Há apenas as sombras negras dos homens reunidos à mesa. Surgem as vozes, a discussão intensifica-se e, quando o 16º presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln, ergue lentamente o braço direito, a câmera aproxima-se. Encontra-o imóvel. Suspenso à meia-luz. Pá! A pancada na mesa silencia a sala da Casa Branca, os assessores do presidente, o espectador – e o filme torna-se por completo Daniel Day-Lewis, o ator que interpreta de modo inesquecível Lincoln, no filme homônimo do diretor Steven Spielberg, cuja estreia ocorreu nesta sexta-feira (25). “Agora! Agora!”, diz Lincoln, em alto timbre, apontando os dedos para os assessores, tornando-os, com esse simples gesto, sócios na vitória ou na derrota da emenda número 13 à Constituição dos Estados Unidos, que, em 1865, viria a proibir a escravidão no país. O filme de Spielberg acompanha as semanas mais críticas da história dos Estados Unidos: o corajoso avanço de Lincoln para encerrar a escravidão que dividira o país e, o que parecia impossível para seus pares, dar fim à guerra que se iniciara precisamente pela ascensão de abolicionistas como Lincoln.
A guerra civil já durava quatro anos, e Lincoln, recém-reeleito para o segundo mandato pelo Partido Republicano, exigia que seus aliados dessem tudo para que a emenda fosse aprovada pela Câmara dos Deputados. Era o que ele classificava de “cura” para o país. “Agora! Agora!” E o peso da história cai sobre o espectador, ao sabor do braço e da oratória de Lincoln.
Menos de um ano antes, Lincoln havia apresentado a mesma emenda ao Congresso. Ela passara no Senado, mas fora derrubada na Câmara. Por que Lincoln resolvera insistir? Por que justo naquele momento, contra todas as expectativas e todos os conselhos? Essas perguntas acompanham, como um iceberg que apenas se insinua, a jornada de Spielberg pela alma de Lincoln naqueles dias tormentosos. As possibilidades de resposta são múltiplas, e algumas aparecem na narrativa de Spielberg, mas a principal delas, a que precede as demais, é esta: porque Lincoln resolvera liderar o país. É da interação entre as complexidades do mundo em que vivia Lincoln, e que dele exigiu o coração e, em seguida, a vida, que emerge a irresistível força do filme de Spielberg. E que, no momento em que vive o Brasil, pouco mais de duas décadas após o fim da ditadura e da volta do pleno exercício da política, um país ainda assombrado por mensalões, conduz à pergunta: nós precisamos de um Lincoln? Ou, reformulando, precisamos de um líder político que tenha a ambição de deixar um legado maior do que o próprio poder?
Lincoln, mesmo sendo um político visionário, recorreu a expedientes sujos. Teve seu pequeno mensalão. Afinal, como convencer os deputados que haviam votado contra a mesma emenda menos de um ano antes? Lincoln sugere, com palavras ambíguas, que seus operadores políticos fossem às compras. O presidente queria reapresentar a emenda em janeiro daquele ano, antes que se encerrassem os mandatos dos antigos deputados. “Temos 64 deputados democratas que não se reelegeram e que não precisam se preocupar com votos a partir de março”, diz Lincoln a William Seward, seu secretário de Estado, um homem de princípios inquebrantáveis. Seward reage: “Mas não podemos com-prar o voto da emenda! É algo muito importante”. Lincoln, àquela altura, conhecia bem o Congresso do qual dependia. Descobrira, no recém-encerrado primeiro mandato, que seus encantos retóricos eram para lá de insuficientes para persuadir parlamentares mais atentos ao bolso do que ao debate. Discursos e boas ideias ajudam, mas, mesmo nos tempos de Lincoln, não faziam maioria no Congresso – sobretudo uma maioria constitucional de dois terços.
