Publicado na edição impressa de VEJA
J. R. GUZZO
A desgraça narrada a seguir é real, está baseada em fatos públicos e chegou, alguns anos atrás, a causar certa comoção neste Brasil de hoje, que parece a caminho de se transformar em um dos países a ser estudados com maior atenção, algum dia, por possíveis pesquisadores de uma história mundial da infâmia. Trata-se de um episódio chocante por sua crueldade em estado puro, e o resultado inevitável de uma conspiração não declarada dos agentes do poder público para permitir a prática aberta dos delitos mais selvagens — por serem eles mesmos os autores dos crimes, ou pelo uso que fazem da letra da lei para livrar os envolvidos de qualquer risco de punição. Acontece quase todos os dias, em todo o Brasil, sob a indiferença absoluta das mais altas autoridades e a proteção de um conjunto de leis escritas com o objetivo de praticamente abolir a culpa na Justiça penal brasileira. Não há remédio conhecido contra isso.
Ainda recentemente a repórter Branca Nunes, da edição digital de VEJA, fez uma reconstrução passo a passo da tenebrosa descida ao inferno aqui na terra, entre outubro e novembro de 2007, de uma menina de 15 anos, L.A.B., presa sob a acusação de furtar um telefone celular numa cidade do interior do Pará, a 100 quilômetros de Belém, e punida segundo a hermenêutica que vale no Brasil real. O propósito da reportagem era mostrar, seis anos depois, que fim tinham levado os personagens centrais da história ─ um símbolo fiel de aberrações praticamente idênticas que acontecem a cada dia neste país, e do tratamento-padrão que recebem do poder público. A visita a essa tragédia “confirmou o apronto”, como se dizia na linguagem do turfe. Nada de embargos infringentes para L.A.B. Nada de advogado “Kakay” pregando em seu favor. Nada de todo esse maravilhoso facilitário que faz da lei brasileira um milagre permanente em benefício dos ricos, poderosos e influentes ─ e transforma culpa em mérito, como Cristo transformou água em vinho. Tudo, naturalmente, em favor dos responsáveis por sua agonia.
L.A.B., como relata a reportagem, foi apanhada na cidade de Abaetetuba tentando furtar um celular e uma correntinha de prata pertencentes, para seu azar, ao sobrinho de um investigador de polícia da delegacia local. Chamados pelo rapaz, o tio e dois colegas levaram a garota, um toco de gente com menos de 40 quilos de peso e 1,5 metro de altura, para a delegacia da cidade ─ onde foi trancada numa cela com mais de vinte homens. L.A.B. ficou 26 dias presa, durante os quais foi estuprada regularmente, cinco ou seis vezes por dia. Não se cogitou no seu caso na possibilidade, digamos, de uma prisão domiciliar, alternativa que o bondoso ministro Celso de Mello, do STF, acaba de abrir, em nome do cumprimento rigorosíssimo da lei, para gigantes de nossa vida política condenados no mensalão. Não se cogitou, sequer, no fato de que ela era menor de idade, que não podia ser presa nem, menos ainda, jogada num xadrez exclusivamente masculino. L.A.B., na verdade, foi presa dentro da prisão: arrastada para o fundo da cela, de onde não podia ser vista, tinha a sua miserável comida confiscada pelos outros presos, que só lhe permitiam comer se não desse trabalho durante os estupros. Não tinha direito a prato — precisava pegar sua comida direto do chão. À noite, era acordada por chamas de isqueiro ou pontas de cigarro, quando algum dos presos requeria os seus serviços. A título de ilustração, um deles, o mais ativo de todos, respondia pelo apelido de “Cão”. Que tal?
O mais interessante do caso, talvez, é que as autoridades locais legalizaram, a seu modo, todo o procedimento. A delegada Flávia Verônica Pereira autorizou a prisão de L.A.B. quando a menina lhe foi entregue pelos investigadores que a capturaram. Dois dias depois, a juíza Clarice Maria de Andrade assinou seu auto de prisão em flagrante, sabendo perfeitamente, como a delegada, o que iria acontecer na cela lotada de machos. O desfecho da história é um retrato admirável do Brasil de 2013. Quando o caso começou a fazer ruído na imprensa, L.A.B. foi solta ─ e desde então, nestes seis anos, nunca mais se ouviu falar dela. Os únicos punidos foram “Cão” e um de seus comparsas, que já estavam presos. A juíza Clarice, a mais graduada responsável pelo episódio, não sofreu processo penal. Foi apenas aposentada, mas recorreu até chegar ao STF ─ que anulou em 2012 a punição, por julgá-la “excessiva”. Hoje a doutora Clarice é juíza titular em outra comarca do Pará.
Este é o Brasil que não muda.
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