Por: Revista Veja
Para um país
desmemoriado, nada pior que dois ex-presidentes empenhados em manipular a
história de modo a jogar uma sombra sobre suas traficâncias
ANDRÉ PETRY
Atribui-se a Napoleão Bonaparte a afirmação segundo a
qual a história é particularmente movimentada: "Nada muda mais do que o
passado". Na última semana, dois ex-presidentes do Brasil comprovaram a tese de
que, se a história não muda tanto quanto Napoleão queria, pelo menos as
tentativas de mudá-la são persistentes. Absolvido em definitivo no Supremo
Tribunal Federal das traficâncias de que era acusado durante seu governo
(1990-1992), Fernando Collor, hoje senador pelo PTB, disse que a decisão veio
"me aliviar as angústias que tenho vivenciado nos últimos 23 anos" e fez uma
indagação com aquele mesmo tom triunfal que usava antes de ser enxotado do
Palácio do Planalto: "Quem poderá me devolver tudo aquilo que perdi, a começar
pelo meu mandato presidencial?"
Em visita a Portugal, o ex-presidente Lula deu uma
entrevista dizendo três enormidades. Afirmou que o julgamento do mensalão pelo
Supremo Tribunal Federal "teve 80% de decisão política e 20% de decisão
jurídica". Disse que os petistas condenados e presos na penitenciária da Papuda,
entre os quais se encontram José Dirceu e José Genoino, agora regressando à cela
depois de ter sua prisão domiciliar cancelada, "não são gente da minha
confiança". E encerrou com uma afirmação fabulosa, em que simula a um só tempo
dúvida e distanciamento: "O que eu acho é que não houve mensalão".
O dado comum entre as
manifestações de Collor e Lula é o que se chama de revisionismo histórico. No
meio acadêmico, é uma prática legítima que reexamina a história à luz de fatos
novos,documentos inéditos ou uma abordagem original. Na política, a revisão da
história é, quase sempre, uma falsificação grosseira — à esquerda (vide a
historiografia soviética) ou à direita (vide a negação do Holocausto). Embora
seja um facciosismo inadequado para um ex-presidente falando no exterior, Lula
tem o direito de criticar o julgamento do STF, mas é uma enganação torpe afirmar
que os presos da Papuda não eram gente de sua confiança — José Dirceu era, nas
suas palavras, o "capitão do time", lembra? — ou dizer que o mensalão não
existiu. Na famosa entrevista de Paris, no auge do escândalo de 2005, Lula disse
que a gente de sua confiança "não pensou direito", mas fez "o que é feito no
Brasil sistematicamente". Queria reduzir o mensalão a caixa dois eleitoral.
Sabia, portanto, que havia algo errado feito sem "pensar direito". Agora, faz de
conta que nada havia. É grosseiro.
Collor, por sua vez, pega carona na absolvição do STF
(que é jurídica, seja lá qual for a proporção matemática que queira encontrar
aí) para tentar desqualificar seu impeachment pelo Congresso Nacional (que é uma
decisão 100% política). Ou seja: ser inocentado no STF não significa que o
Congresso errou ao destituí-lo do cargo. Como diz a Carta ao Leitor desta
edição: "Collor não foi eleito nem cassado por decisão do STF. Foi eleito pelo
povo e cassado por seus representantes legais em votação aberta do Congresso
Nacional". Confundir as duas coisas é uma forma ilegítima de retocar a história.
Ninguém há de censurar políticos pela tentativa de jogar uma luz mais favorável
à sua história, limando a ferrugem da imagem. É do jogo político em qualquer
democracia. O dado intolerável é fazê-lo à base de falsificações, deformações e,
no limite, mentiras rudimentares. Com ex-presidentes assim, os cidadãos precisam
estar ainda mais alertas para outra afirmação atribuída a Napoleão: "A história
é um conjunto de mentiras sobre as quais se chegou a um acordo".
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