente para julgá-la. A Bahia aplaudiu com júbilos de mãe a ascensão da nova estrela de seu firmamento. Depois de tão brilhante manifestação, duvidar de si, não é modéstia unicamente, é respeito à santidade de sua missão de poeta. Gonzaga é o título do drama que lemos em breves horas. O assunto, colhido na tentativa revolucionária de Minas, grande manancial de poesia histórica ainda tão pouco explorado, foi enriquecido pelo autor com episódios de vivo interesse. O Sr. Castro Alves é um discípulo de Vítor Hugo, na arquitetura do drama, como no colorido da idéia. O poema pertence à mesma escola do ideal; o estilo tem os mesmos toques brilhantes. Imitar Vítor Hugo só é dado às inteligências de primor. O Ticiano da literatura possui uma palheta que em mão de colorista medíocre mal produz borrões. Os moldes ousados de sua frase são como os de Benvenuto Cellini; se o metal não for de superior afinação, em vez de estátuas saem pastichos. Não obstante, sob essa imitação de um modelo sublime desponta no drama a inspiração original, que mais tarde há de formar a individualidade literária do autor. Palpita em sua obra o poderoso sentimento da nacionalidade, essa alma da pátria, que faz os grandes poetas, como os grandes cidadãos. Não se admire de assimilar eu o cidadão e o poeta, duas entidades que no espírito de muitos andam inteiramente desencontradas. O cidadão é o poeta do direito e da justiça; o poeta é o cidadão do belo e da arte. Há no drama Gonzaga exuberância de poesia. Mas deste defeito a culpa não foi do escritor; foi da idade. Que poeta aos vinte anos não tem essa prodigalidade soberba de sua imaginação, que se derrama sobre a natureza e a inunda? A mocidade é uma sublime impaciência. Diante dela a vida se dilata, e parece-lhe que não tem para vivê-la mais que um instante. Põe os lábios na taça da vida, cheia a transbordar de amor, de poesia, de glória, e quisera estancá-la de um sorvo. A sobriedade vem com os anos; é virtude do talento viril. Mais entrado na vida, o homem aprende a poupar sua alma. Um dia, quando o Sr. Castro Alves reler o Gonzaga, estou convencido que êle há de achar um drama esboçado, em cada personagem desse drama. Olhos severos talvez enxerguem na obra pequenos senões. Maria, achando em si forças para enganar o governador em um transe de suprema angústia, parecerá a alguns menos amante, menos mulher, do que devera. A ação, dirigida uma ou outra vez pelo acidente material, antes do que pela revolução íntima do coração, não terá na opinião dos realistas, a naturalidade moderna. Mas são esses defeitos da obra, ou do espírito em que ela se reflete? Muitas vezes já não surpreendeu seu pensamento a fazer a crítica de uma flor, de uma estrela, de uma aurora? Se o deixasse, creia que ele se lançaria a corrigir o trabalho do supremo artista. Não somos homens debalde: Deus nos deu uma alma, uma individualidade. Depois da leitura do seu drama, o Sr. Castro Alves recitou-me algumas poesias. "A Cascata de Paulo Afonso", "As duas ilhas" e "A Visão dos Mortos" não cedem às excelências da língua portuguesa neste gênero. Ouça-as o senhor, que sabe o segredo desse metro natural, dessa rima suave e opulenta. Nesta capital da civilização brasileira, que o é também de nossa indiferença, pouco apreço tem o verdadeiro mérito quando se apresenta modestamente. Contudo, deixar que passasse por aqui ignorado e despercebido o jovem poeta baiano, fora mais que uma descortesia. Não lhe parece? Já um poeta o saudou pela imprensa; porém, não basta a saudação; é preciso abrir-lhe o teatro, o jornalismo, a sociedade, para que a flor desse talento cheio de seiva se expanda nas auras da publicidade. Lembrei-me do senhor. Em nenhum concorrem os mesmos títulos. Para apresentar ao público fluminense o poeta baiano, é necessário não só ter foro de cidade na imprensa da Corte, como haver nascido neste belo vale do Guanabara, que ainda espera um cantor. Seu melhor título, porém, é outro. O senhor foi o único de nossos modernos escritores, que se dedicou sinceramente à cultura dessa difícil ciência que se chama crítica. Uma porção de talento que recebeu da natureza, em vez de aproveitá-lo em criações próprias, teve a abnegação de aplicá-lo a formar o gosto e desenvolver a literatura pátria. Do senhor, pois, do primeiro crítico brasileiro, confio a brilhante vocação literária, que se revelou com tanto vigor. Seja o Virgílio do jovem Dante, conduza-o pelos ínvios caminhos por onde se vai à decepção, à indiferença e finalmente à glória, que são os três círculos máximos da divina comédia do talento. JOSÉ DE ALENCAR.

