O RIO DE JANEIRO DE JOSÉ DE ALENCAR: A MODA E AS
TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS URBANAS DA CORTE FLUMINENSE
Cristiane Garcia TEIXEIRA
Resumo: A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro no inicio do século XIX provocou diversas mudanças na estrutura da cidade, bem como proporcionou uma nova forma de sociabilidade baseada nos costumes europeus. Com a modernização advinda a partir da segunda metade do século essa nova sociabilidade passou a exigir dos membros da elite carioca uma maior preocupação com a forma de apresentar-se em público, buscando através da moda e dos manuais de boas maneiras, a distinção e o prestigio social. Essas relações baseadas na “cultura da aparência” estiveram presentes nos romances de José de Alencar; Senhora, Diva, Lucíola e a Pata da Gazela, escritos entre 1862 e 1875. Este trabalho tem por objetivo estudar a moda através destes romances, os quais são uma janela para adentrar na sociedade fluminense oitocentista e buscar compreender a força que a moda e a aparência tinham nas relações sociais deste período.
Palavras-chave: José de Alencar, moda, aparência, prestígio distinção
A chegada da família real ao Rio de Janeiro em março de 1808 iniciou um processo de transformação em todos os setores da cidade que até então, mesmo sendo a capital do vice-reino, vivia sob condições precárias. Estas transformações que estavam relacionadas à questões comportamentais como higiene, costumes e vestuário e à questões estruturais como arquitetura e planejamento urbano deram origem a um processo de europeização da cidade, bem como, dos costumes e do modus vivendi de seus habitantes, que passaram a imitar padrões europeus vistos como civilizados na tentativa de diferenciar-se dos demais estratos da sociedade Este retrato da sociedade da corte do Rio de Janeiro é o pano de fundo dos romances do escritor José de Alencar, como A Senhora, Diva, Lucíola e A Pata da Gazela, escritos entre 1862 e 1875. A partir destes romances, este trabalho buscou estudar e refletir sobre a corte no último quartel do século XIX, sua sociabilidade amparada numa “cultura das aparências” que buscava na moda o respeito, a distinção e o prestigio perante a sociedade. Através destas obras vislumbra-se penetrar no universo desta sociedade como também refletir sobre diversas questões; relacionadas a gênero, padrões de comportamento, códigos de conduta, maneiras de se vestir, entre outros aspectos.
José de Alencar foi um dos literatos brasileiros a retratar, através de seus romances, o papel das aparências como distinção e a busca por respeito dentre as preocupações da corte. Seus romances urbanos estavam em consonância com as transformações que ocorriam na época na cidade do Rio de Janeiro. Traduziam certa realidade social brasileira. Tinha como principal publico leitor as mulheres da elite, contribuindo para o fortalecimento e sustentação de valores ligados a estética da aparência. Seus romances pintavam uma sociedade que buscava através dos costumes europeus a “civilização”. Através das descrições de trajes, costumes e estilos de vida de seus personagens é possível entrar em contato com padrões de moralidade, valores sociais e formas de sociabilidade da época, principalmente por sua característica de valorizar o individuo, o privado e os bens materiais.
Seus romances dão ênfase aos bens materiais que eram símbolo de status na sociedade e fortaleciam as relações sociais. No entanto ao final da trama o valor material sempre perde espaço para o valor moral. No romance A Pata da Gazela, publicado em 1870, a personagem Adelaide apaixona-se por Horácio de Almeida e sua elegância “O leão mais querido das belezas fluminenses, o Átila do Cassino, o Genserico da Rua do Ouvidor” (ALENCAR, 1930, p. 17) porém preferiu casar-se com Leopoldo que não era ligado tão fortemente aos bens materiais quanto Horácio.
