domingo, 26 de outubro de 2014

Te Contei, não ? - O tesouro de Colombo

RIO - Noite de Natal, litoral do Haiti, 1492. Em meio a uma forte tempestade típica da região do Caribe naquela época do ano, a esquadra de três navios do navegador Cristóvão Colombo luta contra as ondas para cruzar o que hoje é conhecido como Cabo Haitiano. Uma das ondulações, no entanto, joga a nau capitânia Santa Maria, onde viajava o próprio genovês, contra rochedos próximos à costa. Em questão de minutos, o principal navio da expedição vai a pique.


Os marujos têm então de passar para as outras duas embarcações, a Pinta e a Santa Clara, apelidada de Niña. Eles chegam à terra firme perto dali, onde fazem amizade com nativos da ilha então chamada Hispaniola. Lá, Colombo resolve construir um forte e deixar uma guarnição de 39 dos seus homens, a fim de seguir para a Europa e contar aos reis espanhóis que finalmente tinha descoberto (o que acreditava ser) a rota alternativa para as Índias.

Cabo Haitiano, maio de 2014. Após mais de dez anos de pesquisas, mergulhos e análises de fragmentos encontrados no leito do oceano, o americano Barry Clifford anunciou ao mundo ter encontrado os destroços do Santa Maria. Seria então uma das descobertas mais importantes da história da arqueologia submarina.


Mas a glória durou pouco. Em um relatório publicado neste mês, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) desmentiu o alegado feito de Clifford, dizendo que se tratava na verdade de um navio do século XVII. A nau de Colombo, no entanto, estaria perto de onde o arqueólogo americano havia indicado. Desde então, os dois lados trocam acusações de saques ao patrimônio histórico do Haiti, onde a disputa política entre Estados Unidos e a agência da ONU, com sede em Paris, faz o papel de ator coadjuvante.

QUATRO DÉCADAS DE PESQUISAS

O Ministério da Cultura do Haiti proibiu o acesso do arqueólogo e de outros pesquisadores americanos ao Cabo Haitiano, com base em uma convenção da Unesco de proteção ao patrimônio histórico da Humanidade.

Barry Clifford é um dos mais experientes arqueólogos submarinos, tendo trabalhado há quase quatro décadas na área. Em 1984, foi o primeiro a encontrar os restos de um navio pirata, o Whydah. Mais recentemente, ele descobriu destroços da nau capitânia do corsário escocês William Kidd, em Madagascar.

No caso do Santa Maria, o arqueólogo encontrou os primeiros vestígios dos destroços em 2003. Mas naquele momento ainda não havia passado pela cabeça de Clifford que aqueles fragmentos pertenciam de fato à famosa nau utilizada por Colombo para chegar às Américas. Foi somente depois de fotografias, estudos e pesquisa no diário do navegador genovês que o americano chegou à conclusão de que o navio que ali jazia seria, de fato, o Santa Maria.

Além de a localização ser próxima ao que foi descrito nas anotações de Colombo, a chave para o mistério seria a descoberta de um canhão de bronze, peça de artilharia que seria típica das embarcações dos séculos XV e XVI, na era dos descobrimentos. Quando retornou ao local do naufrágio, em maio deste ano, o armamento infelizmente havia desaparecido.

Em entrevista exclusiva ao GLOBO, Barry Clifford lamenta o sumiço do canhão, acusando o episódio de saque, mas afirma que os destroços são de fato do Santa Maria.


— O sítio do naufrágio está em grande perigo de saque — alerta. — A Unesco, junto com o Ministério da Cultura do Haiti, não nos permitem concluir nosso trabalho de preservação e pesquisa. Todas as evidências do naufrágio irão desaparecer em breve.

O arqueólogo critica ainda o relatório da agência da ONU sobre seu trabalho, alegando “motivação política”.

— Até o momento em que anunciei a descoberta, depois de mais de dez anos de pesquisa e mais de 550 quilômetros lineares de estudos e mergulhos para eliminar mais de 430 anomalias no fundo do mar, a Unesco não tinha o menor interesse no Santa Maria — afirma. — Agora, em apenas quatro dias de mergulho que eles fizeram em setembro na baía do Cabo Haitiano, a Unesco tornou-se a maior especialista do mundo no assunto.