Olhares sobre Castro Alves VII - Castro Alves: a crítica e os adeuses de Teresa




Com pesar e ´pena de lembrar que em breve nada restaria do peregrino em terra hospitaleira, onde vagara; nem sequer a lembrança desta alma´; e com a consciência do fim iminente de sua vida; sabendo de que nada resta senão o vulto de um passar na terra: ´uma esteira de espumas... - flores perdidas na vasta indiferença do oceano. - Um punhado de versos... - espumas flutuantes no dorso fero da vida´, Antônio Frederico de Castro Alves (1847 - 1871) legou à posteridade louros que coroariam a fronte da humanidade: ´seus cantos, como as espumas, que nascem do mar e do céu, da vaga e do vento, filhos da musa - este sopro do alto, do coração - este pélago da alma´. A obra desse poeta é o motivo central dessa edição. 

 Como se dá a travessia de Castro Alves desde 1870 aos dias de hoje? Por que, com ´o seu frescor de orvalho e fulgor de diamante´, a poesia de Castro Alves não sofre a injúria do tempo que danifica as glórias e enxota as notoriedades? Onde está o seu segredo? Na sua eloqüência comicial que se desata, mesmo no momento murmurante, em que no desalinho de uma cama, celebra o seu amor por uma mulher? Na chuva de hipérboles e metáforas que troveja entre as nuvens e astros da sua noite condoreira, juncada de amores e indignações? Na sedução de sua vida breve de poeta romântico, inspirado, que viveu a sua própria antecipação entre alegrias e amarguras, e, na qual, os dias devem ser avaliados numa contabilidade que os dobre ou os multiplique? 

 Ou mais, por que fulgura e nele sente-se o borbulhar do gênio? Por que é poeta distinto por ´lírico amoroso´, que se exprimia quase sempre sem ênfase e às vezes com exemplar simplicidade, como no formoso quadro do poema ´Adormecida´? Por poeta descritivo, -pintando com admirável verdade e poesia a nossa paisagem, tal em ´O crepúsculo sertanejo´? Por que poeta épico-social, desmedindo-se em violentas antíteses, em retumbantes onomatopéias?´ Ora, há que reconhecer nele, mal-grado os excessos e o mal gosto ocasional, a maior força verbal e inspiração mais generosa de toda a poesia brasileira´, conforme se manifestou Manuel Bandeira apaixonada e solidariamente. Ambos acometidos por tuberculose, o mal do século, em ainda jovens, - o romântico logo foi morto, aos vinte e quatro anos, o modernista, assombrado pela companhia durante anos da iniludível das gentes, em sua prolongada Consoada. 

 O olhar da crítica 

 Euclides da Cunha apontou para que ´há no seu gênio muita coisa do gênio obscuro da nossa raça´, já José de Alencar, em carta a Machado de Assis, padrinhos de Castro Alves na apresentação deste à corte literária, anunciou o Cantor de Iracema que nele ´palpita o poderoso sentimento da nacionalidade, essa alma da pátria, que faz os grandes poetas, como os grandes cidadãos´. 

Talvez se indague tanto sobre a vitalidade e perenidade do poeta pelo fato de que, conforme constatou José Veríssimo, ´poucos livros brasileiros, e menos de versos, têm sido tão lidos´, sabemos que livros relidos são livros eternos. 

 A crítica polemiza entre si, dentre variados temas, em torno de questões sobre sua originalidade e autenticidade; sobre seu estro oratório, afeito para ser declamado em meio ao público, em praças e teatros; sobre sua relação particular com o romantismo brasileiro; sobre a fragilidade de sua obra irregular e impetuosa; por fim, e, principalmente, sobre sua poesia de clamor social. De todos os pontos supracitados habitualmente deslumbrados pela crítica castroalvina, o último, sua poesia de vertente social, é ponto pacífico. Não há voz que se erga da multidão, com sonoridade e vibração audíveis tal quais para calar o brado grandíloquo do poeta dos escravos. 