No romance A Senhora, publicado em 1875, Fernando Seixas apaixona-se por Aurélia e assume compromisso de casar-se com ela, porém a família de Aurélia vivia na miséria e mesmo existindo amor “O casamento, desde que não lhe trouxesse posição brilhante e riqueza, era para ele nada menos que um desastre” (ALENCAR, 1970, p. 217). Assim não seguiu seu compromisso com Aurélia e acertou outro casamento com Adelaide, que para ele seria mais lucrativo, pois a moçoila precedia de uma família rica que pagaria um bom dote pelo casamento, “trinta contos de réis”. Ao decorrer do romance Aurélia herda de seu avô, que a reconhece depois da morte de seu filho Pedro Camargo, uma herança que a deixa rica. Aurélia então movida pela vingança elabora uma estratégia para fazer com que Seixas não assuma seu compromisso com Adelaide oferecendo a ele um dote de “cem contos de réis” para casar-se com ela, sem que Seixas soubesse que era a própria Aurélia a senhora que estava fazendo a proposta e com a qual iria casar-se. Seixas, “para quem a vida é uma série de etiquetas e cerimônias” (Idem, Ibidem, p. 286) aceitou casar-se com a mulher misteriosa visando o dote. Quando se casa com Aurélia - que tentou humilhá-lo por casar-se com o dinheiro e não com uma mulher - Seixas muda completamente sua atitude materialista, abandonando seu apego às vestimentas - que “era para ele outrora um prazer” onde o “contacto de um novo trajo causava-lhe uma sensação deliciosa, como a de um banho frio em hora de calma”
(ALENCAR, 1970, p. 239) - em virtude de seu amor por Aurélia.
O imperador D. Pedro II dizia-se um grande admirador da literatura brasileira. Assim a presença de literatos era obrigatória nos salões de festas e nos círculos sociais dos que pertenciam a “boa sociedade”, sendo os seus romances um retrato das instituições. É possível entender como era o vestuário e como se desenvolviam as relações entre os indivíduos que a usavam lendo os romances contemporâneos ao período. Os romances de José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo e Machado de Assis faziam minuciosas descrições das vestimentas femininas e masculinas da corte fluminense. “Todo fato indumentário empresta a um texto certo grau de realismo em
conformidade com as convenções de uma época, ao mesmo tempo que revela sua natureza transitória.” (ROCHE, 2007, p. 407)
A escolha pelos escritos de José de Alencar para problematizar e estruturar a análise é atribuída ao fato de seus romances traduzirem, de certa forma, a maneira como a sociedade fluminense do Brasil oitocentista funcionava baseada na cultura das aparências. Descrevendo minuciosamente hábitos, maneiras de se vestir, comportamentos e idéias de pessoas que pertenciam ou que queriam pertencer à elite carioca. Esses romances e suas personagens descrevem muitas particularidades da corte fluminense, foi com este objetivo que eles foram escolhidos como fontes de pesquisa para chegar até uma sociedade que vivia ao mesmo tempo a urbanização, a influência de costumes europeus, principalmente franceses e ingleses e a efervescência da moda que teve no século XIX o seu apogeu.
Sob a perspectiva da moda, desde seu surgimento até sua consolidação e através dos romances de José de Alencar, no período de 1862 a 1875, busca-se entender a importância que se dava as aparências na corte do Rio de Janeiro. Em que sentido esse espírito de ser e ter – a cultura das aparências – permeou questões sociais, econômicas e políticas naquela sociedade de corte? A importância que era dada ao “gozar de boa reputação” e como se teciam as relações sociais pelas aparências, buscando identificar e analisar o que direcionava o uso da vestimenta e a adoção da moda na corte imperial.
1. Os leões da moda e os mocinhos da corte
José de Alencar apresenta Horácio de Almeida:
Nesse momento, porém, dobrando a rua da assembleia, se aproximara um moço elegante não só no traje de melhor gosto, como na graça de sua pessoa: era sem dúvida um dos príncipes da moda, um dos leões da Rua do Ouvidor; mas desse podemos assegurar pelo seu parecer distinto, que não tinha usurpado o título2
Horácio de Almeida, personagem d’A Pata da Gazela é o retrato de um homem imerso na superficialidade. O próprio termo leões usado por José de Alencar para descrever a personagem era também utilizado por cronistas nos periódicos de moda que circulavam na cidade do Rio de Janeiro. Além do termo leões usavam também dândis, fashionables, petit- maitres para fazer referência aos homens que ainda tinham a moda e a roupa como um de seus maiores interesses e preocupações. Nestes periódicos, os leões eram considerados homens fúteis e vazios que acreditavam ser a essência da existência masculina a roupa que o mesmo portava. Esses eram os homens que escravizados pela moda e preocupados com a elegância ainda faziam uso do espartilho, que só a partir do século XIX se tornou um objeto feminino.3
Assim como esses dândis cariocas as personagens masculinas de José de Alencar em sua grande maioria cultuavam, através da indumentária, o materialismo.
