sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Te Contei, não ? - Os muitos Vinícius de Moraes

 

  • Para as mulheres, ele tinha sempre o verso certo do poeta, a canção ao pé do ouvido
  • Do convívio no bar, aprendeu a ironia, a galhofa, a provocação. Do Itamaraty, ganhou formalidade e autoridade
  • Hoje, perto de seu centenário, ele segue amado por negros e brancos, brasileiros e estrangeiros, homens e mulheres
 

Vinicius numa foto de maio de 1972, aos 58 anos Foto: Osmar Gallo / Agência O Globo
Vinicius numa foto de maio de 1972, aos 58 anos Osmar Gallo / Agência O Globo
RIO - A mineira Isabela Morais tem 25 anos e muita energia para compartilhar. Ela mora em São Paulo, onde trabalha como arte-educadora. O sobrenome, diferente por uma única vogal, é apenas uma coincidência para aquele que considera um de seus melhores amigos. Isabela tem um mestrado em Ciências Sociais, e o tema de sua dissertação foi Vinicius. Ela também aspira a se firmar como cantora e, atualmente, toca o projeto A Benção de Moraes, cantando, obviamente, músicas do poeta. À noite, quando chega a hora de descansar, Isabela volta e meia sonha com Vinicius.
 
O advogado argentino Roberto Terrile tem 56 anos e três filhos. Sua especialidade é direito de família, mas é possível dizer que ele passa tanto tempo pesquisando imagens e notícias sobre Vinicius quanto debruçado sobre processos judiciais. No Facebook do advogado, encontram-se centenas de fotos do poeta e de vídeos com interpretações de suas canções. Em dezembro, o próprio Roberto vai dar uma conferência no Colégio de Advogados de Buenos Aires, onde mora, sobre Vinicius. Entre os temas, ele promete dissecar uma estrofe de “Tomara”, para ele mais lei do que música: “E a coisa mais divina/ Que há no mundo/ É viver cada segundo/ Como nunca mais”.
O carioca Miguel Jost tem 31 anos e é professor do programa de pós-graduação em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo da PUC-Rio. Quando decidiu enveredar pela carreira acadêmica, tinha como intuito pensar a identidade brasileira através da cultura. E foi aí que sua profissão esbarrou com a admiração que já tinha por Vinicius. Em 2008, organizou o livro “Samba falado — Crônicas musicais de Vinicius de Moraes” (editora Azougue), fruto de textos do poeta descobertos por ele na Fundação Casa de Rui Barbosa. Hoje, é o curador de uma exposição que a família de Vinicius prepara para o ano que vem e é reconhecido como um dos maiores especialistas em sua obra.
Isabela, Roberto e Miguel não conheceram Vinicius de Moraes. Mas suas vidas, assim como as de milhares de pessoas ao redor do mundo, são influenciadas pela obra desse carioca nascido em 19 de outubro de 1913, no bairro do Jardim Botânico.
Vinicius teve nove mulheres e deixou cinco filhos. Escreveu centenas de poemas, lançou dois livros de prosa, compôs mais de 250 canções, foi responsável por cinco textos teatrais e colaborou com jornais discorrendo sobre cinema, música e literatura. Foi diplomata, servindo em países como Estados Unidos, França e Uruguai, até ser exonerado do Itamaraty por seu não alinhamento com a ditadura militar. Também gostava de beber e de fumar: são famosas suas noites de boemia ao lado de amigos e parceiros, como Tom Jobim.
 
 
 
“Todo mundo quer saber de Vinicius”
 