A derrota da emenda meses antes ensinara a Lincoln que, para liquidar com a escravidão no país, era preciso recorrer, entre outras muitas ações políticas, a expedientes sujos. “Não falei em comprar nada”, diz Lincoln a seu confidente, Seward. “Precisamos de 20 votos. É o começo do meu novo governo, muitos cargos para preencher…” Na magnífica interpretação de Day-Lewis, Lincoln anuncia essas palavras com uma doce e paternal tranquilidade, limpando-as do sujo significado pela mera inflexão de voz. Queria aliviar a consciência moral de Seward e talvez açular dúvidas nela. Seward, mesmo contrariado, fez como quase todos que se viam diante dos feitiços de Lincoln: pôs-se a cumprir o que o presidente queria.
Estava posto ali o limite moral suportado por Lincoln, a sujeira aceitável dos meios considerados necessários para obter o fim perseguido por ele. Para homens como Lincoln, era uma mácula pesada. Por mais indispensável que ele a julgasse, contudo, Lincoln não se eximia da responsabilidade da decisão que tomara. Lincoln sabia o que estava fazendo – e o preço que sua biografia pagaria por isso. Eram decisões tomadas, no entanto, em tempos difíceis – tempos de guerra, hostis a ambiguidades morais. Os Estados Unidos sangravam vidas e dinheiro com a guerra civil entre os Estados do norte, abolicionistas e comandados por Lincoln, e os Estados do sul, escravocratas, que haviam se declarado independentes da União quatro anos antes. Fora uma secessão precipitada pela eleição de Lincoln à Presidência, em 1860. Lincoln, a exemplo de seus colegas no Partido Republicano, ascendera pela defesa apaixonada do fim da escravidão. Os Estados do sul percebiam nele, com razão, uma ameaça à cultura escravocrata do país. A secessão era previsível; a guerra, inevitável.
Lincoln foi reeleito, em larga medida, porque o norte, após duras derrotas nos primeiros anos da guerra, virara o jogo. Quando Lincoln se preparava para iniciar seu segundo mandato, a vitória definitiva do norte estava próxima. Lincoln já entrara para a história, já tinha seu legado. Era uma figura “semimítica”, como frisara Seward a ele, na esperança de demovê-lo, pela vaidade, da ideia de tentar uma vez mais aprovar a emenda antiescravidão no Congresso. O cálculo político de Seward e da maioria do gabinete de Lincoln era simples: a rendição do sul viria em pouco tempo, e decretar ilegal a escravidão antes disso tornaria impossível a paz – os perdedores jamais aceitariam abandonar a es-cravidão, o que prolongaria a guerra até que não sobrasse país a ser governado.
Lincoln não só enxergava mais longe, e com mais nitidez, como era um estrategista brilhante. Em termos políticos, ele compreendia que, se a paz fosse alcançada antes do fim da escravidão, os Estados do sul conseguiriam bloquear no Congresso qualquer legislação abolicionista. Em termos históricos, ele compreendia muito mais: a única maneira de salvar os Estados Unidos da fratura que clamara 620 mil almas era salvar a ideia que o país fazia de si mesmo. Era essa ideia que estava em risco na guerra. A ideia de uma nação de homens livres e iguais perante a lei. Uma ideia poderosa, que fundara os Estados Unidos, mas inconciliável com a abjeta existência da escravidão – escravidão tolerada pela Constituição e ratificada pela Suprema Corte do país. Seward subestimara a vaidade – e a ambição – de Lincoln. Ele não queria ser apenas uma “figura semimítica”. Ele queria ser um mito. E, para isso, precisava refundar o país. “Essa emenda”, disse Lincoln, “é uma cura para todos os males. Resolve tudo.”