Nove pinos de bronze utilizados na fixação de construção de navios são a principal razão do relatório para a agência da ONU rejeitar a hipótese de Clifford. A Unesco diz que os prendedores de construção só entraram em uso no final do século XVII, uma crença baseada principalmente no fato de que tais elementos não foram encontrados até agora em naufrágios anteriores.

O arqueólogo americano acusa ainda a expedição da Unesco de não fazer nenhuma análise detalhada sobre os objetos de bronze encontrados no fundo do mar, testes que poderiam ter revelado a idade aproximada dos objetos. O relatório também não avalia em detalhe a hipótese de os destroços pertencerem a dois naufrágios diferentes ocorridos no mesmo local.

Também em entrevista exclusiva ao GLOBO, o chefe da expedição da Unesco, Xavier Nieto Pietro, explicou que a teoria de Clifford sobre a localização do Santa Maria seria infundada, vez que a sedimentação das montanhas no interior do Haiti dos últimos 500 teria expandido a margem litorânea, fazendo com que os destroços da nau de Colombo estivessem enterrados hoje em algum lugar sob o solo haitiano, perto da pequena cidade de En Bas Saline:

— A localização da embarcação alegada por Clifford está muito mais longe da atual linha de costa do que o que pode ser entendido a partir do diário de Cristóvão Colombo. Se levarmos em conta que, nos últimos séculos, o litoral tem avançado como consequência dos sedimentos do rio Gran Riviere, no momento do naufrágio a distância teria sido ainda maior.

CAMINHO PARA AS ÍNDIAS

O Santa Maria foi construído no século XV e fez parte da primeira expedição de Cristóvão Colombo, que saiu do litoral espanhol e chegou às ilhas das Bahamas em 1492, ano consagrado na historiografia como o do “descobrimento da América”. A intenção do navegador era traçar uma rota alternativa para a Índia migrando para o Oeste, em vez de contornar o litoral africano, passando pelo Cabo da Boa Esperança. Depois de 37 dias, Colombo pisou na ilha batizada de Hispaniola, que hoje abriga o Haiti e a República Dominicana.

O professor de História Moderna da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Rafael Ruiz, explica que o Haiti fez parte da rota quando o navegador se preparava para retornar à Europa.

Naquele momento, o genovês acreditava que estava no arquipélago do Japão, próximo à China. E, percebendo que a viagem tinha sido mais longa do que o planejado, Colombo decidiu voltar à Espanha para contar aos reis seu feito e pedir mais recursos para continuar a expedição. Foi nesse ponto que aconteceu o acidente com o Santa Maria.

No entanto, Rafael ressalta que o diário utilizado por Clifford para chegar até os destroços não é propriamente de autoria do navegador.

— O diário não é propriamente aquele escrito por Colombo. Esse se perdeu. O que se conhece com esse nome é a transcrição que frei Bartolomeu de Las Casas fez do diário por volta de 1530, e que estava nos arquivos do filho de Colombo, Diego Colombo — explicou. — No geral, hoje em dia se fala que metade é de Colombo e metade, ou até mais, de Las Casas, isto é, o que Las Casas resumiu, entendeu ou interpretou.


Cristóvão Colombo morreu em 1506, aos 55 anos, ainda acreditando ter chegado à Índia atravessando o Oceano Atlântico.

Colega de expedição de Clifford, o professor de arqueologia submarina da Universidade de Indiana (EUA), Charles Beeker, defende a tese do Santa Maria. Sob acusações de saques ao patrimônio histórico do Haiti, Beeker afirmou ao GLOBO que a intenção da equipe era transformar o local do naufrágio em uma espécie de “museu vivo”, estimulando o turismo e trazendo renda para a população:

— A proposta da Universidade de Indiana de preservação in situ provou ser significativa, como um museu vivo no mar. Esta é a única estratégia para proteger o local, incentivando benefícios do turismo sustentável. Não é uma tarefa fácil, mas a única que a universidade mostrou ser válida.




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Um comentário:

  1. Assim como este caso, muitas descobertas históricas não aconteceram devido ás reclamações. Se morasse lá, arranjaria pessoas que concordassem comigo para organizar um protesto enorme. Deve ser horroroso ter trabalhado tanto, para no final discordarem de você, por isso deveríamos nos colocar no lugar de Clifford. É uma pena que muitas pessoas no mundo não saibam disso, pois tenho certeza que o esforço dele seria reconhecido. Porém a pergunta é: "Como se passaria esta história se acontecesse algo parecido no Brasil?''.
    Ingrid Maia Nanjara - 802

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