sábado, 19 de outubro de 2013

Artigo de Opinião - A cerimônia - José Miguel Wisnik

 

Mesmo reconhecendo avanços no Brasil, Luiz Ruffato pôs a nu de maneira enfática a desigualdade social e racial, as taxas e as formas de violência, os níveis de analfabetismo, as precárias condições de vida

 

Não cheguei a Frankfurt a tempo de estar na famigerada cerimônia de abertura, mas acompanhei de perto seus ecos estridentes e li o texto dos discursos. O que aconteceu não deixa de ser uma espécie de strip-tease nacional em meio aos protocolos de uma cerimônia internacional de alto coturno. Mesmo reconhecendo avanços recentes no Brasil, o discurso de Luiz Ruffato, representante dos escritores, pôs a nu de maneira enfática a desigualdade social e racial, as taxas e as formas de violência no passado e no presente, os níveis de analfabetismo literal e funcional, as precárias condições de vida de grande parte da população brasileira. Pego de surpresa por um discurso que ia na contramão do seu, o vice-presidente Michel Temer tentou salvar a pátria num improviso em que se reclamou poeta, para surpresa de todos os que o conhecemos como um insípido e prosaico agente do continuísmo político. Em suma, uma contracenação inédita e ao vivo do desrecalque corrosivo sobre a nação com o provincianismo proverbial de um representante do poder (tendo ao fundo os protestos de Ziraldo).
Com a cena desse duplo desnudamento, a abertura do Brasil como país convidado da Feira do Livro de Frankfurt oferecia mais o efeito de um sintoma do que uma pauta cultural legível. A fala equilibrada de Ana Maria Machado pareceu dizer menos, no contexto, já que é de sintoma que se tratava, do que o tamanho da encrenca nacional escancarada pelo texto de Luiz Ruffato contra o vezo bacharelesco de Michel Temer, que contribuía para confirmá-la. Perturbar corajosamente o funcionamento da velha retórica mascaradora, neste momento brasileiro, foi aliás o maior mérito do gesto de Ruffato, cujo alcance geral não me satisfaz inteiramente, no entanto, por motivos que comentarei.
Mas, falando ainda do vice-presidente, ele saiu-se com uma gafe de Estado, ao referir-se à ministra da Cultura como ministra da Educação. O lapso para mim soa irônico, se considerarmos que combinar a sério educação com cultura seria uma fórmula original brasileira de grande avanço, sendo que, no caso, o engano trai o fato de que essas noções permanecem para o vice-presidente no plano do informe e do vago.
Diferentemente da ministra Marta Suplicy, não acho que faltou ao discurso de Luiz Ruffato destacar a magia e o encanto brasileiros, em meio às mazelas profundas que ele listou. Não se trata de afirmar essas tais qualidades, que aliás já falam bastante por si sós. O que é inteiramente ausente do seu discurso é o fato de que existe uma espessura cultural brasileira, uma acumulação artística de longa data, que de muitos modos responde a essas situações e que se desenvolveu com elas e apesar delas. É com essa espessura cultural que o país ganha corpo, opacidade e resistência, mesmo quando obscura. O ato solitário de escrever, ao qual ele se apega no final, não faz sentido sem isso.
Também acho problemática a afirmação de que a mestiçagem brasileira tem sua explicação definitiva no estupro das índias e das negras pelos colonizadores brancos. Essa violência primordial e continuada, que é patente no caso das escravas, criou uma população mestiça ao longo dos séculos cujas formas de sociabilidade não obedecem necessariamente ao primado da dominação, a menos que achatemos programaticamente todas as diferenças e contradições do país. Por isso também, e por ser capaz de reverter muitas vezes a violência no seu contrário, é que o Brasil é um país complexo e “paradoxal”, e não só por ter praias, carnaval, capoeira e futebol que escondem manifestações da barbárie.
Mas o espetáculo teatral “Puzzle”, que estreou no dia seguinte, com direção de Felipe Hirsch, feito especialmente para a Feira e sobre textos de vários escritores contemporâneos brasileiros, evidencia o quanto o discurso de Ruffato tem um valor sintomático para além dele mesmo. O espetáculo tem atores, música e cenografia sensacionais. Uma sucessão de textos que vão se articulando de maneira surpreendente, com grandes momentos. E que se afunilam na mesma afirmação da violência avassaladora e generalizada que a partir de certo momento se começa a sentir como uma espécie de tique nervoso, uma compulsão, um maneirismo de época, um orgulho nacional às avessas. Uma espécie de reafirmação estética e não premeditada do discurso de Ruffato. Uma demonstração ao pé da letra daquela afirmação de Nelson Rodrigues sobre “Os sertões”, de que o Brasil só pode se apresentar assim, como “uma golfada hedionda”.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/a-cerimonia-10336993#ixzz2iANd2HQ5

Nenhum comentário:

Postar um comentário