“Essa paixão de Horácio, o que é senão uma aberração da alma, consagrada ao culto da matéria? A voracidade insaciável do desejo vai criando dessas monstruosidades incompreensíveis”. (ALENCAR, 1930, p. 23) O que os diferenciava dos demais eram as particularidades das vestimentas, nos dois casos. Os detalhes do corte dos ternos, dos nós das gravatas, as bengalas e o modo como a portavam. Assim como Horácio que é, dentre as personagens dos quatro romances escolhidos para este trabalho, o mais rico e vaidoso de todos, os outros, Fernando Seixas, Dr. Amaral e Paulo Silva utilizavam a simbologia dos detalhes que a vestimenta proporcionava para destacarem-se dos demais. No romance Lucíola há um trecho em que a personagem Lúcia descreve a roupa de Paulo Silva, e através de sua narrativa pode-se perceber que Paulo aparentava ser um homem burguês e tradicional, assim como a fisionomia da cidade do Rio de Janeiro da época “[...] E eu por que reparei no seu trajo, na sua sobrecasaca, em tudo; até na sua bengala. Não é esta; a outra era mais bonita: tinha o castão de marfim.”
(ALENCAR, 1970, p.16)
No Rio de Janeiro do século XIX esperava-se do homem da elite o uso de certos trajes e ornamentos como a “sobrecasaca” de cores obrigatoriamente escuras que em nada combinava com o calor e a umidade que fazia na cidade, proporcionando um desconforto para quem a usava. A calça que apesar de poder variar no tecido deveria ser
extremamente justa para realçar a virilidade masculina. 4
Eram peças de uma moda direcionada a corpos de outras regiões, assim como a cartola que substituiu o chapéu de palha que era mais apropriado para a temperatura tropical. A bengala também era considerada objeto imprescindível para o homem desta classe social, bem como a gravata que era um recurso na tarefa de distinção. Esta última merece uma redobrada atenção. De cor preta ou branca, a gravata amarrava o homem à sua ocupação. Muitos foram os romancistas da época que usaram essa peça como recurso literário; Machado de Assis, Joaquim Manoel de Macedo e José de Alencar, reconhecendo o uso da gravata como necessário para o desenho de uma imagem masculina. É através da aparência deste ornamento – como o nó que era dado, bem como a aparência higiênica – que se tornava possível o reconhecimento social do individuo que a usava. Como o fornecimento de água ainda não era distribuído em igual condição para todos os moradores da cidade do Rio de Janeiro era necessário o trabalho de lavadeiras e engomadeiras para que as gravatas, bem como, as camisas brancas, ficassem apresentáveis. Sendo assim, somente a aristocracia podia pagar pelos serviços destas profissionais valorizando ainda mais a aparência destes itens como símbolos de distinção.
Nesta sociedade em que o homem abandonou as vestimentas e os ornamentos exagerados e passou a transmitir para a mulher a tarefa de exibir sua riqueza através de uma luxuosa aparência, quanto mais rico era esse homem mais requintadas e incomodas eram as vestimentas de sua mulher. “As mulheres desse período tornaram-se uma espécie de objeto sofisticado e caro, marcadas como principal índice de status social de
seu marido e protetor” (BONADIO,2002, p.106-113). A maneira como a mulher se apresentava em público, tanto a esposa quanto a filha e até mesmo a amante, constituía em um meio de afirmação da prosperidade do homem. A personagem Paulo do romance Lucíola expressa essa tendência vivida pela sociedade “[...] eu que esbanjava minha pequena fortuna por ela! Mas as calunias tinham razão num ponto: não exibia a minha amante como um traste de luxo, ou um manequim da moda.” (ALENCAR, 1970, p. 47)
2. As mocinhas da corte carioca e da corte de Alencar
As mulheres eram um dos assuntos prediletos de José de Alencar. O romancista era consagrado pelo sucesso de suas obras entre as moçoilas da corte do Rio de Janeiro.
