
Nos moldes do "protagonismo" trágico, o herói da peça tem um único e inabalável desígnio, o de honrar uma promessa. A justiça desse acordo firmado com um poder celeste não pode ser contestada por um poder temporal. E é assim, com um único e irredutível argumento, que o campônio Zé do Burro justifica a sua determinação em levar uma cruz até o pé do altar para agradecer a salvação do seu amado burrico. Enfrenta a perda amorosa, a argumentação eclesiástica e a força da lei e acaba por vencer a todos na sua ingênua, mas sincera, imitação de Cristo.
A essa estrutura simples, em que um único motivo impulsiona a ação e se sobrepõe a todos os outros elementos de composição do texto, corresponde uma expressão verbal verossímil e sem atavios literários. Respondendo à sugestão da mulher para que se contente em deixar a cruz na porta da igreja, Zé do Burro responde: "Eu prometi levar a cruz até dentro da igreja, tenho que levar. Andei sete léguas. Não vou me sujar com a santa por causa de meio metro." A habilidade de fazer com que o impulso nobre, quase extra-humano na sua pureza, se ajuste à fala coloquial permanece uma constante nas criações posteriores do dramaturgo.
É uma obra escrita para teatro e é dividida em três atos, sendo que os dois primeiros ainda são subdivididos em dois quadros cada um.
Após a apresentação dos personagens, o primeiro ato mostra a chegada do protagonista Zé do Burro e sua mulher Rosa, vindos do interior, a uma igreja de Salvador e termina com a negativa do padre em permitir o cumprimento da promessa feita.
O segundo ato traz o aparecimento de diversos novos personagens, todos envolvidos na questão do cumprimento ou não da promessa e vai até uma nova negativa do padre, o que ocasiona, desta vez, explosão colérica em Zé do Burro.
O terceiro ato é onde as ações recrudescem, as incompreensões vão ao limite e se verifica o dramático desfecho.
A peça de Dias Gomes tem nítidos propósitos de evidenciar certas questões sÓcio-culturais da vida brasileira, em detrimento do aprofundamento psicológico de seus personagens. Assim, ganha força no drama a visão crítica quanto:
a) à intolerância da Igreja católica, personificada no autoritarismo do Padre Olavo, e na insensibilidade do Monsenhor convocado a resolver o problema;
b) à incapacidade das autoridades que representam o Estado - no episódio, a polícia - de lidar com questões multiculturais, transformando um caso de diferença cultural em um caso policial;
c) à voracidade inescrupulosa da imprensa, simbolizada no Repórter, um perfeito mau-caráter, completamente desinteressado no drama do protagonista, mas muito interessado na repercussão que a história pode ter;
d) ao grande fosso que separa, ainda, o Brasil urbano do Brasil rural: Zé do Burro não consegue compreender por que lhe tentam impedir de cumprir sua promessa; os padres, a polícia, a imprensa não conseguem compreender quem é Zé do Burro, sua origem ingênua, com outros códigos culturais, outras posturas. Além disso, a peça mostra as variadas facetas populares: o gigolô esperto, a vendedora de quitutes, o poeta improvisador, os capoeiristas. O final simbólico aponta em duas direções. Em primeiro lugar a morte do Zé do Burro mostra-se com fim inevitável para o choque cultural violento que se opera na peça: ninguém, entre as autoridades da cidade grande, é capaz de assimilar o sincretismo religioso tão característico de grandes camadas sociais no Brasil, especialmente no interior nordestino. Em segundo lugar, a entrada dos capoeiristas na igreja, carregando a cruz com o corpo, sinaliza para rechaçar a inutilidade daquela morte: os populares compreenderam o gesto de Zé do Burro.
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