Walmor Chagas não quis ser surpreendido entre o primeiro e o segundo ato. Tomou nas mãos a agenda da morte e a fez acontecer quando quis, como quis. O grande ator foi encontrado morto no hotel-fazenda de sua propriedade, em Guaratinguetá (SP), onde morou nos últimos anos, na sexta-feira, dia 18. Tinha 82 anos e, até onde se sabe, embora combalido pela idade e pelo diabetes, não enfrentava grave crise de saúde.
Também não enfrentava, até onde os mais próximos puderam testemunhar, crise moral insuportável. “Só existe um problema filosófico realmente sério: o problema do suicídio”, escreveu Camus.
O suicídio de Walmor foi do tipo que não remete a uma circunstância, um azar da vida, um desespero ou uma crise intransponível, mas à questão do suicídio em si mesma.
O ator foi encontrado sentado numa cadeira, o revólver com que disparara um tiro na cabeça no colo, entre as duas mãos. O fato de ter escolhido morrer sentado é eloquente. Não se prostrou, impotente, diante da inimiga. Sentado, proclamava que a encarou em seus próprios termos, no lugar e na posição que bem entendeu. A morte que se sujeitasse às condições que, dono do próprio nariz, estabeleceu.
Num outro sinal de liberdade e altivez, sempre segundo o que se pôde saber, em assunto tão íntimo, também não deixou bilhete de explicação para seu gesto. Não entendeu dever explicações a ninguém. São assim os suicidas cabais, que não têm nem delicadezas nem acusações a distribuir, no fundo uns últimos fiapos de apego à vida. O deles é um suicídio que se basta.
Walmor Chagas foi casado com Cacilda Becker, o grande nome feminino do teatro brasileiro à sua época. Cacilda morreu em 1969, aos 48 anos, entre o primeiro e o segundo ato da peça Esperando Godot, de Samuel Beckett. Ou melhor: teve um derrame, e foi morrer cinco semanas depois, mas não saiu do coma.
Foi como se morresse entre o primeiro e o segundo ato. Esperando Godot, da época do existencialismo e do teatro do absurdo, transcorre sem outro artifício senão o diálogo aparentemente sem rumo entre dois vagabundos, Estragon e Vladimir, enquanto esperam por um tal Godot, que não se sabe quem é nem se saberá, até o fim da peça.
Cacilda fazia Estragon, e quem fazia Vladimir era Walmor. Não podia haver morte mais desorganizada. Cacilda foi recolhida ao hospital nos trajes andrajosos de Estragon. Imagina-se que Walmor deve ter demorado para se livrar dos andrajos de Vladimir. Nem é preciso imaginar, vai de si a situação de perplexidade, de alvoroço, de atropelo, de improviso.
Estragon foi arrancado de Vladimir de uma maneira que não estava no script, e Cacilda foi arrancada de Walmor de maneira que menos ainda estava no script. O teatro do absurdo saltava do palco para a vida real. O público ficou esperando por um segundo ato que, como Godot, não veio.
É tentador supor que o tipo de morte escolhido por Walmor decorre do tipo de morte que vitimou Cacilda. Sobre Cacilda a morte desabou em sua versão de suprema traiçoeira das gentes. Esperava-a na coxia, e atacou-a de emboscada. Nem o segundo ato a deixou encenar, quanto mais o muito que lhe restava de vida e de teatro.
Walmor, naquela sexta-feira em Guaratinguetá, tinha decidido que, em vez de esperá-la atacar, tomaria a iniciativa. Tomou café da manhã como de hábito, banhou-se, depois deixou-se ficar ao sol. No almoço comeu “um macarrãozinho bem fininho, com molho de shoyu”, segundo contou um amigo ao programa Fantástico.
Horas depois, sozinho em casa, sentou-se em uma cadeira, a arma na mão. Adivinha-se que o plano já lhe girasse na cabeça haveria dias, talvez meses. Foi executado com método, sem alvoroço nem improviso.
Amigos informaram que a decadência física começava a limitar os movimentos do ator e que, com a vista atacada por complicações do diabetes, ele enxergava cada vez pior. São fatores que podem ter ajudado na decisão; ele teria se antecipado ao aprofundamento dos estragos. Mas, sobretudo, teria concluído que o estoque de vida que lhe coubera, a vida em seus múltiplos aspectos, não apenas na questão da saúde, se esgotara.
Cacilda, atraiçoada, deixou tudo pela metade: a peça que representava, a carreira, a vida. Ficou intocado o enorme estoque que ainda tinha para gastar, e, na história das artes cênicas do Brasil, entrou com uma página truncada. Walmor não foi surpreendido entre o primeiro e o segundo ato porque não havia segundo ato a representar. A peça já tinha terminado. Ele próprio assim determinara, ao tomar nas mãos a autoria do desfecho.
Roberto Pompeu de Toledo - Revista Veja
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