Um pedaço de lei com tamanho peso, aliado às complexidades anexadas a ele, diminui a mácula dos métodos empregados por Lincoln para aprová-la? Trata-se de um caso difícil – de um caso extremo. Na metáfora do próprio Lincoln: “Nós somos como baleeiros que estão há muito numa caçada: conseguimos, finalmente, fincar o arpão no monstro, e agora precisamos manobrar com cuidado, caso contrário um brusco movimento de seu rabo vai nos lançar à eternidade”. Demagogos dariam respostas fáceis, especialmente olhando pelo retrovisor da história, sem conhecer de perto a baleia. As principais escolas éticas apresentariam respostas distintas. Pragmáticos e realistas tenderiam a aprovar as atitudes de Lincoln. (Não por acaso, os principais pragmáticos são do mundo anglo-saxão.) Kantianos e idealistas de diferentes espécies poderiam reprovar as mesmas atitudes. Uma das virtudes de Spielberg é não julgar as decisões de Lincoln nem reduzir as nuances dramáticas que elas revelam. A câmera de Spielberg e o roteiro de Tony Kushner – apesar de alguns incômodos momentos de excessiva grandiloquência e desnecessária sentimentalidade – exploram detidamente os conflitos, internos e externos, que fizeram de Lincoln um dos mais fascinantes líderes políticos da história.
São em momentos difíceis, como o enfrentado por Lincoln, que emerge o caráter do líder político. E são nesses momentos que, ao contrário do que se deu com Lincoln, os liderados costumam decepcionar-se. Alguns descobrem que o político em que confiaram não tem a astúcia necessária para enfrentar os problemas que deveriam resolver. Outros, que ele se preocupa tão somente com a manutenção do próprio poder – ou, pior, com a prosperidade do bolso. Há, ainda, os tipos que logo revelam reunir uma triste combinação de todos esses defeitos: são os políticos ordinários, que de líderes nada têm. Barack Oba-ma, que idolatra Lincoln, decepcionou muitos americanos, os quais julgaram que ele não apresentou tenacidade e inteligência suficientes para dobrar um Congresso hostil. A maioria deles, todavia, ainda deposita em Obama a esperança de que ele seja capaz de liderar o país num momento de crise social, política e econômica. É no segundo mandato, que ora se inicia, que Obama mostrará o tamanho que terá na história dos Estados Unidos. A Europa, que agoniza numa duradoura crise econômica, não encontrou seu Lincoln.
No Brasil, como no resto da América Latina, abundam líderes que lideram para si mesmos. Ou que lideram seu povo em direção à ruína, guiando-se pela bússola torta da ideologia. Raros são os líderes que tentaram liderar pelas ideias que davam sentido ao país – que extraíram o melhor dele e deram substância política a isso. Sobram, em nossa história política, figuras como o venezuelano Hugo Chávez e a argentina Cristina Kirchner. No Brasil, a experiência dos últimos anos não é tão traumática. Mas nem por isso deixamos de permanecer órfãos de líderes que combinem virtudes como integridade, inteligência e astúcia. E que usem essas virtudes para articular uma visão de país que nos faça melhores. Na escala moral de homens como Lula e José Dirceu, nossos líderes políticos mais recentes, que nada sabiam e nada fizeram, as piores ações de Lincoln junto ao Congresso seriam uma manhã de trabalho. É difícil encontrar no país, hoje, políticos que se destaquem pela exuberância intelectual ou, sobretudo, pela honestidade de princípios. Vide os candidatos à presidência da Câmara e do Senado.
Lincoln ilumina o melhor – e o pior – que a política pode ser. Apesar das óbvias diferenças de circunstâncias, da distância de tempo e espaço, é o tipo de evento cultural que pode, quiçá, inspirar novas gerações de políticos (alguém ainda tem esperança para os antigos?) a enxergar decência e utilidade no exercício da política – algo mais sofisticado do que a mera administração eficiente do dinheiro dos impostos, algo mais elevado do que a ambição do poder pelo poder ou do poder pelo dinheiro. A democracia brasileira precisa desesperadamente de líderes assim. Nossa baleia continua à solta.
Revista Época
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