quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Te Contei, não ? - Enterrraram o Chico Buarque ?

Demorei para ouvir o novo CD de Chico Buarque de Holanda, intitulado Chico (Biscoito Fino). E eu estava longe da redação quando o produto foi lançado. Isso me impediu de participar das discussões em torno do novo trabalho, o primeiro em cinco anos, daquele que é considerado um dos grandes compositores e astros da MPB – esta sigla que mais parecia um partido do que um movimento musical... Mas, espere aí, onde estão os críticos, os debates, a atenção devida a um artista da importância de Chico?
É impressionante como os brasileiros lincham os totens que veneravam havia pouco. E o que dizer do totem maior? Não há pior castigo que a indiferença, sobretudo para um artista tão incensado como foi Chico ao longo de sua carreira, iniciada em 1964. As suas novas canções não tocam em lugar nenhum, nem em rádio às antigas, nem em canais de internet. Televisão, nada. Há pilhas de discos sobrando no canto das livrarias com os álbuns dele. O artista de 67 anos também não está fazendo shows, apesar de ele ainda possuir um grande números de admiradores, até mesmo entre pessoas de novas gerações. Independentemente do que se pensa sobre a qualidade do seu trabalho, Chico mereceria mais análises, mais diálogos, merecia talvez ser até mesmo mais espinafrado. Mas nada... o nada não é justo para um artista do calibre dele.
Quem sabe eu esteja a errar mais uma vez, como tantas outras, mas não li nenhuma resenha digna de Chico Buarque, o disco. A impressão é de que não existe mais capacidade intelectual para lidar com um simples disco de artista brasileiro. Não quero soar presunçoso. Ao contrário, talvez eu mesmo não consiga mais entender o que se passa – e me falte capacidade mental de abordar mais um disco de sambista. Assim, sentindo-me um miserável crítico, venho a público tentar escrever via internet algo que possa servir para algum eco. Que possa o eco... É óbvio que o eco também é impotente: ele ricocheteia nas pedras duras das almas. O eco não passa de um estertor idealista que morre ao atingir um penhasco mais distante.
Devo dizer que me sinto culpado pelo infortúnio crítico que a obra de Chico amarga hoje em dia. Nos anos 80, eu me encarreguei de tentar destruir o mito inquestionável. Critiquei a pretensão combativa do compositor de protesto, decretei o seu fim precoce. As críticas que eu escrevei tiveram grande repercussão, inclusive entre os ouvintes. O publicitário Carlito Maia (1924-2002) declarou que meus libelos eram iluminadores. Outros críticos me seguiram – foram no meu pio, como diríamos hoje nesta era de gorjeios pelo twitter. A razão do impacto de críticas como a minha e de outros colegas é que os brasileiros nos livrávamos dos tempos da censura e da ditadura sangrenta. Minha geração quis se libertar também das canções daquela época, queríamos ver os militares, a tortura e o Chico Buarque e seus caros amigos pelas costas. Fizemos tabula rasa da arte de protesto. Desejamos cravar os dentes na jugular do pai que se debatia desesperadamente para nos salvar, e nos resgatar a liberdade. Queríamos abolir o cordão de chavões da música popular brasileira. Queríamos o pós-punk, qualquer elixir contra o lirismo para nós então torpe de Chico, Caetano e Milton Nascimento.
O professor José Miguel Wisnik – um insistente fã dos grandes ídolos emepebistas - definiu as críticas que publiquei de cenas de transgressão explícitas, niilismo exibicionista, ou qualquer coisa parecida. Foi um erro? Não. Foi um momento necessário. E a maior vítima fui eu próprio. O então círculo de amigos influentes de Chico Buarque, ainda forte na imprensa, voltou-se contra mim, pediu meu escalpo aos meus chefes. Eu achei graça, porque sabia que quem ferro fere seria ferido, principalmente naquele momento de lenta despressurização do autoritarismo no Brasil. Assim foi: fui questionado e espinafrado em dobro. Pulei de emprego a emprego, carregando o estigma de “polêmico”. E foi só o começo da carreira. Não se inicia assim uma carreira sem carregar cicatrizes. Fazer crítica cultural no Brasil é apanhar em infinitos corredores poloneses dos jogos de interesse.  

