domingo, 28 de dezembro de 2014

Crônica do Dia - "Aos candidato" - Flávia Oliveira

Na carta de um analfabeto funcional imaginário, um apelo pela educação. No Brasil, 28 milhões não têm quatro anos de estudo


Voceis que estam aí guereno sê presidente, eu queria dizê uma coisa. O povo tá precizano di escola. Eu fui na escola um tempos a traz, mais sai. Num foi legau. Tinha uma profeçora com muitos aluno. Eu num consegui aprendê muinta coiza. Só lê um poco. Os pessoau mi xamava de burro. Acabô que sai di la. Eu nem ia escrevê pra vocês candidatu, purque toda vezes que eu escrevu eu veju que as pessoa ri di mim. Eu fui atraz de trabalio e pedirão pra escrevê o que eu gueria. Eu falei pra muler. Ué, eu gueru trabalar. Ai ela falô que eu tia que escrevê izo. Aí eu escrevi lá. Mossa, eu tô quereno um trabalio, cualqé coisa servi. Si eu consegui um trabalio com cartera asinada vai sê bom lá na mia caza. Podi sê pra ganhá um salarrio. Já servi. Eu já poso comesa a ora que você guizé. Si caso você precizá, eu já fico ogi mermo no trabalio. Eu vi que ela pegô o papeu e riu. Eu tavo sentado fingino que tava oliando pra televisao e vi que ela riu di mim. Intam, se era pra ri pra que pedi pra escrevê o papel?

Voutano, eu gueria pedi pra voceis cuidá das escola. Eu vejo as pessoa falano qui sem estudo Tá difíciu. To axando que iço é verdadi mermo. Eu vi no progama que cuasi não tem dezemprego. Mais pra mim tem. As vez eu nem concigo falá prus funsionario que gueru trabalio. Elas diz qui tem que tê negoço di ensinu médio. Eu num tenho izo não. Meu ensinu é baxo. Se a escola sesse legal eu ia lá. Mais não é. Era muito calô lá. Tinha umas coisa guebrada. Tinha briga. As vez nem merrenda tinha. Umas profesora ficava tiste, sabe? Otra não ligava muito. Elas tinha um monti di aluno. Ai eu sai.

Mas quando eu dive um filio o uma filia eu vô guerê que ele vai na escola. Intam voceis que vam ser presidenti e govenardo podia cuida dese negoço. Eu vi que voceis fala negoço do banco independeti. Eu num sei iço não. Indepedenti pra mim é a Mocidade. É aguela escola de samba, num é a escola normau não. Ah os ospital tambeim estam ruim. As vez agente espera no corredo sentado até o médico cheqá. Quandu ele chega é um tumuto. O seguransa que escolhi quem é que vai primeru. Agora eu não sei si seguransa podi sê médico. O ospitaus tambeim estam ruin. Mais eu gueria falá mermo das escola. Cuida delas, candidatu e candidataz. Domigo to lá naguela urna di tomada. Faz um barulio ingrassado.

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A carta é uma livre adaptação da realidade. A colunista encarnou o vocabulário, a ortografia e a construção de raciocínio dos analfabetos funcionais. É um grupo de 28,3 milhões de brasileiros, quase meia Itália ou uma Venezuela inteira. O IBGE estima, via Pnad 2013, que 18,1% dos habitantes de 15 anos ou mais de idade não completaram quatro de estudo no ciclo básico.

Arnor Trovão, Claudio Leitão, Delinete Garcia e Francesca Panza, professores de Língua Portuguesa, ajudaram a identificar as deficiências desses jovens e adultos. Eles têm dificuldades para compreender a ideia principal de um texto. Mal conseguem escrever um bilhete, um parágrafo. O vocabulário é limitado a poucas centenas de palavras.

A formação deficiente dificulta a entrada no mercado de trabalho e condena os semialfabetizados às humilhações de um cotidiano cada vez mais dependente do conhecimento. A carta aos candidatos, no domingo da eleição, é alerta sobre a má qualidade da educação. E apelo à urgência dessa agenda, essencial ao desenvolvimento do Brasil. Bom voto.

05/10/14 - Jornal O Globo 

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