Ao perceber a recepção feminina, José de Alencar passou a escrever para este público, que por sua vez se deleitava com as heroínas que suas personagens encarnavam.
Heroínas imaculadas de virtudes porque, aparentemente, não correspondiam ao padrão feminino da época. Estas leitoras que se espelhavam nos romances alencarianos, descobriam neles uma fuga da realidade ou um momento de evasão. Chartier chamou à atenção para a força do romance que “arrebata o seu leitor, captura-o, governa seus pensamentos e suas condutas.
Ele é lido e relido, conhecido, citado e recitado. Seu leitor é invadido por
um texto que o habita e, ao se identificar com os heróis da história, é sua própria existência que ele mesmo decifra no espelho da ficção” 5
.
Convém ressaltar que, apesar da leitura dessas obras de Alencar dar a impressão de que as leitoras se emancipavam das amarras da sociedade patriarcal é um lêdo engano, porque não só a vida das mulheres era controlada, a leitura também não era livre, passava pelo crivo de padres, pais, maridos, irmãos ou tutores. Segundo uma analista: “Havia um cuidado excessivo na seleção de obras, temas e autores e, assim, as
leituras eram sempre autorizadas no plano das representações dos romances” (CUNHA, 1999, p. 90).
No Rio de janeiro as transformações ocasionadas pelo desenvolvimento da indústria libertam as mulheres de algumas atividades que se realizavam no âmbito doméstico, o centro urbano facilitou a compra de alimentos e objetos “o pão, a fazenda, a renda, o vestido feito, o chapéu” (SOUZA, 1987, p.89) e possibilitou, com a crescente especialização de profissões, a criação de novos empregos os quais foram preenchidos pelas mulheres do novo proletariado. O casamento para a mulher burguesa que na maioria das vezes era consumado com homens alheios a sua vontade permanecia como prioridade em suas preocupações cotidianas.
O casamento era então uma espécie de favor que o homem conferia à
mulher, o único meio de adquirir status econômico e social, pois aquela que não se casava era a mulher fracassada e tinha de se conformar à vida cinzenta de solteirona, acompanhando a mãe às visitas, entregando-se aos bordados infindáveis, à educação dos sobrinhos. 6
A temática do casamento, bem como a sujeição da mulher ao homem, esteve muitas vezes presente nos romances de Alencar. Em Senhora;
Êste moço chegou ontem; é natural que trate agora dos preparativos para o casamento que está justo há perto de um ano. O senhor deve procurá-lo quanto antes...
- Hoje mesmo.
- E fazer-lhe sua proposta. Êstes arranjos são muito comuns no Rio de
Janeiro.
- Estão se fazendo todos os dias.
- O senhor sabe melhor do que eu como se aviam estas encomendas de
noivos.7
Tanto as mulheres que habitavam o imaginário literário quanto as que povoavam o Rio de Janeiro oitocentista viam seu prestigio diminuído na sociedade quando o casamento não chegava para elas. A figura da mulher nos romances do século XIX sempre esteve relacionada ao drama do amor e da união com um homem. A própria literatura da época ajudou a construir essa identidade feminina. O escritor Gustave Flaubert em seu romance Madame Bovary8 , apresenta a personagem Emma que após casar-se, lembra-se dos livros que lia em sua juventude, histórias essas que a moviam na busca de um marido e que anos mais tarde causaram uma decepção ao constatar que nada era parecido com os “contos de fada” que havia lido, levando-a ao suicídio.
Assim como a sociedade exigia que os homens respondessem a certas normas comportamentais e de vestimenta, também exigia das mulheres estas adequações. A moda da época prescrevia vestidos fartamente rodados, sustentados por inúmeras anáguas e crinolinas que em muitos momentos dificultavam a locomoção da mulher nos espaços urbanos, bem como, a mantinha afastada das pessoas nos bailes e em outras festividades. A crinolina era uma arma na arte da sedução, pois ao simples movimento daquela que a portava permitia aos olhares curiosos a visualização dos pés da moça que era um fetiche. A literatura da época nos fornece ricos relatos sobre os pés femininos.
