A Constituição fez do Brasil um país democrático, mas suas fraquezas intrínsecas impedem que ela desfrute, ao completar 25 anos, da aura de outras Cartas, como a americana.
Gabriel Castro e Daniel Jelin
As fotos que ilustram esta página mostram dois momentos da história recente em que o Congresso Nacional foi tomado por pessoas comuns. A primeira data de 1º de fevereiro de 1987: enquanto no plenário da Câmara se instalava a nova Assembleia Constituinte, do lado de fora centenas comemoravam nas ruas e escalavam a cúpula desenhada por Oscar Niemeyer. A segunda é um flagrante da noite de 17 de junho de 2013, quando uma multidão marchou por Brasília para protestar, gritar palavras de ordem, pedir ‘"mudança”. A primeira foto fala da esperança de que uma nova Constituição pudesse lançar as bases de um país democrático e moderno. A segunda lembra que a esperança só se cumpriu em parte. Não há dúvida de que a democracia avançou no Brasil no último quarto de século e de que a Constituição teve um papel essencial nesse processo. Mas é significativo que na miríade de cartazes levados às ruas durante as manifestações de junho, e na enxurrada de mensagens postadas nas redes sociais, a Carta raramente tenha sido mencionada como um ponto de referência simbólico. Quando ela se tornou assunto, foi de modo negativo: em resposta àqueles que expressavam na rua o seu repúdio à corrupção e à classe política, o governo sugeriu, de maneira funesta, que se reformasse o sistema político por meio de uma "Constituinte específica"’. Entre o esquecimento dos manifestantes e o perigoso arroubo do Executivo, fica claro que a Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988 não desfruta, em seu 25° aniversário, da aura quase sagrada de que se reveste, por exemplo, a Carta dos Estados Unidos. Por que isso aconteceu? Em grande parte, devido às suas fraquezas intrínsecas. O que não significa que ela não deva ser, para além de respeitada, defendida.
Em todas as 341 sessões consumidas na redação da Carta Magna, o fantasma do regime militar permaneceu na assembleia ao lado dos constituintes. Isso deixou uma marca profunda no texto final, que não se limita a elencar alguns direitos fundamentais. Para assegurar que os abusos da ditadura não se repetissem, os constituintes crivaram o texto de dispositivos "garantistas”. Pelas mesmas razões, o ambiente era propício para que todas as vozes e todos os pleitos que gozassem de alguma representatividade — e tivessem sido calados nos anos anteriores — fossem acolhidos. Hoje senador, Paulo Paim (PT-RS) admite que se esforçou para incluir no texto o máximo de dispositivos trabalhistas: "Eu tinha clareza de que tudo aquilo que ficasse gravado, só com uma emenda à Constituição, que exige três quintos dos votos, poderia ser retirado. Por isso, trabalhei muito para que o tratamento do tema fosse o mais amplo possível”, diz ele. A declaração de Paim reflete bem o espírito com que os constituintes abordaram sua tarefa e explica por que a Constituição pode ser descrita como prolixa (a décima mais extensa do mundo), segundo dados do projeto Comparative Constitutions (CCP), paternalista (apenas dez fixam mais direitos) e quase surrealmente detalhista: ela incluiu até mesmo um parágrafo dedicado à administração do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Como muitos direitos previstos necessitam de leis para se materializar, criou-se um enorme ônus de regulamentação: ainda hoje, 112 dispositivos aguardam nessa fila.
Os mais graves pecados foram cometidos na área econômica. O exemplo notório é o artigo 192, do capítulo que trata da ordem financeira. Ele fixou em 12% o teto da taxa de juros no Brasil. "Foi um desastre”, lembra o economista Maílson da Nóbrega, que era ministro da Fazenda em 1988. “A Constituição reforçou o dirigismo um ano antes da queda do Muro de Berlim e incorporou preconceitos infantis contra o capital estrangeiro, a empresa privada e os direitos de propriedade.’" Nos anos que se seguiram à promulgação, os artigos sobre economia e tributação se chocaram continuamente com a realidade. E o pragmatismo, felizmente, acabou prevalecendo sobre o pensamento mágico. A maior parte das 74 emendas aprovadas desde 1988 tem a ver com esses dois temas. No começo dos anos 90, por exemplo, durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, os dispositivos que limitavam a entrada de capital estrangeiro foram derrubados, permitindo revoluções como a da telefonia. Segundo um estudo recente realizado pelo gabinete do constituinte e atual senador Francisco Donelles (PP-RJ), a lógica tributária instituída pela Carta de 1988 foi totalmente desmontada nos últimos 25 anos. Ah, sim: o artigo sobre os juros de 12% foi expurgado em 2003.
