Engenheiro e doutor em economia pela Universidade de
Chicago. Claudio Haddad. 67 anos, sofreu, digamos assim, uma reprovação no campo
acadêmico. Ele resolveu fazer, só de curiosidade, a prova de conhecimentos
gerais do Enade, o exame do Ministério da Educação para os recém- formados nas
universidades. Segundo o gabarito oficial do MEC, ele errou metade das questões.
Como assim? Haddad, que preside o Insper, faculdade que fundou em São Paulo com
o nome lbmec, em 1999, depois de quinze anos como sócio do Banco Garantia, está
desatualizado? Nada disso. O defeito é da prova, que não se propõe a medir
conhecimento, mas a aferir o grau de alinhamento do candidato com a ideologia em
voga em Brasília. Diz Haddad: “E uma prova com viés ideológico, alta dose de
subjetividade e um olhar simplista sobre as grandes questões da atualidade”.
O que o motivou a fazer uma prova de conhecimentos gerais para
recém-formados?
Meus alunos se saíram mal, e quis entender em que tipo de conhecimento eles
patinavam. Passei o olho nas questões em uma cópia do teste. Eram enunciados
enormes, que me deram a impressão de conter alto grau de subjetividade. Por
isso, resolvi fazer a prova duas vezes. Na primeira, respondi tudo da maneira
que julguei a mais correta: na segunda vez, assinalei as opções que imaginei
serem aquelas que os avaliadores considerariam acertadas por terem um viés mais
ideológico. Resultado: à luz de meus conhecimentos, errei quatro de oito
questões de múltipla escolha. Ou seja, um fiasco. Já na versão que fiz com o
único intuito de dar as respostas que os examinadores queriam, fui muito bem.
Acertei sete. Só errei mesmo uma em que, sinceramente, apesar de ter me detido
nela inúmeras vezes, até agora não vi lógica.
O senhor está dizendo que a prova foi mal formulada?
Sem dúvida. Não se pode dizer que uma questão de conhecimentos gerais que se
fia num viés político e ideológico e abre espaço para interpretações subjetivas
seja bem formulada. Uma boa prova deveria se basear em fatos objetivos, e não em
crenças.
Dê um exemplo de como o viés ideológico aparece no Enade?
Uma das questões que mais me espantaram pede aos estudantes que reflitam
sobre ética e cidadania, marcando as definições que expressem bem os dois
conceitos. Uma das alternativas diz que, sem o estabelecimento de regras de
conduta, não se constrói uma sociedade democrática e pluralista, terreno sobre o
qual a cidadania viceja como valor. Está correto. A outra enfatiza que o
princípio da dignidade humana é o avesso do preconceito. Também está certo. A
zona de sombra paira sobre a terceira proposição, a que o MEC considera correta.
“Toda pessoa tem direito ao respeito de seus semelhantes, a uma vida digna, a
oportunidades de realizar seus projetos, mesmo que esteja cumprindo pena de
privação de liberdade, por ter cometido delito criminal, com trâmite transitado
e julgado”. Isso é apenas uma divagação opinativa do formulador da prova sobre
como seriam as condições ideais de vida de um preso. Existem maneiras bem mais
objetivas e lógicas de testar o conhecimento do candidato sobre ética e
cidadania.
E por que o senhor discorda da afirmativa?
Como alguém que cometeu um crime e está preso pode ter garantido o seu
direito de realizar “projetos” como os demais cidadãos? É, antes de tudo, um
absurdo lógico. Vejo aí uma condescendência típica de certas organizações de
direitos humanos, que brigam indiscriminadamente por tudo o que é benefício para
o preso: visita íntima, saída à vontade da cadeia. Isso, aliás, está bem em voga
no Brasil. Faz parte do caldo ideológico incapaz de ver uma questão tão complexa
sob todos os prismas.
O desprezo pela lógica é o pior defeito das questões do Enade?