José de Alencar era um admirador confesso dos mesmos. Essa fixação era bem recorrente desde os seus folhetins até mais tarde a publicação de seus romances, como A Pata da Gazela que é estruturado ao redor de um par de botinas. Num trecho do romance, Horácio fala sobre o pé que vestiu a botina esquecida na Rua da Quitanda, famosa rua do centro comercial da cidade do Rio de Janeiro:
(...) Um pé?... Não; um mimo, uma maravilha, um tesouro, um céu!... É um pudor da violeta, que se esconde na sombra; é o pudor da pérola, oculta na concha, é o pudor do diamante, sumido no seio da terra; é o pudor da estrela, imergindo-se no azul.9
No entanto mostrar o pé não era uma atitude esperada de moças de família.
Esperava-se que esta parte do corpo fosse mostrada apenas aos respectivos maridos.
Assim como os braços e ombros que durante o dia eram totalmente cobertos pelos vestidos do dia. As mangas dos vestidos da noite de festas eram mais curtas possibilitando mostrar um pedaço dos braços que eram cobertos, agora, por luvas. Estas poderiam ser feitas de pelica, cetim, seda, porém eram itens obrigatórios da elite carioca. A mulher pudica usava a luva ao interagir com desconhecidos impossibilitando o contato dos mesmos com as suas mãos nuas. Alencar no seu romance Diva remete ao uso obrigatório das luvas nos relacionamentos sociais quando descreve a recusa de Emilia ao convite do Tenente Veiga para compartilhar a dança, porque o rapaz não estava usando luvas:
- Desculpe-me. Não posso dançar!
- Porque motivo, D. Emília?
Ela calou-se, mas fitou-lhe as mãos com os olhos tão expressivos que o
moço compreendeu e corou:
-Tem razão. Tirei as luvas para tomar chá e esqueci-me de calçá-las10
O uso das luvas em uma cidade de clima tropical como no Rio de Janeiro
mostrava a dependência da sociedade brasileira com a moda vigente na Europa, que era considerada elegante e civilizada. O que amenizava este desconforto com o calor eram as cores que as mulheres podiam vestir. As cores eram consideradas detalhes na classificação social. Às mulheres da elite estava ordenado que usassem apenas cores amenas como tons pastéis, branco, azul, rosa. Cores mais fortes como o vermelho eram dignas de cortesãs, assim como o vermelho forte que José de Alencar usa para vestir a cortesã Lúcia:
Lucia fitou-me por muito tempo, e chegou-se ao espelho para dar os últimos toques ao seu trajo, que se compunha de um vestido escarlate com largos folhos de renda preta, bastante decotado para deixar ver as suas belas espáduas; de um filó alvo e transparente flutuava-lhe pelo seio cingindo o colo, e de uma profusão de brilhantes magníficos capaz de tentar Eva, se ela tivesse resistido ao fruto proibido.11
Percebemos então, que o corpo feminino nesta época era quase que
completamente encoberto e aprisionado pelas roupas. A mulher era uma prisioneira do século XIX, seu corpo era encarcerado por espartilhos que tolhiam seus movimentos, excesso de tecidos, crinolinas, cabelos presos em penteados apertados. A partir deste momento, surge um novo ideal de beleza feminina, como: fraqueza, timidez, inocência, pureza que se tornaram suas principais características. A mulher passa a ser sinônimo de fragilidade. Desmaios freqüentes, saúde fragilizada eram a ela atribuídas. Boa saúde era visto como sinônimo de vulgaridade e característica de mulheres de grupos sociais marginalizados. Seus trajes eram feitos propositalmente para afirmar esta fragilidade.
Ao contrário dos homens, para as mulheres do século XIX, a moda continuava sendo uma grande arma na luta pela afirmação social. Algumas mulheres carregavam consigo de cinco a quinze quilos de roupa, contando com espartilho, corpetes, anáguas, crinolina, vestido que muitas vezes continham 20 metros de lã grossa e ao saírem de suas casas completavam o traje com chapéus e xales de cashmere pesadíssimos.12
Essa fragilidade do corpo feminino ganhou corpo também nos textos de Alencar.
