domingo, 26 de outubro de 2014

Crônica do Dia - O resto é golpe - Arnaldo Bloch

Quando nasci, em 1965, ninguém votava, e aquele V rabiscado para preencher cédula só se usava em loteria, prova de múltipla escolha e exame médico


Hoje é véspera do dia D. D de domingo, de democracia, D de Diretas, de ditadura, de derrota: alguém vai perder, e parte de nós, sejamos quem formos, perderá sabendo (ou esquecendo) que jamais tudo se perde. Outras letras pairam ao sopro do ventilador: H de Hitler, de História, de honra (ou a falta dela). S de Stalin, G de Goebbels, de guerra, de golpe e de grito.

Amanhã é dia V. V de voto, de vitória, virtude, vingança. Alguém sairá vitorioso, a gente gosta (ou devia gostar) de crer que a vitória é de todos que votam, e também do nulo, do abstido, do ausente. Todo o mundo é gente.

Quando nasci, em 1965, um ano depois do golpe, ninguém votava, e aquele V rabiscado para preencher lacuna de cédula só se usava em bilhete de loteria esportiva, prova de múltipla escolha e exame médico.

Havia um outro V, feito de dedos, pai de todos e fura-bolo. Um V com cheiro de incenso que remetia a duas palavras: paz e amor.

Mas também usado por políticos eleitos.

Não aqui.

H de hippie. H de “Hair”. No átrio burguês em que me criava, cabeludos que não pegavam em armas infiltravam-se, de leve, com suas guitarras e moogs. Sonho 70, bicho.

Eu estava isolado do chumbo que corria, e toda ânsia contestatória vinha dos vapores filtrados da contracultura e de moças intangíveis com olhos de diamantes.

“Haja o que houver, pense nos seus filhos”, diziam, na vitrola, Ivan Lins e Vítor Martins.

P de país. De povo. De pai. Ao povo eu me unia no Maracanã com meu velho.

B de Brasil. De botequim. De Botafogo. De “Let it be”. “Não ande nos bares”, dizia o Ivan. Papai me levava aos bares para ver o povo beber e falar. Mas o povo nada dizia, ali, do que se passava. Ou dizia, cifrado, ou em outros bares. O correio andava arisco, avisava Chico Buarque. Mas eu achava que era um problema de cartas que atrasavam. Não era.

Eu insistia.

Ia ao Mário Filho, só o filho, um pouco púbere, entrado nos bordéis, sem o pai, de ônibus, era o 464 que saía de Copacabana, tinha batucada, eletricidade estática de rádio de pilha no Aterro, assobios de domingo de jogo.

Um dia, outros ruídos engrossaram a massa, que falavam em anistia, abertura, fim da censura. Ruídos de bomba, também. Brucutu. Quase fui ao Riocentro quase-morrer naquele dia.

V de voto. A palavra mágica circulava. Para estes desgarrados nascidos no pós-1964, era a nostalgia absurda do que jamais se vivera.

T de tesão. Teatro. A censura caiu.

V de vitória. De Vianninha. De Praia Vermelha: outros cabeludos, geração limbo, sanduíche de movimento estudantil com rabo de repressão, anarquizando caretices com fuzis de semiótica entubada em papel de seda.

Mas, votar que é bom, ninguém votava. Íamos às passeatas, aos comícios, à vigília pelas Diretas. Cheio de cachaça, no comício de 1 milhão, comi indiscriminadamente panfletos recolhidos da sarjeta. E não passei mal.

Assim, dia desses, Dia D, Dia V, sei lá, votei pela primeira vez. Vou declarar, faz tempo: Gabeira. Disseram que eu havia começado errado, que era hora de Brizola, as árvores e os índios que ficassem para depois, o povo sofria.

Para presidente fiz de tudo, mas não!, não votei em Collor e dou soco no peito. Eu era jovem, mas aqueles olhos psicóticos com ira mortal só não eram óbvios para quem não quis ver.

Em certo pleito, cheguei a votar nulo. Rabisquei o escudo alvinegro na cédula. Logo fiquei envergonhado, senti-me um beócio. Depois achei que fiz muito bem. Com o V da caneta ainda no papel, votei também em Mário Covas, em Fernando Henrique, em Lula, e vou parar por aqui, plural.

Por essas opções, fui acusado ora de ser petista, ora de ser tucano, de ser comunista, de ser liberal e até de ser judeu, como se cada um desses “seres” fosse o encourado.

Nos últimos meses, o que vimos foi uma exacerbação desses equívocos: a oratória morreu, e a voz que poderia ter elevado o debate foi consumida por uma bola de fogo.

Chegamos agora ao dia D envoltos numa nuvem de maniqueísmo que diz “quem vota em Aécio é um porco nazista matador de pobres” e “quem vota em Dilma é um porco tirano assassino bolivariano stalinista”, entre outros compósitos sem sentido.

Arautos alardeiam convulsões e parafraseiam, de um lado e de outro, as clássicas nuvens negras de Alberto Dines, obra-prima que, em 1968, na seção de meteorologia do “Jornal do Brasil”, profetizava o sufoco que se instalaria a partir do day after do AI-5.

Não creio na volta desses espectros, mas num Brasil livre que seguirá. É bom ter em vista que, no belicoso e obtuso funil refratado pelas redes sociais, o eleitor se anuncia vivo.

Vai às urnas em massa, e não é com medo de ter problemas para renovar passaporte.

Findas as hostilidades, qualquer que seja o eleito, abrir-se-á o caminho natural do diálogo. E a vontade de acertar, aos poucos, triunfará sobre o desejo torpe de destruir.