 
Vinicius influenciou o mundo com a bossa nova nos anos 1950, influenciou de novo com os afro-sambas nos 1960 e seguiu como símbolo da cultura brasileira, um percurso que, em vez de ser interrompido por sua morte, em 9 de julho de 1980, foi, sim, fortalecido.
— Uma das coisas que mais me impressionam é como em pouco tempo a bossa nova conseguiu inverter o critério entre centro e periferia para o Brasil. Em apenas dois anos, a bossa fez com que o mundo olhasse para o Brasil e alterou a produção cultural de seu tempo. Eu brinco que só Bob Marley e Vinicius conseguiram sair da periferia para fazer algo assim. Só que Marley cantava em inglês e tinha um produtor britânico — diz Miguel Jost, que já tem seis conferências agendadas para celebrar o centenário de Vinicius. — No último dia 27, eu fui a Londrina, para um seminário na universidade estadual de lá. O interesse é muito grande, todo mundo quer saber sobre ele.
Distante geograficamente de Miguel, Roberto Terrile costuma declarar-se o “argentino mais brasileiro da Argentina”, numa paródia a um verso de “Samba da bênção”, canção de Vinicius e Baden Powell. Roberto tinha 16 anos quando ganhou de presente o disco “En la fusa (Mar del Plata)”, gravação que Vinicius, Maria Bethânia e Toquinho fizeram juntos na antiga boate argentina La Fusa. A primeira faixa do LP era “A tonga da mironga do kabuletê”, parceria com Toquinho, e, para quem ouvia e não falava, olhava e não via, era o melhor momento para aprender.
— Eu não falo português, só o bom portunhol. Mas aquilo bateu em mim de um jeito tão forte que fui atrás de mais — conta Roberto. — Para mim, a ordem é primeiro Jesus Cristo e depois Vinicius de Moraes. E não é só pela música, é pela vida dele. Como Cristo, ele foi perseguido depois que saiu da diplomacia, o chamaram de vagabundo. Mas Vinicius continuou trabalhando e superou todos os problemas. Foi um grande homem e exemplo.
Para se ter noção da admiração de Roberto, basta olhar seu Facebook. Anteontem, ele publicou oito novos posts, seis relacionados a Vinicius — da divulgação de um show com músicas do poeta que vem sendo realizado todos os sábados de outubro em Buenos Aires; a um vídeo de YouTube com cenas do desfile da União da Ilha do Governador na Marques da Sapucaí, cujo enredo era justamente uma homenagem a Vinicius. Nos dias anteriores, manteve a média de três posts dedicados a seu ídolo para cada quatro publicados.
— O Vinicius foi o poeta do povo, como você não vai encontrar outro em canto nenhum do mundo. O exemplo que ele deixou foi o de uma pessoa livre e apaixonada. Ele amava a vida, a música, a poesia. Acho que o certo é dizer que ele amava amar — derrete-se Roberto.
Vinicius amou tanto que deixou uma invejável coleção de canções românticas. Com Tom, fez em 1958 “Chega de saudade”, marco, hino, celebração e todo e qualquer substantivo elogioso que possa ser utilizado para se referir à música que deu origem à bossa nova. Sua mulher na época, Lila Bôscoli, chegou a dizer que era bobo rimar peixinhos com beijinhos. Mas todas as mulheres nas décadas seguintes nunca deixaram de se encantar com os versos “Pois há menos peixinhos a nadar no mar/ Do que os beijinhos/ Que eu darei na sua boca”.
 
 
Preconceito na universidade
 
Ele também mostrou, ao escrever a peça “Orfeu da Conceição”, que esse amor brasileiro podia ecoar paixões mitológicas. Vinicius se inspirou na história grega de Orfeu e Eurídice para lançar um espetáculo passado numa favela com personagens negros e mestiços, encenado em 1956, e que deu origem ao filme “Orfeu Negro” (1959), do francês Marcel Camus. O mundo ainda estava distante das lutas raciais da década seguinte (o famoso discurso “Eu tenho um sonho” de Martin Luther King, foi proferido em 1963), mas Vinicius, àquela altura, já usava a arte para unir o país.
— Fiz meu mestrado sobre o aspecto histórico do disco “Os afro-sambas” (de Vinicius e Baden), lembrando toda sua canção engajada e seu movimento de incorporação dos negros e da cultura africana. Os afro-sambas foram compostos antes de ele ir para a Bahia e se aproximar do candomblé — explica Isabela Morais, que, há uma semana, se apresentou com o Trio Ogã no Museu da Imagem e do Som de SP, cantando Vinicius. — Ele é uma paixão que foi aparecendo e que acabou virando pesquisa e trabalho para mim. Nas universidades públicas de letras, há um preconceito grande contra o Vinicius, ainda hoje o consideram um poeta menor. É uma luta que a gente ainda precisa ganhar.
Com a bênção de Oxalá, seu pai no candomblé revelado pela amiga Mãe Menininha do Gantois, este caderno se junta a essa luta, numa merecida homenagem a Vinicius de Moraes.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/os-muitos-vinicius-de-moraes-10350659#ixzz2i85V23um

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