domingo, 28 de dezembro de 2014

Crônica do Dia - Bloqueado - Joaquim Ferreira dos Santos

Uma rosa é uma rosa, é uma rosa, e nunca vai passar disso, mas uma mulher nua nunca é apenas uma mulher nua




Uma rosa é uma rosa, é uma rosa, e nunca vai passar disso, mas uma mulher nua nunca é apenas uma mulher nua e uma simples mulher nua. Qualquer um entende. Há várias maneiras e culturas de se registrar o corpo de uma mulher, que tanto pode estar em imagens dos artistas da igreja católica quanto em filmes pornográficos da produtora Brasileirinhas. Mas tente explicar essas diferenças ao Facebook...

No final da década de 1960, ainda tropicalista, Gilberto Gil fez uma música dizendo que o cérebro eletrônico manda e desmanda, faz quase tudo, mas ele é burro. Nelson Rodrigues denunciava o videoteipe como mais burro ainda. Depois do que me aconteceu semana passada, eu não tenho dúvida sobre o vencedor dessa pendenga de asnos. O cérebro eletrônico do Facebook não só é mais burro como preconceituoso. Ele teme acima de tudo o vírus que um hacker maluco projeta neste momento para tirá-lo do ar. Em seguida, apavora-se com a possibilidade de surgir em sua tela uma mulher nua — e, mesmo que ela assim não o esteja, como é o caso em baila, vai bloqueando o demo. Em linguagem de futebol é como se marcasse falta por “perigo de gol”.

Enfim, é o Facebook e ele só está aqui porque assustadoramente é onde todo mundo está, a nova assembleia de condomínio em que a Humanidade expõe seus baixos teores. Vale quase tudo. O dedo no olho, o cuspe na cara, o chute abaixo da cintura, o ódio gratuito e a inveja com motivo justo. Eu descobri que há perigo ainda maior.

Para me antecipar às comemorações dos 45 anos da entrevista de Leila Diniz ao “Pasquim”, na edição de 15 de novembro de 1968, postei um trabalho no Facebook. Aquela entrevista foi um marco na história do jornalismo e da mulher. Dali em diante, o texto da imprensa ficaria menos engomado, a mulher avançaria na sua liberdade sexual.

Publiquei o áudio da entrevista, fiz um resumo do contexto em que ela se realizou — em plena ditadura — e até aí não houve qualquer problema.

O Facebook implicou com a foto de Leila que ilustrava o trabalho, e imediatamente bloqueou a divulgação. Irritado, me passou um pito:

“A sua publicação não foi impulsionada, pois viola as diretrizes de anúncio do Facebook ao incluir uma imagem exageradamente sexual que mostra quantidade excessiva de nudez ou se concentra desnecessariamente em determinadas partes do corpo.”

A imagem “exageradamente sexual” de que me acusa o Facebook é um clássico da fotografia brasileira, capa de uma revista Realidade em 1971. Traz a assinatura elegante de David Drew Zingg, um americano gente boa que literalmente largou a família lá e se mudou para Ipanema, na compreensão de ter encontrado ali o paraíso na terra. A felicidade de Leila Diniz, sua amiga, era uma das provas.

Na foto, em primeiríssimo plano, o fabuloso rosto da atriz dá um imenso sorriso — e olhe que os militares, a esquerda, a família brasileira, as feministas, o mercado de trabalho, todos infernizavam a vida de Leila por causa da tal entrevista, pouco mais de um ano antes. Todos encontraram uma maneira de desgostar: o governo achou subversiva; a oposição, alienada. Reclamaram também de vulgaridade, ingenuidade e do desperdício: por que falar da cama quando o pau estava quebrando nas cadeias?

Indiferente a todos esses bodes, lá estava Leila, alto astral, deitada no chão do estúdio do amigo americano. Na foto, ainda aparecem seus ombros nus e, quase desfocadas, as pernas dobradas, com os pés esticados para cima, como se também sorrissem, brincalhões. O máximo de sexualidade que alguém poderia ver, algum podófilo sujismundo, estaria nas solas dos pés, ligeiramente sujas. De resto, zero de nudez, zero de sacanagem, corpo nenhum. A atriz, ela mesma disse depois, estava de biquíni.

Evidentemente, o computador do Facebook desconhece isso tudo. Trancafiado numa ilha a salvo do ebola, da intifada, dos juros altos e das bicicletas na calçada, o indigitado vai passando seus olhos de logaritmos sobre a Humanidade. Ao estilo do Big Brother de Orwell em “1984”, tenta decodificá-la segundo os padrões de suas diabólicas artimanhas. Desconhece particularidades regionais, bloqueia culturas, bisbilhota a vida alheia e, ávido de poder, vai se fazendo de loja, de televisão, de jornal, de palanque — e controla o mundo segundo seus interesses. Achou um naco de carne suspeito que pode desagradar as famílias? Ele consulta seus algoritmos e, lá de onde está, no meio de um oceano secreto, faz a censura moderna. Bloqueia! Não pode!

Quem vai explicar ao cérebro eletrônico do Facebook, na sua arrogância internacional, que a foto de Leila Diniz sorrindo contra a caretice, da esquerda e da direita, não é uma foto de mulher nua, mas um documento de libertação e História do Brasil?



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/bloqueado-14514436#ixzz3NDIwDMGm

Nenhum comentário:

Postar um comentário