Roda Viva
Chico Buarque
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá
Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá
A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a viola pra lá
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a viola pra lá
O samba, a viola, a roseira
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a saudade pra lá
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a saudade pra lá
A letra trata do sentimento de um impasse: como ser ativo, participar da construção da sua vida e ao mesmo tempo ter que carregar as responsabilidades cotidianas nas costas? A roda, na qual o título já sugere, seria a rotina, sempre circular, repetitiva, às vezes até tautológica. E a roda é viva, isto é, onipresente.
Os primeiros versos são “Tem dias que a gente se sente / Como quem partiu ou morrer / A gente estancou de repente / Ou foi o mundo então que cresceu” já representam o sentimento de impotência, como se houvesse vezes em que você questiona como está sua postura diante do mundo: você partiu, morreu, estancou? As coisas acontecem e a você aliena-se, fica aquém disto tudo, como se o mundo crescesse e você não acompanhasse.
“A gente quer ter iniciativa / No nosso destino mandar / Mas eis que chega roda vida / E carrega o destino pra lá”. Estes versos mostram que apesar daquela impotência, você não desiste de interferir no seu destino, isto é, ter iniciativa de conduzir sua vida. Porém, a roda viva chega e decide o destino por você. Em vez de lutar pelo que quer, a roda viva impede. Todo aquele desejo de participação se esvai.
O refrão, que se repete no final de cada estrofe justamente para realçar a idéia de repetição, é composto pelos versos “Roda mundo, roda-gigante / Roda-moinho, roda peão / O tempo rodou num instante / Nas voltas do meu coração”. Além da beleza dos versos, que reiteram a palavra “roda”, a própria melodia da música exala a sensação rotatória. O tempo passa rapidamente, num instante, rodando em torno do seu coração, que bate para sobreviver. Você se mantém vivo e as coisas vão acontecendo, tão naturais quanto o mundo rodando, a roda-gigante, o moinho e o peão.
A seguinte estrofe, que vai de “A gente vai contra a corrente / Até não poder resistir…” até “… Mas eis que chega a roda viva / E carrega a roseira pra lá” mostra que mesmo com seus pequenos protestos, como alguém remando contra a corrente, não é suficiente para abalar a ordem, por isso a pessoa percebe o quanto deixou de cumprir. No fim das contas, na volta no barco, reafirma-se o que se havia questionado, indo a favor da corrente. Todas as roseiras cultivadas por nós, aquilo que cuidamos, também é levado pela roda viva, antes que floresça. A roda nos tira a capacidade de viver, sendo mais viva do que nós mesmos.
Mais uma vez entra-se no refrão e depois vêm os versos “A roda da saia, mulata / Não quer mais rodar, não senhor / Não posso fazer serenata / A roda de samba acabou” são versos muito interessantes. Saias que rodam são típicas do samba, o próprio nome da vestimenta é ‘saia rodada’. Não só acabou a participação política, acabou também o envolvimento com outras pessoas, a conversa calorosa, acabou o samba.
“A gente toma a iniciativa / Viola na rua, a cantar / Mas eis que chega a roda viva / E carrega a viola pra lá” são versos que representam a fraqueza do protesto. O desejo artístico também foi engolido pela força maior da roda viva. Imagine quantos movimentos ocorreriam se a roda não interferisse.
Na última estrofe temos “O samba, a viola, a roseira / Um dia a fogueira queimou / Foi tudo ilusão passageira / Que a brisa primeira levou” é um apanhado de tudo que foi levantado até então pela canção. A vontade de participar, de se voltar contra a ordem supressora, de ter liberdade etc, são oprimidos. Surge a imagem de que são apenas uma ilusão passageira, um artefato que a brisa facilmente leva.
Os últimos versos são “No peito a saudade cativa / Faz força pro tempo parar / Mas eis que chega a roda viva / E carrega a saudade pra lá”; finalizam muito bem este sentimento. Quem conhece a frase “Pare o mundo que eu quero descer”? Então, parece muito com isso.
Primeiro se sai de uma ditadura do Estado Novo, protagonizada por Getúlio Vargas. Depois, se tem uma experiência democrática que até trouxe uma esperança ao país, como JK e a bossa nova. Logo após, a experiência é frustrada pelo golpe militar de 1964. O sentimento confuso, estonteante, fora da razão, gerado pela idéia absurda de suprimir as massas em prol de um grupo de militares no poder, gera uma imagem abstrata dos rumos do Brasil.
A roda vai girando. Remete a uma bagunça. O desejo de mudar é ignorado. A capacidade de se manifestar é minimizada. Chico remete a objetos infantis, como o peão; algo próximo às cantigas de roda, tão ingênuas. Este lado aparentemente inocente contrasta com a ditadura, prova do desnorteio ao qual a população estava submetida. Até a saudade é reduzida a uma bobagem qualquer, assim como a viola e a roseira, ambos queimados pela fogueira. A ordem escondia, na realidade, uma desordem. A constante roda viva ocultava a imobilidade dos cidadãos.
Para finalizar, quero destacar que os últimos segundos da música são muito bons. O refrão vai se repetindo, acelerando gradativamente, reforçando a idéia de uma confusão, de uma roda que vai carregando tudo que se encontra à frente, não dá chance para respirar, uma bola de neve que vai crescendo, tomando proporções maiores que os indivíduos.
Espero que tenham gostado de interpretação e faço questão de lembrar que é só uma leitura da música. Recomendo que procurem outras visões pela Internet para complementar a mensagem que a canção quer passar. Até mais!
http://letrasdespidas.wordpress.com/2007/11/02/chico-buarque-roda-viva/