Seja pela necessidade de desfazer o que não faz sentido, seja pela necessidade de regulamentar o que foi deixado em aberto, o fato é que a Constituição brasileira nunca atingiu a plena eficácia em seus próprios termos. É instrutivo, mais uma vez, o paralelo com a Constituição americana — exemplo máximo de Carta "sintética". Promulgada em 1789, ela cuidou unicamente de fixar um sistema de governo, criando pesos e contrapesos para a atuação de cada um dos três poderes, e de estabelecer os limites na atuação do governo central, assegurando a autonomia dos estados. A famosa Bill of Rights (Carta de Direitos), coleção de dez emendas que tratam das garantias individuais, só veio à luz em 1791 — e mesmo assim depois de muito debate sobre a conveniência de incluir ou não regras desse tipo na Constituição. O desenho austero faz com que a Constituição americana mantenha seu vigor, apesar dos mais de dois séculos de vida.
VEJA pediu a mais de 100 políticos, empresários, intelectuais e artistas brasileiros que falassem sobre a Carta de 1988 (os testemunhos podem ser lidos na edição para tablet e no site de VEJA). Muitos reconhecem avanços no texto que enterrou o arbítrio do regime militar, mas a nota que soa com maior frequência é a do ceticismo em relação a ela. “A nossa Constituição dá margem a muita confusão”, diz o cantor Ney Matogrosso. "Para mim, a Constituição e coisa para inglês ver — e ingleses nem têm Constituição”, diz o filósofo Luiz Felipe Pondé. "A Constituição de 1988 foi um avanço, um marco, um símbolo da conquista de todos os brasileiros. Mas já estou querendo saber é da nova Constituição, de dois mil e...”, brinca o humorista Fábio Porchat.
A Constituição não é perfeita. Mas também é verdade que redigir uma Constituição é trabalho para momentos históricos especiais — aqueles em que uma sociedade passa por ruptura ou transição. Fora dessas circunstâncias, o trabalho de uma Assembleia Constituinte, em vez de expressar uma vontade comum, construída em meio ao ruído e a duras penas, pode expressar tão somente a vontade do grupo político momentaneamente mais forte. "Soa aventureiro e até mesmo irresponsável clamar por uma Constituinte ou querer colocar um termo nesta Constituição”, diz o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. A Carta de 1988 é o marco da redemocratização do país, e nem seus críticos questionam sua legitimidade. Bem ou mal, o texto proporcionou o mais longo período ininterrupto de democracia que o país já atravessou. Não é o caso, portanto, de ceder à tentação de reformá-la em grandes blocos, muito menos de deitar abaixo o edifício inteiro. É o caso de depurá-la, segundo os mecanismos que ela mesma prevê. O especialista em direito comparado americano Tom Ginsburg, um dos mentores do CCP, lembra que a Carta de 1988 já nasceu sob críticas. ’Alguns estudiosos previam que ela não duraria nem cinco anos”, diz. “Ao contrário, ela tem ajudado o país a construir uma base de governança e pelo menos parcialmente motivou iniciativas para tomar a sociedade mais justa. Há um longo caminho pela frente, mas, por ser flexível e contar com mecanismos para a sua reforma, o Brasil pode seguir com ela nessa caminhada.”
Para reviver a história
Sai em livro uma cápsula do tempo do que foi a Constituinte
Com edição e coordenação do jornalista Marcos Emílio Gomes, chega às livrarias nesta semana o livro A Constituição de 1988, 25 Anos — A Construção da Democracia & Liberdade de Expressão: o Brasil Antes, Durante e Depois da Constituinte. Iniciativa dos institutos Vladimir Herzog e Palavra Aberta, a obra é um adequado, bem ilustrado e coerente painel histórico dos fatos daquela quadra gloriosa da vida pública brasileira. Por mais imperfeito que tenha resultado o texto final da Constituição de 1988, sua promulgação por uma Assembleia Constituinte democraticamente reunida e trabalhando sob o signo do entendimento entre correntes ideológicas contrárias foi mesmo uma conquista. O livro trata a epopeia da Constituição como um feito memorável, fruto de trabalho hercúleo, com desfecho incerto. Há um clima de suspense no ar até a catarse libertadora pela promulgação do texto que, abrindo as portas de uma caótica oficina parlamentar, arrancou a democracia brasileira de lá.
A obra dos institutos Vladimir Herzog e Palavra Aberta celebra em especial, a começar pelo título, a reinstituição no Brasil, depois de 21 anos de regime militar, da liberdade de expressão, princípio basilar das sociedades democráticas. É a partir dessa liberdade que todas as outras ganham existência plena. O livro é um exemplo vivo do exercício da liberdade de expressão e seus corolários, a diversidade de opinião, o choque de ideias que sempre produz mais luz do que calor. O coordenador reservou a seção final da obra para a publicação de textos que encomendou a diversos protagonistas daqueles tempos de coragem, crença nas virtudes da democracia e. claro, de cena ingenuidade típica dos heróis "enlouquecidos de liberdade", a criação poética que o presidente Tancredo Neves usou para falar de Tiradentes. Um dos convidados para colaborar no livro foi Eurípedes Alcântara, diretor de redação de VEJA. Alcântara enfatiza o arcaísmo do pensamento econômico dominante entre a maioria dos constituintes — salvos da derrocada total nesse campo pela presença, entre eles, de Delfim Netto, José Serra, Francisco Dornelles e Roberto Campos.
Revista Veja 07/10/2013
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