quinta-feira, 1 de maio de 2014

Artigo de Opinião - Yes, nós temos bananas - Leonardo Pereira

Yes, nós temos bananas

A força simbólica da resposta de Daniel Alves expressa a herança de uma vivência de preconceitos nos campos presente desde o começo da prática do esporte inglês no Brasil

Ao comer a banana que lhe foi arremessada pela força do racismo nos campos espanhóis, o lateral direito Daniel Alves virou motivo de polêmica. A partir de seu ato, personalidades e torcedores anônimos passaram a fazer da fruta o símbolo de uma campanha contra a discriminação e a intolerância racial nos campos europeus. Outros viram em tal atitude uma alusão infeliz, que reproduziria o racismo do torcedor que arremessou a fruta. Analisado pela perspectiva da história do futebol no Brasil, no entanto, a banana dada pelo lateral direito ao preconceito constitui mais um capítulo do longo processo de enfrentamento da discriminação racial que marcou aqui a apropriação do futebol por negros e mestiços.
A força simbólica da resposta do jogador brasileiro expressa a herança de uma vivência de preconceitos nos campos presente desde o começo da prática do esporte inglês no Brasil. Ao fundarem os primeiros clubes dedicados à sua prática nas grandes cidades brasileiras, os jovens endinheirados e quase brancos que os compunham trataram de tentar garantir sua exclusividade e distinção com regras que excluíam de suas disputas jogadores cujas feições ou ofícios pudessem aproximá-los da experiência ainda recente da escravidão. Em 1907, a liga que controlava o futebol no Rio de Janeiro chegou a enviar aos clubes a ela associados um ofício no qual comunicava a todos “que não serão registradas como amadores nesta liga as pessoas de cor”.
Na contramão de proibições como estas, negros e mestiços teimavam em praticar o jogo em clubes e ligas próprios. Ainda assim, era branca a imagem que os dirigentes esportivos nacionais tentavam projetar através do esporte — como sugeria o aspecto helênico dos jogadores que participavam dos selecionados que representavam o país nas primeiras disputas sul-americanas. Em uma delas, no entanto, a contradição desse esforço de distinção se mostrou de forma clara: em meio ao campeonato sul-americano de 1920, realizado no Chile, a delegação brasileira tomou conhecimento das reportagens publicadas em Buenos Aires, pelo jornalista Palacio Zino. Sob o título “Macacos em Buenos Aires”, ele atribuía a toda a delegação brasileira, formada pelos filhos de algumas das mais destacadas famílias do Rio de Janeiro e de São Paulo, esta marca negra — em sugestão potencializada pela caricatura que acompanhava a matéria, na qual os jogadores e dirigentes esportivos que compunham a delegação brasileira eram igualmente representados como símios. Sem reconhecer entre os brasileiros nenhum tipo de diferença, a matéria descrevia a todos como macaquitos — imagem que seria recorrente, a partir de então, na imprensa portenha.
No Brasil, é claro, o caso foi tomado como grande ofensa. Indignados, jornalistas de diferentes folhas atacavam o articulista, que, na sua ignorância, atribuíra a uma delegação composta por jovens refinados e distintos a marca negra de que tanto desejavam se afastar. Um escritor destoava, no entanto, da indignação geral. Mestiço e crítico das teorias raciais, o romancista Lima Barreto tratava o caso com desdém. “Não vejo motivos para zanga nesse história de os argentinos chamarem-nos de macacos”, defendia em crônica publicada na revista “Careta”. Exaltando as qualidades do animal, notava que nas “histórias populares” brasileiras ele seria sempre objeto de “muita simpatia”. Passava por isso a tratá-lo como um símbolo legítimo e positivo da nacionalidade, assim como os ursos brancos no caso dos russos ou o galo para os franceses. O fazia, é claro, como uma provocação à elite do esporte nacional, como deixava claro ao fim de outra de suas crônicas: “A nossa vingança é que os argentinos não distinguem, em nós, as cores; todos nós, para eles, somos macaquitos.” Rindo de uma elite que pretendia ser o que não era, Lima Barreto evidenciava o caráter socialmente determinado da aversão àquele símbolo.
Era atuando nas brechas de tais contradições que jogadores como Leônidas da Silva e Domingos da Guia, destaques brasileiros na Copa de 1938, conseguiriam nos anos seguintes garantir o espaço dos afrodescendentes nos campos nacionais. Revelava-se assim um processo de enfrentamento do preconceito nos campos que, capitaneado pelos próprios negros e mestiços, ajudou a redefinir nos anos seguintes as imagens da nacionalidade.
Não é um acaso, por isso, que tenha sido de um jogador brasileiro um dos mais fortes atos simbólicos contra o preconceito que insiste em reaparecer nos campos do presente. Ao comer a banana, e explicar que usou a energia dela decorrente para fazer o cruzamento do qual poderia sair o gol da vitória de seu time, Daniel Alves mostrava mais uma vez a capacidade de ação que marcou nas décadas anteriores a história de outras vítimas do racismo nos campos. Ao inverter e ressignificar o sentido da alcunha macaquito, passava a englobar nela não só os que comem as bananas, mas também os que as arremessam. A diferença é que o lateral direito, respaldado pela história dos negros nos campos do Brasil, fez disso motivo de orgulho e expressão de conquistas, enquanto o torcedor que lhe jogou a fruta apenas dava margem a seus instintos animais mais básicos.


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