'O racismo é evidente no Brasil', diz Frei David, fundador da Educafro
Grande defensor dos direitos dos povos negros e indígena, ele diz que o racismo está enraizado em toda a sociedade
ANDRÉ BALOCCO
Frei David, diretor da Educafro, diz que o racismo está enraizado em todas as esferas da sociedade
Foto: Paulo Araújo / Agência O Dia
Rio - Quem escuta a voz serena de Frei David, fundador da Educafro, não imagina estar diante de um guerreiro na defesa dos direitos dos povos negro e indígena. Filho de pai negro e mãe branca, ordenado franciscano em 1977, decidiu que lutaria por um país melhor ao ver a pobreza crescer no mesmo ritmo em que surgiam as periferias, fruto da migração urbana forjada pela Ditadura. “Pior era ver que, quanto mais pobre, mais preta a pessoa era”, conta David, um dos sete irmãos da família Santos, nascido em Nanuque, no sertão mineiro, que testemunhou o preconceito por conta do casamento interracial dos pais. “O racismo está enraizado em todas as esferas da sociedade.”
O DIA: No imaginário do brasileiro, somos um país que supera suas diferenças raciais via futebol e samba, entre outras manifestações. Afinal, há racismo no Brasil?
Sim. O racismo é uma construção social e trabalha muito com a interiorização do outro. Realmente o futebol e o samba aparentemente ajudam a diminuir as diferenças e a criar um ideal de igualdade. Mas só no imaginário. Saindo do portão do estádio e da escola de samba, tudo volta à realidade de exclusão. As manifestações culturais têm pouco poder para eliminar o racismo no Brasil. Os instrumentos usados pela grande imprensa geram esta exclusão, quando não tematizam estas realidades em todas as suas dimensões. O racismo é evidente no país. Está enraizado em todas as esferas da sociedade. Quantos médicos negros existem? Quantos juízes negros? Na USP não chega a 2% a quantidade de alunos negros contemplados com o ingresso no mestrado e doutorado. Até quando irão querer abusar dos direitos do povo negro?
Ontem, na primeira reportagem da série do DIA, mostramos que negros e pardos são 2,7 vezes mais vítimas de homicídios no Rio do que brancos. O que faz deles vítimas preferenciais?
Além da pobreza, um dos fatores é o chamado ‘Auto de Resistência’. Escondendo-se neste instrumento, policiais colocam para fora sua potencialidade de ‘bandidos protegidos’. Os bons policiais não usam este instrumento. Há o projeto de Lei nº 4.471/2012 que tenta mudar a realidade. A “bancada política da bala”, composta por amigos das associações de policiais, não deixam o projeto prosperar. As autoridades agem, muitas vezes, de forma arbitrária, infringindo a lei e assumindo postura contrária aos princípios democráticos de direito.
Como mudar?
É preciso melhorar a formação e o salário dos policiais. Todos os cursos devem ensinar a verdadeira história do negro no Brasil, bem como fundamentos de direitos humanos. A lei 10.639/2003 deve ser trabalhada em todas as esferas da educação, do fundamental ao doutorado. Investimento em educação de base, dignidade salarial, diminuição da diferença do menor para o maior salário são algumas das soluções para combater esse genocídio. Outra forma é a fiscalização séria por parte das autoridades da plena aplicação das leis que tratam do racismo e discriminação racial no Brasil.
Nas últimas décadas, diversas políticas inclusivas foram implementadas — e grande parte dos beneficiários é negro. O que o acha delas?
Foi uma luta ferrenha da comunidade negra, especialmente da Educafro. Essas políticas são um dever do Estado e têm por objetivo desenvolver a nação, não deixando nenhuma etnia para trás, conforme acontecia.
Acredita que bastam?
Não. O Estado precisa investir nas diversas formas de desenvolvimento do cidadão negro. Há muitas críticas de que o Estado, ao adotar cotas, fez grandes políticas públicas com investimento zero. Motivo: foi só tirar dos ricos para dar para os pobres. Exemplo: a medicina da UFRJ teve que ceder 50% das vagas para pobres e negros. Isto provocou as elites. Só que, passados alguns anos, estamos vendo nossos jovens negros e brancos, pobres, sofrendo para comprar os caros materiais didáticos, bem como ter moradias próximas das faculdades. Outra situação é a falta de apoio para a alimentação.
Quais políticas inclusivas o senhor recomendaria ao Estado?
