RIO — O labirinto que Jerónimo Pizarro percorre não é feito de paredes, mas de papéis. Trinta mil documentos, para ser mais exato. Há mais de dez anos, o pesquisador colombiano começou uma tarefa interminável: investigar os documentos deixados por Fernando Pessoa em seu espólio, guardado pela Biblioteca Nacional de Portugal. Hoje, Pizarro lidera uma equipe de jovens pesquisadores que é a principal responsável pelas novas descobertas nos arquivos do poeta. E o colombiano, que se consolida como uma das maiores autoridades da atualidade na obra do autor, é o mestre desse labirinto.
Pelos menos as últimas 30 edições com inéditos do poeta lusitano têm a participação do pesquisador, seja na descoberta ou na organização. Os poemas desconhecidos de Pessoa que a “Granta Portugal” publicou, ano passado, por exemplo, foram descobertos pelo colombiano e pelo brasileiro Carlos Pittella-Leite, seu orientando. A prosa de Álvaro de Campos, cuja edição antiga não estava completa, foi reorganizada por ele com os inéditos. A publicação de novos poemas em francês e em inglês, além da descoberta de novos heterônimos, teve seu comando. Sete das edições críticas que a Imprensa Nacional portuguesa patrocina desde os anos 1980, quando a primeira parte do espólio foi vendida à Biblioteca Nacional do país, foram organizadas por Pizarro. A lista de livros é profícua.
— Chamo o Jerónimo de mestre do labirinto, porque poucos sabem percorrer os documentos sem se perder. Há teorias de que ele possui irmãos gêmeos trabalhando para ele 24h por dia, pois ele sempre responde a qualquer e-mail em menos de dez minutos, a qualquer hora do dia. E ainda assim sempre aparenta saúde e bem-estar... — brinca o pesquisador Carlos Pitella Leite, da equipe do colombiano. — Além da professora Cleonice Berardinelli, com quem tive a honra de estudar por muitos anos, ninguém me surpreende tanto quanto o Jerónimo ao mergulhar na obra pessoana: o que a mestra Cleonice tem de profundidade, Jerónimo tem de amplitude.
São inúmeras novidades, mas nenhuma delas chegou ao Brasil. A única exceção é a edição crítica que Jerónimo Pizarro fez do “Livro do desassossego” — lançada no país ano passado, em versão comercial, pela Tinta-da-China.
Poeta proibido em casa
A obra é motivo de controvérsia, porque Pessoa apenas deixou fragmentos, alguns sem data, e ninguém sabe ao certo como pretendia organizá-los. Por isso, nas palavras de Jerónimo Pizarro, remexer os velhos papéis do poeta é como cair em uma armadilha.
— Havia muitas versões do “Livro...” Em 1982, surgiu uma importantíssima, que demorou 20 anos para ficar pronta. Outra editora lançou uma em 1991, mas a alterou em 1997. Em 1998, sai a do Richard Zenith (publicada no Brasil pela Companhia das Letras), mas a versão dele já foi alterada pelo menos três vezes — afirma Pizarro. — Em 2010, quando aparece a edição crítica, o cenário era muito caótico. A primeira edição tinha 500 fragmentos, a última já tinha quase 800. Era importante consultar de novo os originais.
Não à toa, depois das 20h Fernando Pessoa é assunto proibido na casa de Jerónimo Pizarro em Bogotá. E lá não entram fotos, camisas, souvenirs do poeta. É preciso desintoxicar, porque também é difícil viver tão imerso na obra de alguém.
— Sinto que durante toda a minha vida Fernando Pessoa vai me preparar surpresas. Afinal, mais da metade do espólio ainda está por conhecer. Estou a descobrir Pessoa todos os dias. É uma tentação permanente, estou sempre entre tentar fugir e ser atraído — diz o pesquisador, com seu português de sotaque castelhano e lusitano. — É um trabalho para várias gerações. Se formos brincar um bocadinho e formos analisar as previsões astrológicas do poeta, só daqui a 150 anos ele será plenamente conhecido.