Como, quando Paulo ao ver Lúcia na popular festa da Glória (no outeiro, onde se localiza a igreja de Nossa Senhora da Glória), assim a descreve:
Descobri nessa ocasião, a alguns passos de mim, uma linda moça, que parara um instante para contemplar no horizonte as nuvens brancas esgarçadas sobre o céu azul e estrelado. Admirei-lhe do primeiro olhar um talhe esbelto e de suprema elegância. O vestido que o moldava era cinzento com orlas de veludo castanho, e dava esquisito realce a um desses rostos suaves, puros e diáfanos que parecem vão desfazer-se ao menor sopro, como os tênues vapores da alvorada.13
Em Senhora o autor também explora o mal-estar que as roupas apertadas femininas podiam causar:
Mas Fernando sentiu na face um sopro gelado. Olhou: Aurélia estava
desmaiada em seus braços [...]
Com efeito antes que a inundassem de éter ou álcali, e que lhe desatacassem a cintura. Aurélia abriu os olhos e arredou com um gesto aos [às] pessoas que se alinhavam junto ao sofá.
- Não é nada, uma tonteira, já passou.
O médico que tomava-lhe o pulso, confirmou, limitando-se a recomendar além do repouso, o desafogo do vestido para respirar melhor.14
Convém ressaltar que, coube a mulher às boas maneiras, através da leitura dos manuais de civilidade para conhecer as regras de etiqueta, a correção dos modos e as práticas do bom-tom que indicavam a melhor maneira de sorrir, caminhar, falar, sentarse à mesa, escrever cartas, se comportar na presença de outras pessoas15. Essa “literatura de civilidade”, “compõe um corpus textual integrado por livros voltados para a propaganda de boas maneiras e a partir dos quais é possível aprender e ensinar o que é ou o que deve ser civilizado”, como aponta a historiadora Maria Teresa Santos Cunha16 .
Conforme estas normas “civilizatórias”, cabia a mulher não se ausentar de casa sozinha, sendo sempre acompanhada ou pelo marido, filho, pai, irmão, governanta ou escravos. As mestiças e as cortesãs eram as únicas que saiam sozinhas na rua. Foi destamaneira que a personagem Paulo conseguiu identificar que Lúcia era uma cortesã quando a percebeu andando sozinha na rua.
- Não é uma senhora Paulo! É uma mulher bonita. Queres conhecê-la...
Compreendi e corei de minha simplicidade provinciana, que confundira a máscara hipócrita do vicio com o modesto recato da inocência. Só então notei que aquela moça estava só, e que a ausência de um pai, de um marido, ou de um irmão, devia-me ter feito suspeitar a verdade.17
Além das inúmeras proibições, nestes livros elas encontravam, entre outras coisas, a maneira como deveriam se comportar na presença de um homem, o rigor do comportamento feminino era mais escrupuloso do que o masculino. Segundo as normas de boas maneiras a mulher deveria ser modesta e silenciosa, se acaso o homem parasse de falar era correto que ela também parasse, era correto que a mulher não mostrasse estar se divertindo quando o estava. Jamais poderia prolongar uma conversa com um homem por sua vontade. Ao sair era correto que a mulher aceitasse tudo o que o seu acompanhante a oferecia e se acaso sua vontade desejasse outra coisa era proibido pedir.
Havia alguns lugares do corpo da mulher que só podiam ser mostrados durante a noite em festas e comemorações, entre outras muitas exigências.
A vestimenta era uma grande aliada na técnica da sedução. Gilda de Mello e Souza atribui mais ao pudor do que à modéstia, ao truque de chamar a atenção para certas partes do corpo através dos ornamentos a origem da vestimenta. “Com efeito, a moda começa realmente quando, a partir do século XV, descobriu-se que as roupas poderiam ser usadas com um compromisso entre o exibicionismo e o seu recalque (a modéstia)” 18. Desde então, segundo a autora, duas tendências tem se manifestado nas ondulações da moda; a do exibicionismo, de mostrar o corpo e a do puritanismo de escondê-lo. A primeira tendência é mais rara e aparece principalmente nos momentos de crises sociais onde a moral perde um pouco a força. Já a segunda é mais comum e caracteriza todo o século XIX e a primeira metade do século XX. Mas, mesmo que a roupa cubra o corpo da mulher ainda assim acentua suas características sensuais, chamando menos a atenção para a parte do corpo desnuda do que fica acentuada pela vestimenta. Assim, a vestimenta vai seguir a inclinação da tafularia no jogo de mostrar e esconder ao mesmo tempo. “a oferta interrompida através dos véus que escondiam a meio o rosto, combinando o despudor dos decotes com a multiplicação das anáguas” (SOUZA, 1987, p. 94). E não há melhor ocasião para o jogo de sedução do que os salões de festas.
