sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Conto - Missa do Galo

Missa do galo


Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.
A casa em que eu estava hospedado era do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranqüilo, naquela casa assobrada da Rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Ás dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.
Boa Conceição! Chamavam-lhe “a santa”, e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Todo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era meridiano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar, pode ser até que não soubesse amar.
Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver a “missa do galo na Corte”. A família recolheu-se a hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta: uma estava com o escrivão, eu levaria a outra, a terceira ficava em casa.
– Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? – perguntou a mãe de Conceição.
– Leio, D. Inácia.
Tinha comigo um romance, Os Três Mosqueteiros, velha tradução, creio, do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez com o cavalo negro de D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. eram uns passos na sala de visitas à de jantar; lego depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição.
        Ainda não foi? Perguntou ela.
        Não fui; parece que ainda não é meia-noite.
        Que paciência.
Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas de alcova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:
– Não! Qual! Acordei por acordar.
Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; parecia ainda não ter pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma coisa em outro espírito, depressa a botei para fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa.
        Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.
            Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu.
    Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo.
            Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.
    Justamente: é muito bonito.
    Gosta de romances?
    Gosto.
    Já leu A Moreninha?
    Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.
        Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido?
Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça recostada reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar o queixo e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços de cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.
“Talvez esteja aborrecida”, pensei eu.
E logo alto:
        D. Conceição, creio que vão sendo as horas, e eu…
            Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?
            Já tenho feito isso.
            Eu não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.
            Que velha o quê, D. Conceição!
Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costumes tinha os gestos demorados e as atitudes tranqüilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, como o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me parecido tão distinta, como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou consertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas idéias; tornou ao espanto de me ver acordado; e repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não queria perdê-la.
– É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.
            Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. S. João nem digo, nem Santo Antônio…
Pouco a pouco, tinha se inclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe a metade dos braços, muita claros, e menos magros do que se podiam se supor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis que, apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras coisas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, variando deles ou tornando aos primeiros e rindo e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, reprimia-me:
– Mais baixo! Mamãe pode acordar!
E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido; cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho:
– Mamãe está longe, mas tem um sono leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono.
        Eu também sou assim.
– O quê? – perguntou ela, inclinando o corpo para ouvir melhor.
Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti-lhe a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves.
– Há ocasiões em que sou como mamãe; acordando custa-me dormir outra vez, rolo na cama à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me e nada.
– Foi o que lhe aconteceu hoje.
– Não, não, atalhou ela.
Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora da missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me:
– Mais baixo, mais baixo…
Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono ou fadiga, como se ela houvesse os fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, o braço cruzado; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam na parede.
– Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros.
Chiquinho era o marido. Os quadros falavam dos principais negócios do homem. Um representava “Cleópatra”; não me recordo do assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios.
– São bonitos, disse eu.
– Bonitos são; mas estão manchados. E depois, francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais apropriadas para sala de rapaz ou de barbeiro.
– De barbeiro? A senhora nunca foi à casa de barbeiro.
– Mas imagino os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e de namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a visita deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita coisa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório.
A idéia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser mais tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e me fazia esquecer a missa e a igreja. Falava de suas devoções de menina e moça. Em seguida referia a umas anedotas de baile, uns casos de passeios, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando se cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos.
Já agora não traçava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os olhos grandes compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes.
– Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo.
Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono magnético ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar com a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a idéia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo.
Chegamos a ficar por algum tempo,– não posso dizer quanto– inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela do lado de fora e uma voz que bradava: “Missa do galo! Missa do galo!”.
– Aí está o companheiro, disse ela, levantando-se: tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo, e ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.
– Já são horas? Perguntei.
– Naturalmente.
– Missa do galo! Repetiram de fora, batendo.
– Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus, até amanhã.
E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor adentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa a figura de Conceição interpôs-se entre mim e o pader; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja, sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.


Machado de Assis

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