Como um colombiano se tornou uma das principais autoridades na obra de Fernando Pessoa? Foi por amor, diz ele. Quando fazia seu doutorado em literatura hispânica em Harvard, Pizarro apaixonou-se por uma portuguesa. E, por isso, começou um doutorado simultâneo em Portugal relativo ao espólio — para ter motivos para passar o verão em Lisboa. Concluiu os dois. Hoje, ele ensina na Universidad de Los Andes, em Bogotá.
Claro que o amor não foi tudo. Jovem, Pizarro começou a ler literatura brasileira e apaixonou-se por Guimarães Rosa. Leu Manuel Bandeira, Machado de Assis e outros. Por pouco não veio para o Brasil estudar a obra do autor de “Grande sertão: veredas” (“Quase que Guimarães Rosa foi meu Fernando Pessoa”, brinca).
A equipe que trabalha com Jerónimo Pizarro se beneficia do fato de Fernando Pessoa ter entrado em domínio público em 2006, gerando um segundo boom dos estudos pessoanos. Num caso talvez inédito, a obra do poeta foi liberada para uso duas vezes. A primeira foi em 1985, nos 50 anos de sua morte. Na ocasião, os herdeiros do escritor descobriram uma brecha na lei que esticou o prazo do domínio público para 70 anos, e, em 1997, a obra de Pessoa voltou para a posse deles. Por isso, até 2006 só se conhecia do espólio os escritos permitidos pelos herdeiros — publicados pela Assírio & Alvim, em Portugal, e pela Companhia das Letras, no Brasil. Por aqui, as edições ainda têm o texto estabelecido naquele período.
— As editoras brasileiras e de outros países não reagiram ao fato de Pessoa estar em domínio público — avalia Pizarro.
No ano passado, o trabalho do colombiano foi laureado com o Prêmio Eduardo Lourenço, troféu que leva o nome do filósofo e crítico literário que é uma espécie de Antônio Cândido lusitano. Pizarro foi o primeiro autor latino-americano a receber a honraria. Lourenço definiu o colombiano como “o mais jovem dos heterônimos pessoanos” na ocasião. Afinal, editar Pessoa também é ajudar a construir a obra do poeta, já que ele só publicou um livro em vida, “Mensagem”. O que restou no espólio são livros inacabados, projetos com uma caligrafia difícil — que Pizarro hoje sabe decifrar como poucos.
No Brasil e em Portugal, a pesquisa em arquivos está um pouco fora de moda, depois de ter cedido espaço à teoria literária. MasPizarro defende que é impossível fazer a crítica literária da obra de Fernando Pessoa sem a pesquisa no espólio. Em primeiro lugar, porque as edições antigas podem conter erros. Em segundo, porque o que foi publicado não representa nem metade do que o autor escreveu.
— Hoje a universidade portuguesa estimula pouco os alunos a pesquisarem no espólio. Portugal e Brasil são países com muita influência francesa, e a França tem uma relação difícil com a filologia, em favor da teoria literária. É difícil explicar que a crítica textual faz parte da crítica literária, e elas podem conviver — defende Pizarro.
Fernando Pessoa ficou conhecido como o poeta múltiplo, por conta de seus heterônimos. Mas ele era muitos mais do que se pensava. Ao lado de Patrício Ferrari, Pizarro publicou “Eu sou uma antologia”, em que lista 136 autores fictícios criados pelo escritor — número que pode crescer com novas pesquisas documentais. A primeira lista do tipo, feita em 1990 por Teresa Rita Lopes, tinha 72 nomes.
A pesquisa pessoana sempre foi dividida em grupos de acadêmicos, nem sempre com relações amistosas. Ao formar um time de pesquisadores jovens, Jerónimo Pizarro espera se posicionar do lado de fora de conflitos acadêmicos históricos.
— Tentei criar um novo caminho, com mais liberdade. Quero trabalhar fora do feudalismo das universidades — diz ele.
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