Isso, sim, é vitória. O resto é golpe.



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/o-resto-golpe-14354159#ixzz3HHannf2r 

6 comentários:

  1. O narrador que nasceu em 1965, fala sobre suas experiências vividas, passando pela ditadura, onde todos lutavam por liberdade e queriam fazer valer seus direitos e ideologias, pela era Collor e Lula, que tanto ouço meus pais falarem deste tempo importante na política de nosso país, mas também fala principalmente da liberdade que temos hoje chamada de democracia.
    No dia de hoje onde cada um levanta sua bandeira para defender e torcer por seu candidato em um dia de eleição, vejo que conquista maravilhosa é termos a liberdade para expressar e votar em quem pensamos ser o melhor para o futuro do nosso país.

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  2. O narrador que nasceu em 1965, fala sobre suas experiências vividas, passando pela ditadura, onde todos lutavam por liberdade e queriam fazer valer seus direitos e ideologias, pela era Collor e Lula, que tanto ouço meus pais falarem deste tempo importante na política de nosso país, mas também fala principalmente da liberdade que temos hoje chamada de democracia.
    No dia de hoje onde cada um levanta sua bandeira para defender e torcer por seu candidato em um dia de eleição, vejo que conquista maravilhosa é termos a liberdade para expressar e votar em quem pensamos ser o melhor para o futuro do nosso país.
    Amanda de Oliveira Almeida - 802

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  3. Realmente devíamos nos considerar “ sortudos” pois não passamos por essa época de início de ditadura militar onde a liberdade não existe, onde a mudança não ocorria, onde ninguém podia votar ou se quer dar a sua opinião que se descoberto era preso e torturado, acabaria morto. O golpe AI-5 foi uma coisa péssima, que não posso nem me expressar melhor porque não vivi nesse período, mas pelo que ouço foi horrível , tirava ainda mais os direitos do povo. Não podiam andar na rua sem medo, de ser preso ou morto, e Chico Buarque expressa bem isso em suas músicas mostrando-nos como era ruim aquela época.
    E depois ainda tem Collor que pelo que ouço não foi bom, até tirado de seu cargo foi.
    Nos, brasileiros, temos muita sorte e devemos agradecer muito que essa época de opressão, de torturas e mortes passou, e que agora, atualmente temos o voto liberado, votamos em quem quisermos, o voto é direto e é secreto (ou pelo menos era), não devemos discutir por conta de política, pois quem viveu naquelas épocas sabe que era bem pior, e devemos simplesmente votar em quem ache melhor e torcer para que possa ganhar. Sem julgarmos os outros porque cada um de nós tem uma opinião.
    Julia Tavares 802

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  4. No texto, o narrador transmite, somente com suas palavras escritas, uma maravilhosa emoção de conquista, de vitoria e liberdade. Para que o voto universal fosse conquistado, foram necessários muitos anos de lutas e derrotas, onde o povo unido, desejava decidir o futuro de sua pátria e fazer valer suas idéias.
    A liberdade conquistada, hoje nos permite mais do que votar, mas também ter opinião própria, direito de se expressar, que como sabemos era sinônimo de "morte" na época da ditadura.
    É animante ler o texto e perceber a maravilhosa conquista, que o povo tanto sonhava e lutava. Apesar de a maioria de nossos políticos serem populistas, atualmente temos o direito de querer, de dizer e de agir.

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  5. O texto consegue nos passar uma informação importante, que foi nos dar direito de voto e escolha daquilo que seria melhor para agente e nosso pais, muitos como agente q etá escrevendo isso teve sorte, de n ter caio em um período da época onde a vida n poderia o correr naturalmente mas sim coordenadamente pelo governo da ditadura. A liberdade o direito de expressão que temos hoje é por causa de todo movimento que teve na aquela época, viveram realmente o inferno, então quando forem dizer "Que inferno essa politica" cuidado você pode não ter visto nada do que aconteceu e não tem conhecimento do verdadeiro inferno. A maior conquista foi ter mostrado que o nosso direto de votar é diferente, a respeito do governador que ira nos representar, esse texto não só mexeu comigo como me mostrou que ter passado por isso foi muito mais do que o direito de voto, foi para conquistar o Brasil que vivemos, com tudo sobre eles assim mesmo conseguiram o que tanto queriam, sendo ousados e promissores ao que queriam. Com todo esse ensino passado para agente, devemos seguir em frente para que em tempos próximos, possam mostrar aos seus filhos o que é ser brasileiro, guerreiro, conquistador e principalmente o que é ter direito por aquilo que você acredita e apoia, ter que lutar para dizer o que pensa, e agora poderem votar com tanta serenidade e perceber q cada pessoa carrega seu modo de pensar e precisa ser exposto para q o mundo evolua junto com agente.

    De: João Breno Miranda Marins 801

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  6. Nessa reportagem o narrador nos passa a informação de como era difícil viver e presenciar a ditadura militar que foi um período onde a política brasileira era comandada por militares que governavam o Brasil, onde as pessoas tinham que brigar pelos seus direitos, sua liberdade por uma vida melhor.
    Ao decorrer do tempo conseguiram isso e hoje as pessoas com mais de 17 anos tem a oportunidades de votar e escolher o presidente, o governador que quiser, e temos a liberdade que não se tinha na época da ditadura militar onde quase tudo era censurado e quem fosse contra era quase sempre morta pelos militares.
    Como esse período foi difícil para todos, hoje temos a obrigação de brigar pelos nossos diretos, pois temos a oportunidade e isso tem que virar costume para que no futuro o Brasil fique cada fez melhor.

    Juan Marcos-801

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