sábado, 19 de outubro de 2013

Artigo de Opinião - Decifrar o Brasil e o Rio para estrangeiro ler

 

  

Editora prepara obras sobre o país e a cidade que serão lançadas aqui e no exterior e terão o desafio de retratar uma História em movimento

Por Leonardo Cazes

No seu discurso durante a abertura do pavilhão brasileiro na Feira do Livro de Frankfurt, a presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL) Ana Maria Machado conclamou os estrangeiros a conhecerem o Brasil que está nos livros. A escritora se referia especificamente à ficção nacional, que espelha o país “sem exotismo, nem a mera denúncia social clichê”. No entanto, se alguém quisesse se aprofundar mais e procurasse em uma livraria estrangeira uma obra condensada sobre a História do Brasil em inglês, não encontraria. Foi a partir dessa constatação que o grupo editorial inglês Penguin pediu, no ano passado, para a editora Companhia das Letras (da qual é sócio com 45% de participação) um livro que dê conta, sinteticamente, da História do país. A missão ficou com a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz e a historiadora Heloísa Starling. Por sua vez, a editora brasileira propôs um livro sobre o Rio de Janeiro, prontamente aceito pela Penguin, cuja autoria será do antropólogo Luiz Eduardo Soares, professor da Uerj.

A tarefa de Lilia, professora da Universidade de São Paulo (USP), e Heloísa, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é espinhosa. Reduzir pouco mais de cinco séculos de História em um livro de, aproximadamente, 500 páginas é um desafio significativo. Uma das referências para o trabalho é “História do Brasil” (Edusp), escrito por Boris Fausto, de 1995. Lilia o utiliza em suas aulas em universidades estrangeiras, mas ressalva que se trata de um livro-texto, voltado para estudantes. Neste caso, o objetivo é evitar jargões acadêmicos para se comunicar com um público amplo e heterogêneo.

A ideia das autoras é que o livro seja organizado em uma ordem cronológica, mas atravessado pelos temas relevantes na História do país, sem fazer concessões historiográficas. Um fio que ligará toda a obra — que tem previsão de publicação para 2014 aqui e 2016 no exterior —, explica Lilia, é que o Brasil alcançou a democracia, mas há uma falta de república. Ela enxerga que este problema apareceu nas ruas, pois as reivindicações que começaram em junho clamavam por valores republicanos.

— Um dos nossos desafios é como não datar demais o livro. No último capítulo, vamos fazer um panorama que começa no governo Fernando Henrique, passa por Lula e vai até Dilma. Esse capítulo vai ser também um grande balanço da ideia que organiza a obra. É a ideia de que o Brasil chegou à democracia, mas falta república, mostrando como a agenda da cidadania se impõe nas ruas. Será uma avaliação dos problemas, das questões estruturais que permanecem como grande lacuna. O que estava nas ruas era uma queixa generalizada, uma carência de valores republicanos — explica Lilia.

As professoras fizeram uma divisão de capítulos, de acordo com as áreas de especialização de cada uma, e depois trabalharão em cima do texto para alcançar uma unidade narrativa. Nas palavras de Heloísa, trata-se de “traçar um percurso possível — apenas um, entre muitos outros — sobre a aventura da construção de uma complexa ‘sociedade nos trópicos’, para usar, de maneira meio torta, a expressão de Florestan Fernandes”. A imersão no passado ajuda a compreender a trajetória dos personagens, suas ideias e os eventos que os inspiraram.

— A via da História nos ajuda a encontrar o emaranhado de raízes onde a memória do Brasil se resguarda. Isso me parece muito importante também para conseguirmos contar uma história sobre o Brasil: raízes assinalam uma tentativa de arraigar-se e os indícios do que não se completou. Aludem aos princípios formadores de nossa sociedade e revelam o que foi abandonado, eclipsado, anulado na aventura nacional brasileira. Nosso projeto tem essa ambição de querer contar uma história sobre o Brasil, ou talvez, tentar fazer do Brasil uma história — afirma Heloísa.

Afetos e ódios nas ruas

No caso do livro sobre o Rio de Janeiro — que deve ser lançado no Brasil em 2015 e no exterior em 2016 —, Luiz Eduardo Soares foi literalmente atropelado pelas manifestações que começaram em junho e não pararam. Sua própria ideia de como retratar o momento vivido pela cidade, que combina a realização de megaeventos esportivos junto com a emergência de novos protagonistas nas periferias, mudou. No início, ele via o Rio como uma cidade em suspensão, com um futuro cheio de diferentes possibilidades. De repente, todas essas possibilidades foram jogadas nas ruas criando um ambiente de altíssima voltagem.

— O que passou a predominar a partir de junho foi de fato a intensidade, a clave da mudança e da intensidade. Estamos vivendo um momento muito particular, especial, uma efervescência potencialmente criativa e ao mesmo tempo disruptiva. Quem não se sentir desafiado por tudo isso não está preparado para compreender. É preciso se abrir para o que se derrama nas ruas, todos os afetos, ódios, expectativas, esperanças. O temor também existe numa calibragem muito mais elevada. As famílias discutindo política, os coletivos jovens se multiplicando, visões críticas se confrontando e se redefinindo. Como se tivéssemos descoberto a possibilidade de fazer História, de produzir a realidade. Tem uma ponta de incerteza e outra ponta de liberdade e protagonismo. O livro vai ser muito mais intenso, convulsionado do que o plano inicial — conta o antropólogo.

Segundo Flavio Moura, editor da Companhia das Letras responsável pelo livro, uma das referências do projeto é “Bombaim: cidade máxima”, do indiano Suketu Mehta. A obra não vai misturar realidade e ficção e sim montar um mosaico de fatos, percepções e contradições que tentem dar conta do atual momento vivido pela cidade.

O primeiro capítulo, conta Soares, se chamará “Linha Vermelha” e será uma visita ao front, em um formato próximo ao da reportagem, “embora trate das barricadas que talvez não sejam aquelas que as pessoas têm em mente”. Quando falar sobre o papel do Estado no momento atual, ele conta que será menos sociológico e mais focado em histórias de bastidores, a partir da sua própria experiência e de amigos em instituições públicas.

Para Moura, o caso do livro sobre o Rio mostra que a parceria entre editoras brasileiras e estrangeiras é uma via de mão dupla.

— O projeto foi concebido no Brasil, pela editora e pelo autor, e de pronto encampado pela Penguin para circular nos Estados Unidos e na Inglaterra. É uma demonstração de que a união entre as editoras tem mão dupla: não são apenas os livros deles que ganham espaço maior no mercado brasileiro, mas também o oposto acontece. O entusiasmo com que os editores estrangeiros adotaram a ideia é a prova maior de que esse deve ser apenas o primeiro entre vários casos — acredita ele.

Escrever para estrangeiros exige certos cuidados, especialmente com referências a fatos de domínio público aqui, mas não lá fora. Soares explica que, agora, está deixando essa preocupação de lado para evitar qualquer amarra à imaginação e a criatividade exigidas pelo livro. Já Lilia lembra de suas aulas nos EUA, quando é preciso localizar para os alunos, inclusive geograficamente, o Brasil, antes de começar a falar sobre o país:

— Leciono em universidades americanas desde 2006 e, na primeira aula, sempre projeto um mapa para mostrar onde fica o Brasil, a sua extensão. Há uma demanda diferente por parte do leitor estrangeiro. Para isso, contamos muito com os editores de fora, para que eles apontem eventuais lacunas. É preciso também atrair o público para o que é diferente, mas sem cair no estereótipo. Quando a gente pensa (em obras) para fora, é um desafio imenso.


Jornal O Globo

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