domingo, 28 de dezembro de 2014

Te Contei, não ? - Casa Brasileira

SALVADOR - É uma triste assertiva: o país não tem a tradição de preservar sua memória. Se tomarmos o caso dos grandes escritores brasileiros, são pouquíssimas as casas ou acervos pessoais abertos ao público — conhecer um dos imóveis onde viveu Machado de Assis, por exemplo, é impossível. A única casa do bruxo que ainda resta em pé, e onde escreveu “A mão e a luva”, em 1874, hoje é um cortiço na Lapa, sem qualquer alusão ao autor.

Po
r isso, a notícia de que será aberta ao público, totalmente reformada, a Casa do Rio Vermelho, como era chamada a residência do escritor Jorge Amado em Salvador, é no mínimo instigante. Fechada desde 2003, depois da sua morte, em 2001, a casa é uma preciosidade: comprada com o dinheiro da venda dos direitos autorais de “Gabriela, Cravo e Canela” para os estúdios MGM em 1960, foi lá que o escritor e a mulher, a romancista Zélia Gattai, viveram por 37 anos, depois de morar na Europa e no Rio.

Foi onde Jorge Amado escreveu livros, colecionou objetos de arte de todo o país e do mundo (nas suas paredes, Picasso convivia com Mestre Vitalino), e onde o casal recebeu hóspedes ilustres, como Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, Pablo Neruda, Glauber Rocha e até Jack Nicholson e Roman Polanski (que chegou a dizer que, na infância dele, os únicos livros que falavam de liberdade na Polônia eram os de Jorge Amado). Quando Zélia morreu, em 2008, suas cinzas foram enterradas junto às do marido, no jardim, à sombra de uma mangueira, sob dois banquinhos decorados com azulejos de Carybé.

A casa que o visitante vai encontrar a partir de amanhã foi transformada num centro cultural high-tech pelo arquiteto Gringo Cardia, que aproveitou a estrutura original do imóvel e os objetos guardados pela família e transformou cada cômodo numa chance de “viver a experiência Jorge Amado”:

— Estou há um ano mergulhado em Jorge Amado para restaurar essa casa, e descobri que ele não era só um escritor. Era um antropólogo, um filósofo, um profundo defensor da cultura brasileira, da nossa mestiçagem, que defendia até politicamente. Por isso, quis fazer um museu vivo, que permita às novas gerações viver a experiência Jorge Amado. A ideia da curadoria é mostrar além da casa, que por si só já é um museu de arte popular brasileira, mas mergulhar as pessoas no imaginário dele. Da sua literatura cheia de sons, cheiros, sentidos — declara Gringo Cardia.


História do casal

Assim, ao entrar pela cozinha, repleta de cestarias, gamelas e cheirando a pimenta fresca, o visitante poderá ver três vídeos que mostram a famosa cozinheira baiana Dadá fazendo três receitas dos livros de Jorge Amado. A antiga piscina da casa foi transformada num “lago de sapos”, onde ficará boa parte da coleção de sapos do escritor, além de sapos de verdade. As salas de leitura exibirão 120 vídeos (totalizando dez horas de depoimentos) sobre a obra de Jorge Amado, com artistas e personalidades fazendo leituras de seus trechos preferidos (tem o boxeador Popó lendo “Jubiabá”, Paulinho da Viola lendo “Tenda dos Milagres”). Os quartos contam tanto a história das muitas viagens do casal (“Eles foram os Indiana Jones dos anos 1930”, compara Gringo), como a importância do amor e do sexo nas tramas do autor.

Todo o ambiente respira a história do casal: além da coleção de esculturas, quadros e azulejaria espalhada pelos mil metros quadrados do imóvel, muitos objetos pessoais estão em exibição, como a máquina onde o autor escrevia seus romances, os livros da sua biblioteca, as malas de viagens e até os ímãs de geladeira (há um que diz, com notas musicais: “Eu amo música”).



— Os últimos dias eu passei fazendo flores de papel para a reinauguração da casa, exatamente como fazia aos 16, 17 anos com a minha mãe quando recebíamos visita. O Gringo me pediu para fazer igual. Estou revivendo toda minha vida enquanto faço isso. Reabrir a nossa casa é cumprir uma promessa que fiz à minha mãe. Esse era o sonho dela. Estou emocionadíssima — conta Paloma Amado, que só vai ver a casa pronta amanhã.

R$ 6 milhões da prefeitura

Quem também está curiosa para ver como ficou a casa que serve de base para suas pesquisas é a jornalista Josélia Aguiar, que está finalizando a biografia de Jorge Amado pela editora Três Estrelas. Ela lembra que, apesar de tantas cidades por onde viveu, entre viagens e exílios, o sonho de morar na Bahia sempre o acompanhou.

— Zélia conta detalhes da mudança para a casa no livro “Chão de meninos”. Ele já estava com 50 anos, com uma vida literária estabelecida, não militava mais no PCB, vinha de sucesso imenso como “Gabriela” e queria que os filhos crescessem num lugar tranquilo. Comprou a casa, que foi reformada. Jorge queria uma casa simples, com jardim grande. Desde o princípio, uma das diversões para ele era conseguir mudas diferentes para esse jardim. A partir de 1963, quando se muda, Jorge passa a ser um dos centros da efervescência artística e cultural da Bahia, reunindo artistas e intelectuais baianos e do exterior em sua casa. Muitas dessas histórias são relatadas de novo por Zélia, no livro “A Casa do Rio Vermelho” — detalha Josélia.

A reforma custou R$ 6 milhões à Prefeitura de Salvador e foi feita com apoio da Fundação Jorge Amado, que mantém um centro de preservação do acervo audiovisual e de estudos da obra de Jorge Amado no Pelourinho. A expectativa é receber entre 10 e 30 mil visitantes por mês. A entrada custará R$ 20, e não ser para estudantes, professores e idosos, para quem o acesso será gratuito.



O que ver:

Obras de arte: Azulejaria, esculturas , gravuras e pinturas de nomes como Carybé, Brennand, Mestre Vitalino, Picasso

Acervo pessoal: Livros, roupas, cartas, fotos, cadernos, máquina de escrever, malas, coleção de sapos, comendas, relíquias de viagens, plantas

Vídeos: Depoimentos gravados por nomes que vão de Paulinho da Viola a Ivete Sangalo, passando por Carlinhos Brown e Mãe Stella de Oxóssi, em mais de 120 videoinstalações



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/fechada-por-11-anos-casa-onde-viveram-jorge-amado-zelia-gattai-vira-centro-cultural-14478071#ixzz3NCbOWy7X



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