A imposição de uma maneira de pensar é igualmente danosa. Uma das perguntas
faz uma longa digressão sobre os jovens de hoje, que preferem ficar fechados em
seu quarto mexendo no computador e jogando videogame a passear pela praça. 0
texto prega que a imersão no mundo eletrônico desvia a atenção das crianças dos
impactos dos danos ambientais. A prova pede que o candidato escolha o título
mais adequado para o texto que acabou de ler. Minha opção foi: “Preferências
atuais de lazer de jovens e crianças: preocupação dos ambientalistas”. Errei.
Para os avaliadores o título correto é: “Engajamento de crianças e jovens na
preservação do legado natural: uma necessidade imediata”. Esse não é o título
mais adequado para o texto, aliás de péssima qualidade. O que se tem no conjunto
de texto e resposta é uma combinação de subjetividade total com pregação
ambientalista. A questão não tenta medir o conhecimento do candidato. mas saber
quanto ele está enquadrado na maneira de pensar oficial.
Qual é a origem dessas distorções?
Para mim. Está claro que o Enade deixa à mostra o modo torto de ver o mundo
da maioria de nossos educadores. Eles são mergulhados nessa ideologia
antiempresa, antilucro, antimercado já nas faculdades de pedagogia. Depois
tratam de plantar essa visão na cabeça dos estudantes.
Essa é uma característica exclusiva da educação brasileira?
Não. Há um movimento atualmente na França destinado a revisar o ensino de
economia, que com o tempo foi se tomando distorcidamente anticapitalista. Está
sendo difícil na França restaurar o equilíbrio. No Brasil a situação é pior.
Aqui o discurso ideológico se mistura com a falta de conhecimento. O resultado é
desastroso. É o triunfo de uma concepção de mundo simplista e equivocada.
Gostaria de saber quantos desses pregadores leram Marx e Adam Smith no original.
Sim, porque tem muito professor por aí que se baseia em textos curtos e
apostilados para ensinar. A prova do MEC é um espelho dessa simplificação. O
conhecimento verdadeiro consiste em entender realidades complexas, e não em
contorná-las com resumos empobrecedores e enviesados.
Qual a consequência imediata disso?
A radicalização. O discurso ambientalista é um exemplo. Tomou-se uma sucessão
de bandeiras e pregações alarmantes com evidente desprezo pela lógica e pela
objetividade. A intervenção humana no meio ambiente é ensinada apenas como uma
“agressão”. Muitas vezes faltam inteligência e informação na utilização racional
dos recursos materiais, mas isso não significa que é impossível agir sobre a
natureza sem provocar tragédias ambientais. As crianças também aprendem na
escola a repudiar a Revolução Industrial inglesa, lembrada apenas pelas
condições de trabalho miseráveis. Mas a miséria já estava lá bem antes e foi
justamente com a Revolução Industrial que, pela primeira vez na história da
humanidade, a riqueza aumentou exponencialmente para todas as classes. As
economias cresceram, a renda per capita se multiplicou e os governos puderam
arrecadar mais e implantar programas sociais. Mas a ideologia em voga demoniiza
a Revolução Industrial. Isso não é educação de qualidade.
O Enade sofre dessa miopia em relação aos processos econômicos?
Sim. Em um alto grau. Uma questão sobre a crise financeira mundial de 2008 é
a prova disso. O texto da pergunta diz que a desregulação dos mercados
americanos e europeus levou à formação de uma bolha de empréstimos especulativos
e imobiliários que, ao estourar, desencadeou a crise mundial. Falso ou
verdadeiro? Para o MEC, é verdadeiro; para mim, falso. Para o MEC, o certo é pôr
toda a culpa no sistema. Ponto. Com essa ênfase ideológica, perdem-se dimensões
importantes para entender as razões da crise. A frouxa política monetária do
Fed, o banco central americano, teve muito a ver com a crise. Como teve seu
papel o incentivo do governo americano à concessão de crédito imobiliário mesmo
para quem, claramente, não poderia pagar. Essas ações de Washington foram
decisivas para que o mercado de casa própria inflasse em bases irrealistas. Mas
a lente ideológica manda apontar a desregulamentação dos mercados como a causa
da crise financeira. Isso não é produção de conhecimento, mas simplesmente a
divulgação de uma visão equivocada.
