As discriminações não nascem na natureza. Brotam nas
nossas cabeças e contaminam as nossas almas e atitudes
por Frei Betto
Em seu livro Doze Contos Peregrinos, o escritor colombiano Gabriel García
Márquez conta a história de um cachorro que todos os dias era encontrado num
cemitério de Barcelona junto ao túmulo de uma prostituta, Maria dos Prazeres.
Com certeza se inspirou nas histórias reais de Bobby, um terrier de Edimburgo,
Escócia, que durante 14 anos guardou o túmulo de seu dono. Ali ficou uma pequena
escultura dele e uma lápide na qual gravaram: “Que sua lealdade e devoção sejam
uma lição para todos nós”.
Em Tóquio ergueram também uma estátua, na estação Shibuya, em homenagem a
Hashiko, um cão da raça akita que todos os dias esperava seu dono retornar do
trabalho. O homem morreu em 1925, e durante anos o cachorro foi aguardá-lo na
mesma hora em que ele costumava regressar. Hashiko morreu em 1935 e a estação
hoje tem seu nome – fizeram até um filme sobre esse episódio (Sempre a seu Lado,
com Richard Gere).
Cães e seres humanos são mamíferos, exigem cuidados permanentes, em especial
na infância, na doença e na velhice. Manter vínculos de afeto é essencial à
felicidade da espécie humana. A declaração de independência dos Estados Unidos
teve a sabedoria de incluir o direito à felicidade. Pena que muitos
estadunidenses considerem hoje a felicidade uma questão de posse. Daí a
infelicidade geral da nação, traduzida no medo à liberdade, no espírito bélico,
na indiferença para com a preservação ambiental e as regiões empobrecidas do
mundo. É o chamado mito do macho, segundo o qual a natureza foi feita para ser
explorada, a guerra é intrínseca à espécie humana e a liberdade individual é
considerada acima do bem-estar da comunidade.
O darwinismo social é uma ideologia cujos hipotéticos fundamentos já foram
derrubados pela ciência, em especial a biologia e a antropologia. Essa ideologia
foi introduzida na cultura ocidental pelo filósofo inglês Herbert Spencer, que
no século 19 deslocou supostas leis da natureza indevidamente atribuídas a
Charles Darwin para o mundo dos negócios. John Rockefeller chegou ao ponto de
atribuir à riqueza um caráter religioso, ao afirmar que a acumulação de uma
grande fortuna “nada mais é que o resultado de uma lei da natureza e de uma lei
de Deus”.
O conceito de seleção natural de Darwin deriva de sua leitura de Thomas
Malthus, que em 1798, em ensaio sobre crescimento populacional, afirmava que se
crescer a uma velocidade maior que seu estoque de alimentos a população será
inevitavelmente reduzida pela fome. Spencer agarrou-se a essa ideia para
concluir que na sociedade os mais aptos progridem à custa dos menos aptos e,
portanto, a competição entre os seres humanos é positiva e natural.
E os que são cegos às verdadeiras causas da desigualdade social alegam que a
miséria decorre do excesso de pessoas no planeta. Ora, se somos 7 bilhões de
seres humanos no planeta e, segundo a FAO, produzimos alimentos para 12 bilhões
de bocas, como justificar a desnutrição de 1,3 bilhão de pessoas? Não há excesso
de bocas, mas falta de justiça.
Quanto mais são derrubadas barreiras de classe, mais os privilegiados e seus
ideólogos se empenham em buscar justificativas para provar que entre os humanos
uns são naturalmente mais aptos do que outros. Outrora os nobres eram
considerados espécie diferente, de sangue azul. Com a Revolução Industrial,
gente comum se tornou rica, superando-os em fortuna. Foi preciso então criar uma
nova ideologia: que o Estado e a Igreja cuidem dos pobres. E tão logo Estado e
Igreja passaram a dar atenção aos pobres – sem deixar de cuidar dos ricos, que o
digam o BNDES e a Cúria Romana –, os privilegiados puseram a boca no trombone,
demonizando as políticas sociais, acusando-as de gastos excessivos.
Preconceitos e discriminações não nascem na natureza. Brotam nas nossas
cabeças e contaminam as nossas almas e atitudes. Vamos lutar contra eles.
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