3. Os salões da corte e os salões alencarianos
Para os membros da elite carioca o Brasil do século XIX tornou-se o país das festas. A realeza que aqui aportou no início daquele século propiciou a realização de muitas festas, inclusive as festas populares comemoravam tanto visitas de outros reis e rainhas, bem como, datas cívicas e religiosas do calendário oitocentista brasileiro. Eram verdadeiros espetáculos onde a realeza desfilava usando seus trajes de gala. Nestas festas populares a nobreza ostentava sua riqueza e os humildes vendiam o que podiam para misturar-se entre os primeiros.
[...] É pelo tempo das festas que a natureza produz as mais saborosas frutas e as mais lindas flores. Velhos e moços aguardam as festas com viva ansiedade. Humildes e abastados gastam, então, livremente. Os ricos estadeiam sua opulência e os pobres chegam, às vezes, a vender o seu último escravo – que aí se considera o mais indispensável de todos os haveres – para comprar roupa nova, adornos [...] para as festas.19
Desta forma a festa acabou por se tornar uma tradição. A partir do segundo decênio do século, onde a cópia dos costumes e da moda européia ficou mais forte, passaram a existir festas particulares organizadas pela elite que freqüentava a corte. No Rio de Janeiro eram nas festas20 que se tornavam mais evidentes as aparências, onde os indivíduos verdadeiramente a usufruíam. Nelas homens e mulheres tornavam–se atores da peça teatral que a vida na corte proporcionava. Estar em uma festa era estar temporariamente em um mundo de fantasias onde as regras e sua vigilância rigorosa poderiam até certo ponto ser ludibriadas. Como durante o dia a aproximação íntima entre homens e mulheres era reprimida, a indumentária feminina especialmente, o vestido refletia essa rigidez, o qual não poderia marcar, mostrar ou acentuar certas partes do corpo. À noite os mesmos vestidos eram utilizados, porém adequados a ocasião de festa, para chamarem a atenção masculina para certas partes do corpo que só neste momento poderiam estar acentuadas e expostas.
Os trajes da noite faziam emergir um novo personagem nada comparado ao mesmo que usava as roupas discretas do dia. Alencar na sua narrativa consegue estabelecer a diferença entre os trajes usados de dia, dos trajes usados à noite, ao descrever cada um deles de forma minuciosa. Por exemplo, o traje de dia de Amélia:
“Nesta tarde Amélia preparou-se [...]. seu adorno simples, um modesto vestido branco com fitas azuis, tomou-lhe mais tempo, do que não levaria a compor um traje suntuoso.”
(ALENCAR, 1930, p. 92). E o traje de noite da mesma:
Era nove horas. Ainda o baile não começara; e notava-se na reunião a
gravidade solene, o grande ar de cerimônia, que serve de prólogo às festas esplendidas. Os cavalheiros percorriam lentamente as salas, observando o íris deslumbrante que formavam os lindos vestidos das senhoras; mas admirando especialmente as estrelas que brilhavam nessa via-láctea.
Amélia acabava de sentar-se Horácio foi logo saudá-la e cumprimentou-a pelo bom gosto do traje.
Realmente não se podia imaginar um adorno mais gracioso. O vestido era de escomilha rubescente, formando regaços onde brilhavam aljôfares de cristal; nos cabelos castanhos trazia uma grinalda de pequenos botões de rosa, borrifados de gotas de orvalho.