Por que as universidades brasileiras ainda são tão pouco inovadoras mesmo
se comparadas às de outros países emergentes?
Entre as instituições públicas de elite, dois fatores pesam contra a corrida
pela produtividade: elas têm verbas garantidas e o grosso do dinheiro é
distribuído sem considerar o relevo da produção científica de cada uma. O
princípio do igualitarismo pode até soar bacana, mas contém em seu DNA uma
armadilha perversa. Para que todos progridam no mesmo ritmo, o avanço de uns é
refreado em função do passo mais lento de outros. Cadê a meritocracia? Nos
Estados Unidos, as melhores universidades recebem mais recursos do que as de
menor desempenho – e isso não é por acaso. É mérito.
Na última década, o governo federal incentivou a abertura de universidades
com o intuito de fomentar certas regiões carentes de ensino de qualidade. Isso
ajuda?
É clara essa preocupação em espalhar universidades por todo o território
brasileiro, sob o discurso do desenvolvimento regional, mas, para mim, isso
significa desperdiçar dinheiro baixando o nível de todos. Sim, porque o dinheiro
é finito e a pulverização dele impede os melhores de chegar a um patamar ainda
mais alto.
Alguma coisa melhora no ensino superior brasileiro?
Temos centros de excelência já conectados com o mundo lá fora. Poderíamos ter
muito mais competição, porém. O economista Edward Glaeser faz uma colocação
muito interessante em um de seus livros quando diz que as universidades
americanas não resvalaram para o corporativismo justamente porque tinham de
competir urnas com as outras. No Brasil, nunca ouvi falar de uma turma de
cientistas de um determinado centro de pesquisas preocupada em correr para
superar o trabalho de outro grupo. Também não vejo ninguém consternado com o
fato de que sua instituição não está entre as melhores do mundo nos rankings. A
preocupação em gerar recursos adicionais, então, é algo mais raro ainda.
De quem e a culpa?
Vejo claros problemas de gestão e governança nas universidades públicas. Meu
pai foi sub-reitor da UFRJ e não se conformava com o aluguel baixíssimo que a
universidade recebia do Canecão. Ele achava que tinha de vender a casa de shows,
que assim entraria mais dinheiro no caixa. Mas as resistências internas a
qualquer iniciativa que mexa na velha maneira de fazer as coisas são tão grandes
que não se faz nada. A UFRJ tem instalações no Rio de Janeiro inteiro. Por que
não vender uma parte, concentrar tudo numa mesma área e otimizar recursos? Ai
entra uma série de interesses específicos. Tem até o grupo que diz: “Mas está
bom assim; a universidade é do lado da minha casa”.
O forte elo entre universidades e empresas ajuda a explicar o alto poder
inovador de muitos países. Como o Brasil está nessa área?
O Brasil vem melhorando, mas precisa romper de vez com uma ideologia antiga
segundo a qual a parceria com o mercado é vista como ameaça à autonomia
universitária. Bobagem. Todas as grandes instituições de ensino superior
americanas recebem dinheiro de empresas e não se privam com isso de sua
liberdade criativa. Ao contrário: são as maiores fornecedoras de prêmios Nobel
do planeta. Se o pesquisador ficar isolado em sua torre de marfim, dificilmente
produzirá conhecimento relevante. Mas percebo, inclusive pelas conversas dos
alunos em minha escola, que surge no Brasil uma geração de mente mais aberta e
empreendedora. Ela é essencial para a criação de um ecossistema favorável à
inovação e à produção de riqueza.
Quais as características desse ecossistema?
Empreendedores, inovadores, academia, empresas e financiadores trabalhando
juntos. São Paulo reúne condições para a criação disso, que se vê em ebulição em
lugares como Boston e Tel-Aviv. Estamos falando de criar no Brasil uma cultura
que tenha na produção de conhecimento seu maior valor.
Fonte: Revista Veja – 07/05/2014
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