Uma das muitas e variadas consequências de minha sanha crítica – da qual não me arrependo, porque era um momento de questionar o inquestionável, os então vultos recentes de uma nação abalada – foi angariar o ódio pessoal de Chico Buarque de Holanda. Ele passou a ler meus textos com atenção total. Um dia, cometi um deslize ortográfico – escrevi a palavra “displicente” com um esse a mais para qualificar o seu canto, e não demorou para chegar à redação do jornal onde eu trabalhava o recado de Chico: “Manda dizer para ele que displicente não se escreve com s e c”. Ri mais uma vez, solando no coro de gargalhadas que as redações daqueles tempos faziam. Chico se ofendeu porque cuspi no seu pedestal, e o fiz com a empáfia pedestre dos que cometem erros de português. E porque escrevi que ele era um péssimo intérprete de suas músicas. Ele desafinava, era fanhoso e chato de ouvir, tão ruim ao cantar quanto um critiquinho novato ao escrever suas porcarias de jornal. Eu pensava que suas músicas soavam melhor na voz de grandes cantores.
Continuo a achar que ele não deveria cantar, porque sua autoridade acaba intimidando possíveis intérpretes. Porque Chico Buarque é um mito que petrifica os artistas que estão por perto dele – e que, até minha geração surgir, petrificava o juízo dos jornalistas. Foi também por causa dele que a era dos cantores acabou, para ser substituída pela dos cantautores, dos compositores que defendiam suas criações. No caso de Chico, defendia muito mal. Sempre afirmei e torno a afirmar que gosto de boa parte do cancioneiro de Chico. Isso porque consigo separar a canção da voz de seu autor. Separo a obra do sujeito? Nem tanto: apenas me considero capaz de distinguir a boa composição do mau cantor.. O público feminino dos anos 60 e 70, que consagrou o músico, não diferenciava o homem de sua voz, a obra de seu autor, os olhos azuis de suas desafinações. Elas sexualizaram a recepção daqueles sambas antigos. Para apreciar a arte de Chico Buarque de forma serena e distante, é preciso ter em mente essa navalha que serve para separar na arte dos sons o cérebro das cordas vocais, a composição de sua realização.
Feitas essas ressalvas, preciso fazer uma confissão grave: eu gostei da nova coleção de dez canções do disco de Chico. É uma mostra poderosa da maturidade do artista. A toada sertaneja “Querido diário” faz a defesa do amor como “obscura trama” e afirma a possibilidade de “amar uma mulher sem orifício”, uma estátua de santa. “Rubato”, parceria com o baixista Jorge Helder, uma marcha-rancho sobre o plágio, refere-se à marcha carnavalesca “Aurora” e, com uma harmonia indecisa, ironiza o nome da musa, trocando “Aurora” por “Teodora” no final – a mesma brincadeira que faz no samba “Barafunda”, que ficaria perfeito com um grupo vocal como Os Cariocas. O fox-canção “Essa pequena” lembra os foxes de Vinicius de Moraes que a dupla Irmãos Tapajós lançou nos anos 30. A música conta as agruras do relacionamento amoroso entre um homem maduro e uma jovem, acasalamento de gerações diferentes, os dois vivendo em mundos tão diferentes que um não entende o outro. Em “Tipo um baião”, Chico altera as cadências de canção lenta para baião, como uma peça clássica, para contar a história de um amor que “ora brinca de inflar/ ora esmaga”. Imagino como Gal em dueto com Zé Renato cantariam a canção “Se eu soubesse”, com suas harmonias sutis e tessitura traiçoeira nos saltos de intervalos. E João Gilberto, de que jeito cantaria a lenta “Sem você 2”, uma homenagem a seu mestre Tom Jobim – autor de “Sem você”. E se João Bosco cantasse a cena de escravidão “Sinhá”, que escreveu em parceria com os versos de Chico, um afro-samba que remete aos de Baden Powell e Vinicius? Minha faixa favorita é um samba em parceria com Ivan Lins, “Sou eu”, que Chico canta com Wilson das Neves. Os versos giram em torno de um assunto clássico e machista na música brasileira: a dançarina que tem dono. Outro momento alto do disco pode ser ouvido na canção “Nina”, uma valsa de esquina à maneira de Francisco Mignone: repleta de meios-tons e meias-palavras. Pensei em Alcione arrasando em uma versão dilacerante.
É um disco que surge clássico. Os arranjos singelos do maestro Luiz Carlos Ramos; os versos meio difusos de um homem resignado porém levemente revoltado com o envelhecimento, mas ainda capaz de admirar a beleza, lá do camarote da decadência; as melodias diáfanas, ensopadas no cromatismo tão típico de suas músicas a partir dos anos 70; os temas que batem papo com suas velhas canções; as referências à tradição da canção brasileira, tudo isso tem a pungência do estilo tardio de um poeta que canta mal, mas insiste em cantar - apesar da indiferença, apesar de mim que jamais fui indiferente a suas desafinações, mas também proezas.
Não quero que esta crônica pareça um ato de contrição. Não anseio pelo perdão de Chico e seu círculo de fãs. Fui o primeiro a enterrá-lo, e o último a exumá-lo, infelizmente muito tarde. Sou o pior crítico para abordar o disco, sei disso. Não tenho autoridade moral para tanto. Só me limitei a deitar impressões de ouvinte no monitor, que sei que serão lidas por poucos. Com isso, desejo apenas ser verdadeiro e fazer jus à beleza quando ela relampeja, algo cada vez mais raro na música brasileira. O novo (e temo que último) disco de Chico Buarque me fez perceber um fenômeno curioso: o da aparição de canções bonitas que não logram se fazer ouvir ou se fazer cantar por quase ninguém. Quando meio cultural de um país vira as costas para seus talentos maiores, algo de grave está em curso. Vivemos provavelmente uma extrema e inédita miséria cultural. Combatê-la não é tarefa de nenhum governo. É de todos, a partir da vergonha que cada um de nós sente por ter perdido a capacidade de se emocionar com a arte superior. 

Luis Antônio - Revista Época

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