 Já em relação aos outros temas destacados da crítica, em tratando do poeta baiano, os posicionamentos são os mais controvertidos e duvidosos. A respeito, Afrânio Coutinho, em seu ´A Literatura no Brasil´, indica que ´uma das maiores dificuldades antepostas aos estudiosos desse poeta é a ignorância reinante, mesmo entre exegetas, do que se faz e fazia naquele tempo, agravada pelo fato de não infundirem respeito (ou confiança) as contribuições válidas de nomes hoje obscurecidos, sem embargo da projeção de que tenham gozado, ou da influência exercida. Daí o perigo de afirmações e classificações aligeiradas do aparato documental, e a quase inanidade de justificativas históricas a serem, assim, formuladas pela primeira vez´.

 Os críticos ou se fazem partidários e aficionados exaltando o poeta Castro Alves enquanto o mais sagaz condor dos mais altos picos da excelência poética; ou se aferram em apontar equívocos direito à obra castroalvina. M. Cavalcanti Proença sobre Castro Alves dá nota dos ´movimentos, que vez por outra, surgem entre os intelectuais, tendendo em valorizá-lo ou desmerecê-lo, e em cujas raízes, se encontram, muitas vezes, o bairrismo, a política ou o primitivismo exclusivista, chegando às fronteiras da polêmica´. 

 Os desentendimentos alcançam tal ordem a ponto de se hostilizaram em seus artigos os estudiosos. Caso houve, quando, tematizando a poesia de Castro Alves, saiu um comentário asseverando: ´Castro Alves não é nenhum gênio´. Em resposta, o editor do ´Jornal de Poesia´ (página on line) tripudiou: ´Concordamos com dona Marilene (grifo nosso): Castro Alves não é um gênio; Castro Alves é um grande gênio´, depois do que assina, alcunhando-se o jargão - do poeta Soares Feitosa, aprendiz. 

 O engajamento literário 

 É possível seja o discurso social o mais destacado por que Castro Alves se solidarizou com o povo americano, com o seu povo - com o povo do Brasil. Tinha ´o coração do homem e a alma do cidadão´, enlevou-se Machado de Assis*; José Veríssimo evidenciou o fato de o poeta ter reclamado nosso ideal humano; Érico Veríssimo, por sua vez, em sua ´Breve História da Literatura Brasileira´, lembrou que Castro Alves ´voltou os olhos às feridas crônicas e sempre sanguinolentas dos escravos e fez-se a si o paladino do abolicionismo, enquanto a maioria cutucava suas próprias feridas fazendo-as sangrar por que isso lhes dava bons motivos para a produção da poesia´.

Em vários de seus poemas -prossegue o autor de ´Olhai dos Lírios do Campo´ - Castro Alves antecipou as reivindicações proletárias que viriam muitos e muitos anos mais tarde´. Perscrutando a alma do poeta: ´tinha compreensão humana e compaixão. Possuía, desse modo, um admirável senso de fraternidade´.  

MARCOS ROBERTO DOS SANTOS AMARAL *Colaborador, do Curso de Letras da Uece 

FIQUE POR DENTRO 

A voz do poeta do povo Jamil Almansur Hadad , em sua ´Revisão de Castro Alves´,observa: ´Com todos os seus rompantes de poeta erudito, imitador de Hugo e tradutor de Esprocenda, ele prolonga a voz dos cantadores cegos das feiras, a voz dos serenatistas bêbedos em noites com lua ou sem lua, mandando a amada suspirosa acordar por detrás das rótulas silentes, a voz do cabra empolgada no desafio, ou entoando o hino de glórias em louvor dos heróis pastoris ou do cangaço´. M. Cavalcanti Proença, fazendo um apanhado de ´semelhança de processos´ entre a poesia de Castro Alves e entre a dos catadores (em geral) nordestinos (especificamente), chama atenção para os ´elementos que estruturam a popularidade do condoreiro´, enumerando, então, um repertório de elementos que atestam essa veia castroalvina que pulsa com a poesia popular. Por essas qualidades de sua obra, é que se entende a admiração tão vigorosa e apaixonada do público ao seu vate. Por isso seus poemas como ´Navio Negreiro´ e ´Vozes d´África´ são estimados como ´a maior altura do seu estro. O primeiro é uma evocação dantesca dos sofrimentos dos negros na travessia da África para o Brasil; o segundo, uma soberba apóstrofe do continente oprimido a implorar a justiça de Deus´, escreve o poeta Manuel Bandeira.