Um poeta diria que a moça tinha cortado seu traje das finas gazas da manhã; ou que a aurora vestindo as névoas rosadas, descera do céu para disputar as admirações da noite21
Essa proficiência em descrever os vestidos pode ser justificada pela presença constante do escritor nas festas da corte. Em seus folhetins já anunciava o gosto por freqüentar estes bailes “Por mim, confesso humildemente, prefiro um baile, como o de segunda-feira, a mais importante discussão da Câmara dos Deputados ou do Senado.
Que fazer! São gostos!”(NETO, 2006, p. 91-92). Em seus romances repletos de reuniões festivas descreve algumas delas:” [...] Já o baile tinha perdido a simetria da entrada, no seio da confusão que é seu maior encanto: a música, as vozes, os risos, os ruge-ruges das sêdas, os burburinhos da festa, enchiam o salão“ ALENCAR, 1970, p. 104). Em A Senhora ao descrever a festa de Aurélia mostra a influência européia que esta desfrutava: “As partidas de Aurélia, ou recepções, como as chamava o Alfredo Moreira, à parisiense, eram das mais brilhantes que então se davam na corte” (Ibidem, p. 245).
Contudo, ao mesmo tempo em que ele se deslumbrava e descrevia as festas com a intenção de também, deslumbrar o leitor não deixava de tecer críticas ao exagero, por parte dos moços, em freqüentar estas festas cariocas. Exagero estes, que poderiamacarretar a eles um envelhecimento precoce: “- Somos ambos moços, Paulo: porém sou mais velho três anos de idade, e oito de Rio de Janeiro. A corte é um pais onde se envelhece depressa; por isso não te admires se falo como um homem de cinqüenta anos.” (Ibidem, p. 240)
Nestes bailes, as danças permitiam uma aproximação que só era possível nestas ocasiões “Envolvidos na vertigem da valsa, homens e mulheres podiam aproximar os corpos e até colocá-los, numa atitude chocante para os mais conservadores”
(MACHADO, 2010, p.164). Os toques das mãos ao retirar as luvas masculinas, a forma como eles convidavam e conduziam a dama na valsa. Além da aproximação entre homens e mulheres, as festas eram as responsáveis por uma branda pausa nas hostilidades que as barreiras de classe causavam. Ao mesmo tempo em que os indivíduos das classes mais baixas ou procedentes da elite tinham o privilégio do convite às festas da corte e nelas buscavam através da imitação da classe dominante – principalmente através dos sinais das vestimentas – misturar-se à mesma tornando-se parte por algumas horas. Também se expunham aos olhos da sociedade ociosa que em nada sentiam mais prazer do que reparar os modos e “gafes” que esses indivíduos cometiam tanto no exagero das vestimentas, quanto na forma exagerada no comportamento.
A festa era então um fato social que tinha uma relação intima com a moda e com os modos mundanos. Porém, ao abrirem temporariamente as portas para as pessoas que até então não se encaixavam no grupo e passavam a adaptar-se a este, logo as fechavam novamente. Cristalizando o que estava flexível. As barreiras de classes estavam de volta e só era possível tornar-se um membro da elite novamente quando esta o permitisse.
Assim os menos favorecidos que tinham essa oportunidade não mediam esforços para conseguir se igualarem à classe mais favorecida. Vestidos feitos em casa dando ênfase aos bordados, as jóias que eram emprestadas atribuíam a festa um ar da “cultura de aparências” em que reinava um “falso fausto” da sociedade brasileira. Uma festa teatral ou um baile de máscaras, onde a verdadeira identidade deveria sempre ser escondida e o que não era materialmente adquirido deveria ser encenado.
http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/baleianarede/article/view/3365/2590
Os romances urbanos de José de Alencar ajudaram bastante a resgatar costumes do passado.
ResponderExcluirA vinda da família real para o Brasil trazendo consigo toda a corte mudou profundamente os hábitos (cultura, alimentação, arquitetura, etc) no Rio de Janeiro.
Além disso trouxeram a cultura da aparência(importante era parecer, e não ser), novas roupas que eram inadequadas para o clima daqui e uma nova moda de se vestir.
Podemos perceber esses costumes facilmente a partir das obras de Alencar e de outros escritores do século XIX, que ajudaram a reconstruir a história do Brasil.
Thales Borges - 802