A espetacular reaproximação entre Estados Unidos e Cuba me enfiou num túnel do tempo. Há 30 anos, conheci Havana com um grupo de jornalistas e cineastas, simpáticos à Revolução Cubana. O Brasil não tinha relações diplomáticas com a ilha de Fidel Castro.
Era uma viagem meio clandestina. Não poderíamos ter carimbo no passaporte, só num papelzinho à parte. Na ida, dormiríamos em Bogotá, Colômbia. Na volta, na Cidade do México.
Não era meu primeiro contato com o socialismo. Em 1980, fui num trailer de Londres a Budapeste e Praga. Na fronteira com a Hungria, a polícia me tomou um cartão-postal de Davi, de Michelangelo, como “material pornográfico”. Em Praga, fui obrigada a ir à delegacia diariamente para assinar onde tinha dormido. Sombrios eram os dias.
Ao chegar a Havana em 1984, não vi Cortina de Ferro. Parecia uma ilha em festa. Povo gentil, orgulhoso, caloroso, cheio de ginga. Negros belíssimos, esculturais, tudo era pretexto para dançar salsa e beber rum. As cores do bairro de Havana Vieja, a arquitetura colonial e neoclássica, os carros antigos, a orla do Malecón com namorados aos beijos, pescadores e poetas. O Festival de Cinema lotava as grandes salas. Quem venceu foi Nelson Pereira dos Santos, com Memórias do cárcere. Era esse o socialismo moreno e tropical. Cuba ainda não se tornara órfã da União Soviética. Ainda não desabara com a crise e a decadência, mas já sofria sérios problemas de abastecimento.
Ficamos hospedados no Hotel Nacional, o mais tradicional, construído em 1930 no estilo art déco, com jardins, piscinas e vista para a baía. Os cubanos são como hermanos, parecidos com os brasileiros, talvez mais que qualquer outro povo latino-americano. O prato tradicional, moros y cristianos, é mistura de arroz com feijão. O drinque é o mojito – coquetel à base de rum branco, limão, hortelã, açúcar e água tônica. Para refrescar, o sorvete da Coppelia, num prédio de vidros coloridos, da década de 1960. Para dançar, a Tropicana, com show bem kitsch de mulheres seminuas. Para curtir a noite, bares como a Bodeguita del Medio e a Floridita. Neles, o escritor Ernest Hemingway bebeu daiquiri e mojito.
Os homens, galantes, passavam cantadas, como “tengo ganas de bejarte”. Quem ouviu essa foi Adriana Rattes. Ex-bailarina, uma das criadoras do cineclube Estação Botafogo na década de 1980, Adriana estava no grupo – ela comandou a Secretaria de Cultura do Rio nos últimos oito anos. Fomos todos à festa de gala no Palácio de Fidel. O comandante cumprimentou cada um, olho no olho, com seu carisma e sua farda. Nas mesas, cascatas de camarões e o rum, envelhecido nas moringas de barro.
O melhor da viagem foi caminhar sem destino em Havana Vieja. Chegamos a uma casa com músicos anônimos da mais alta qualidade, que tocaram para nós, numa tarde Buena Vista. Entramos em salas com retratos de Fidel, Che Guevara, Nélson Ned e Roberto Carlos, lado a lado. Na televisão, a novela brasileira Escrava Isaura. Fomos convidados, na rua, para uma feijoada por uma família cubana. No fim do almoço, o dono da casa chamou meu companheiro no quarto e pediu dólar no câmbio negro. Foi a primeira desilusão de meu então marido petista.
Percebemos que éramos vigiados quase todo o tempo. A mesma pessoa estava na recepção do hotel e na rua. Havia sempre um “guia” controlando movimentos e conversas. As crianças nos perseguiam pedindo “plumas” (canetas). Os cubanos nos davam dinheiro para comprar para eles os produtos das “tiendas”, as lojas dos hotéis. Eles não tinham (e não têm) acesso aos produtos das tiendas. Condenados a uma vida pior, mesmo se tivessem poupado para consumir. Queriam a moeda cunhada especialmente para uso de estrangeiros. Queriam viajar, mas não podiam. Queriam liberdade, mas não tinham. Tinham médicos e escolas, mas o preço era alto. Hoje querem acesso à internet.
Gays precisavam disfarçar seus gestos, porque o regime os prendia e torturava. As ditaduras são moralistas. A Revolução Cubana decretou o fim dos homossexuais e das prostitutas. Como se tivesse esse poder. Havia prostitutas de todas as idades. Todo regime totalitário – lá o slogan era “hasta la victoria siempre” – acredita que pode mandar no que você pensa, no que você quer, no que você deseja, no que você lê, no que você vê e em para onde você vai.
A viagem deixou um gosto agridoce. “Pelas frestas dos sorrisos e das janelas, já víamos as fissuras e as contradições de um socialismo tropical que criou castas”, diz Adriana Rattes. Um regime que subjugou a liberdade de muitos ao poder e ao privilégio de poucos. Torço pelo fim do injusto embargo dos Estados Unidos a Cuba e pelo sucesso do gesto de Obama e de Raúl Castro, com a bênção do papa Francisco. Que se abram as fronteiras, as celas e os corações.
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