Diversidade étnica e de gênero na escolha de Ministros para o STF e STJ; regulamentação da Lei 12.990/2014 de Cotas no serviço público; plano de inclusão de negros/as no ‘Ciências sem Fronteiras’; diversidade étnica na escolha de ministros para comporem os ministérios na Esplanada; criação de um método de inclusão de indígenas e negros no mestrado e doutorado da CAPES/MEC; que o governo federal inclua no orçamento da União para 2015, verba para bolsa moradia e alimentação para todos os cotistas das universidades federais e prounistas pobres das universidades particulares; fim da omissão de todos os partidos políticos na questão da não implementação das bolsas para alimentação e moradia para os estudantes pobres, negros e brancos, beneficiados pelo programa de cotas nas universidades federais; garantia ao povo negro da aprovação do ‘Fundo para Programas de Inclusão’, cuja lei tramita no Congresso; aprovação do projeto que termina com o forjamento dos ‘Autos de Resistência’, resquício do tempo da Ditadura praticado até hoje pelas polícias estaduais para matar prioritariamente negros; criarmos, via Congresso Nacional, o ‘Fundo de investimento no Combate a Desigualdades Étnicas’. O acesso às universidades estaduais e federais precisa ser seguido de sustentabilidade, através das bolsas moradia e alimentação. A regulamentação da Lei de Cotas no serviço público também é algo urgente.
O senhor poderia explicar a importância das cotas nas universidades?
É a maior forma de inclusão étnica e social e fortalecimento da base para chegarmos a um país mais justo. Em dez anos, esta luta das cotas colocou mais negros nas universidades brasileiras do que nos 500 anos anteriores! O Brasil é o país do mundo com o maior plano de inclusão de negros em universidades!
Explique estas dificuldades alimentares e de moradia para cotistas.
Há um grupo de estudantes pobres de várias universidades federais que organizam um acampamento em frente ao MEC e ao Congresso Nacional para que o orçamento de 2015 seja aprovado, garantindo dinheiro para moradia e alimentação. Para nossa surpresa e perplexidade, analisando o orçamento de 2015, o governo federal e o Congresso tiveram a coragem de negligenciar a previsão de bolsa moradia e alimentação. A verba para a sustentabilidade está embutida em vários outros itens. As universidades, por terem muitas outras carências, acabam deixando a menor parte para bolsa-moradia, alimentação e material didático. É um erro. Não aceitamos este descaso, tanto da oposição quanto da situação. Deixar os pobres em universidades federais passando apertos é inaceitável. Os políticos deixam seus filhos passarem necessidades nas universidades?
Recentemente, um acordo entre partidos retirou o Fundo para Programas de Inclusão, previsto no Estatuto de Igualdade Racial. Quais as consequências deste ato?
As políticas públicas voltadas para a população negra só continuarão a ser eficientes se houver previsão orçamentária. Percebemos o desinteresse, da oposição e da situação, para garantir um fundo nacional para a inclusão de negros. Estamos iniciando campanha para recolher assinaturas e fazermos lei de iniciativa popular.
O senhor acredita que, um dia, o Brasil conseguirá acabar com a desigualdade?
Precisamos avançar muito. Por exemplo: o poder Executivo do Estado do Rio instituiu cotas para negros. Fomos ao Legislativo e refletimos que os demais poderes só iriam criar portaria se houvesse lei estadual. Foi o argumento do Ministério Público do Trabalho em 2008, para justificar não atender a representação da Educafrosolicitando a adoção de cotas para negros. O Legislativo estadual fez a lei para todos os poderes, incluindo o próprio Legislativo. O Tribunal de Justiça do Rio derrubou, de maneira injusta e irresponsável, esta lei para todos os poderes. Em seguida engavetam suas decisões para o povo não entrar com recurso no STF. Assim, o TJ revelou que não quer negros em seus quadros. É um tribunal racista, como a maioria dos tribunais do Brasil: não fazem nada para mudar os 514 anos de exclusão. É uma omissão total, como se estivessem fora do Brasil. Como acabar com a discriminação assim? Atualmente a Educafro luta para garantir que essa realidade desigual seja reduzida a médio e longo prazo, com a conscientização das estruturas institucionais do pais.
Faça um balanço do trabalho da Educafro.
Reconhecemos que as vitórias que a comunidade negra conquistou, em nível nacional, foram com muito suor nos últimos 12 anos. Conseguimos reuniões com setores do governo, organização de caravanas para pressionar o governo por nossos direitos, protestos nas portas de órgãos públicos, fechamento da esplanada dos ministérios, ocupações, greves de fome... A Ecucafro foi umas das poucas entidades que participou de todos estes momentos decisivos! Podemos dizer que somos o movimento social que mais consegue abrir canais para liberar demandas da comunidade negra reprimida por 500 anos! Mas ainda é pouco! Para este ano de 2015 estamos com um pressentimento de que teremos muitos obstáculos com o Congresso, mais conservador. Só uma reforma política vai trazer esperanças para o nosso coração, em ver o Brasil sair das amarras da corrupção e da ineficiência pela falta de comprometimento com a inclusão pluriétnica.
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