A gente se engana ao imaginar que tem o controle de tudo. Nem do próprio corpo se consegue ter.
Não falo de partes que, quando nos desobedecem, provocam constrangimentos inacreditáveis. Mas dos olhos. São rebeldes. Olham para onde querem, mesmo que eu saiba que deveria mirar para outro lado. Se sou apresentado a um sujeito de peruca, meus olhos se dirigem inevitavelmente para a franjona na testa. E para o alto da cabeça.
Tento desviar. No instante seguinte, meus olhos estão lá de novo. Na peruca. O perucado, conscientemente ou não, bota a mão no alto da cabeça. Ajeita a franja. Tento fugir. Meus olhos giram como cata-ventos e se fixam novamente nela, na peruca. Há um desconforto. Se a pessoa é educada, simplesmente grunhe e vai em outra direção. Se é mais agressiva, parte para o confronto:
– Tem algum problema com minha peruca?
– Peruca? Nem tinha percebido, pensei que eram seus cabelos naturais.
– É que você não para de olhar.
– Gostei do corte, acho que vou fazer um igual.
Ele sorri, em dúvida. Ataca.
– De qualquer forma, não é peruca.
– Mas eu não disse...
– Estou explicando que não é peruca.
É um implante, tecnologia americana.
– Implante, nossa, nem se percebe!
– É colado no alto da cabeça. Depois, o cabeleireiro corta para ficar igual ao cabelo dos lados. Aí tem de aparar de 15 em 15 dias, para igualar. Ficou bom, não foi?
Sorrio, mais falso que uma nota de dois dólares:
– Ótimo. Eu jamais adivinharia.
Era peruca. Perucado sempre tem franja, e é ela que denuncia. Meus olhos precisavam me pôr nessa saia justa?
Olhos não se importam com isso. Têm vida própria. Se alguém está com um dente feio, é nele que eles se fixam. Espinhas, qualquer defeitinho alheio. No pôquer, as pessoas escondem os olhos. Por um simples motivo: são eles a denunciar se é blefe. A gente sorri falsamente. Mas os olhos?
– Você me traiu? – ela diz.
– Nunca! Nunca!
– Traiu sim, estou vendo nos seus olhos.
Esse diálogo poderia estar em qualquer romance, novela. Se estou pirado – pode acontecer, todo mundo tem seu dia fora dos eixos –, são os olhos que me traem.
– Você está bem hoje? – diz Felippe, meu assistente.
– Estou ótimo – digo.
– É que seus olhos estão esquisitos – diz ele e foge.
Olhos sempre ganharam adjetivos: sonhadores, profundos, intensos, emocionados... Já se disse que são a janela da alma. Posso concordar. Mas quem está a fim de mostrar a alma o tempo todo neste mundo cruel? Pois é, os olhos não deixam nem cometer uma pequena hipocrisia! Se você se fixar nos olhos de alguém, saberá exatamente o que pensa, mesmo que seja algum clone de Jack, o Estripador – e aí, bem, essa será a última coisa que saberá.
Na vida social, só nos levam a desenganos. Como na festa da mulher com decote. Espero para encontrar o possível patrocinador de minha próxima peça. Ele vem com a jovem mulher decotada, a expor os dois troféus. Claro que quer ser olhada. E admirada. Mas a educação ordena que se faça isso discretamente, principalmente acompanhada. Mulher com peito ou bumbum bonito é capaz de perceber um olhar a distância. Não que queira algo comigo. Ou enfeitar a cabeça do marido. É preconceito achar que a mulher se veste para seduzir outros homens. Para ser olhada, sim. Para deixar as amigas loucas de inveja, mais ainda. Enfim, para fazer sucesso. Eis que chega o futuro quase patrocinador com a mulher. Meus olhos convergem para o decote. Os do marido giram em minha direção. Diz, raivoso:
– Como vai, tudo bem?
– Melhor do que nunca – respondo.
– Já conhece minha nova mulher?
Pelo menos não cometi o erro de confundi-la com a filha, ou pior, neta. Elogio:
– Parabéns, é uma linda mulher.
Os dois sorriem satisfeitos. Meus olhos caem nos peitos de novo. Ouço um rosnado do marido. Disfarço.
– Estava admirando seu vestido. É muito bonito.
Ela sorri, extasiada. Ele não cai nessa. Puxa a mulher para um lado. Nem tenho tempo para falar sobre o patrocínio. Só fui à festa por causa do encontro com ele e da possibilidade de patrocínio, que horror! Meus olhos estragaram tudo. Ele a arrasta por um braço, discutem aos cochichos. Mas ouço. Ele reclama do vestido, ela se faz de inocente. O safado sou eu, concluem. E fico ali, parado, olhando para a parede. Os olhos sempre traem. São a parte mais sincera de nós mesmos, reconheço. Mas também a mais mal-educada.
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