quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Te Contei, não ? Machado de Assis, o velho sentimental

CONSAGRADO Retrato de Machado de Assis por Henrique Bernardelli, de 1905. Por trás do vulto literário, o homem solitário sentia a falta de Carolina e dos amigos (Foto: Quadro de Henrique Bernardelli (1905)/Acervo ABL)No início do século XX, o escritor Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) cumpria a função de papa das letras brasileiras. Assim o definia um amigo, o diplomata Joaquim Nabuco. Com Nabuco e outras personalidades de seu tempo, Machado não se comportava apenas como guru, chefe da religião literária e presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL). Ele também trocava cartas num tom íntimo e intenso. Esse seu lado desconhecido agora começa a ganhar contornos mais nítidos, com a aparição de documentos inéditos e a reunião em ordem cronológica das cartas que Machado escreveu e recebeu. O recém-lançado volume da Correspondência de Machado de Assis, tomo IV – 1901-1904 (Academia Brasileira de Letras, 492 páginas, R$ 60), coordenado pelo escritor e acadêmico Sergio Paulo Rouanet com as pesquisadoras Irene Moutinho e Sílvia Eleutério, revela a face humana, emotiva e generosa de um escritor considerado por seus contemporâneos como cínico, niilista e avesso à vida social – máscara que ele mesmo ajudou a criar e se mantém até hoje.
Essa imagem resiste porque Machado destilava ironia, meias palavras e sobretudo descrença em seus romances. O retrato de Henrique Bernardelli, de 1905, hoje exposto na ABL, para o qual Machado posou em fotografia, acentua essa aura de austeridade. Mas o homem Machado era diferente. Nabuco (1849-1910) escreveu a Machado de Londres em 8 de outubro de 1904 e afirmou que existiram duas faces no amigo: “Você pode cultivar a vesícula do fel para a sua filosofia social, em seus romances, mas suas cartas o traem. Você não é somente um homem feliz, vive na beatitude como convém a um Papa. Agora não vá dizer que o ofendi e o acusei de hipocrisia, chamando-o de feliz”. Pena que a plenitude e a felicidade de Machado apontadas por Nabuco terminaram um mês depois dessa carta, quando ele enviuvou.
O quarto volume da correspondência machadiana – que vem sendo publicada desde 2008 – vai de janeiro de 1901 a dezembro de 1904. Compreende 252 documentos, entre cartas, cartões-postais, telegramas e bilhetes. Desses, 118 foram escritos por Machado, 46% do total do volume. Seus principais correspondentes são, além de Nabuco – com 20 cartas, sempre em missão diplomática –, o jovem protegido Magalhães de Azeredo (1872-1963), emissário brasileiro no Vaticano, com 33 cartas; o crítico José Veríssimo (1857-1906), com 30; e o amigo de juventude, o jornalista Salvador de Mendonça (1841-1913), 12, o único que ainda trata por “tu”. “Machado mostrou uma faceta a cada um deles”, diz Sílvia Eleutério. “Exercitava a verve com Veríssimo, o instinto paternal com Azeredo e lembrava o passado com Mendonça.” Destilava as habituais ironias, mas também trocava confissões e prestava favores como “pistolão” no serviço público ou como autor de uma resenha anônima e elogiosa (leia o quadro abaixo). Da multidão de burocratas, colegas e candidatos à cadeira de “imortal” que lhe escreviam, destacam-se o historiador Manuel de Oliveira Lima (1867-1928) e o romancista Graça Aranha (1861-1931).

“Machado está mais presente no novo volume”, diz Sergio Paulo Rouanet. “Isso dá uma dramaticidade e um prazer de leitura maiores. Faz lembrar romances epistolares do século XVIII, como Clarissa (1748), de Samuel Richardson, ou La nouvelle Héloise (1761), de Rousseau, que Machado apreciava, embora nunca tenha escrito algo no gênero. As cartas ressuscitam os diálogos entre um guru e seus seguidores.”

Elas também trazem Machado com mais de 60 anos, em dois momentos diferentes. Até 1903, ele estava cansado e ocupado com os trabalhos na Academia e da Secretaria de Viação do Ministério da Viação, Indústria e Obras Públicas, da qual era diretor-chefe da contabilidade. Mesmo assim, mostrava entusiasmo pelas reuniões da Academia e da Panelinha (o grupo gastronômico que promovia almoços dominicais). Dava atenção às carreiras e às necessidades dos amigos. No segundo momento, a partir de janeiro de 1904, a alegria de viver pareceu minguar. De janeiro a novembro, sobrevieram a doença e a morte da mulher, Carolina, após uma convivência de 35 anos. Ela morreu de “febre intestinal”, o termo do tempo para câncer no intestino. A morte da amada Carola – com quem, em 1869, ao se casar, Machado fizera o pacto de “incendiar o mundo” – abalou-o e, ao mesmo tempo, fez com que passasse a tomar providências em relação a sua morte e à continuidade das atividades da ABL. Alegrias e tristezas fizeram que escrevesse mais que nunca.

Ao longo desses quatro anos, mostram as cartas, ele se dividia entre os cuidados com Carolina, a pauta da Academia, a relação com os escritores e a edição e lançamento de seus livros. São desse período Poesias completas, de 1901, e o romance Esaú e Jacó, de 1904. Depois de muito empenho político, conseguiu uma sede para a Academia em 1904, na Lapa, onde ela funcionaria até 1923. Naquele ano se transferiu para o prédio atual, o Petit Trianon. Lutou junto ao governo, sem êxito, para que bustos de escritores fossem erigidos 15 anos depois da morte do homenageado, para evitar entusiasmos precoces. Dava a palavra final nas eleições da academia. Em 1903, defendeu a eleição de Euclides da Cunha contra a opinião do acadêmico Graça Aranha. Os rivais haviam publicado os dois livros mais festejados de 1902: Euclides, Os sertões, e Graça, o romance Canaã (1902). Nessa eleição, um protegido de Machado, Magalhães de Azeredo (cujas hesitações e tom lamurioso dizem ter inspirado Bentinho, protagonista de Dom Casmurro), sofria em dúvidas e lhe perguntava: “Qual é o nosso candidato?”. Em contato com o editor parisiense Hippolyte Garnier, indicou poetas amigos, negociou contratos e corrigiu provas. Mas continuava modesto. Tão logo seus livros chegavam às livrarias, comentava com gratidão as resenhas dos amigos, como se sua literatura não fosse extraordinária e não fosse ele “o papa das letras nacionais”.

Machado não interrompeu a atividade quando entrou de licença por um mês, no início de 1904, para levar Carolina à cidade serrana de Nova Friburgo, numa tentativa inútil de salvá-la. Lá, em consideração à mulher portuguesa e católica, o cético Machadinho, como Carolina o chamava, frequentou missas na Matriz. A atitude causou espanto em José Veríssimo, que ironizou a “carolice” do amigo, uma referência sutil ao apelido de Carolina. Machado respondeu que a suspensão do ceticismo foi causada por uma inflamação nasal (“defluxo”) passageira. Com a morte de Carolina, em outubro, ele entrou em depressão. Mas não parou de escrever. Adotou os amigos como família.

A correspondência voltou a se intensificar de 1905 até sua morte (de câncer na garganta), em 1908. Esse último período constará do quinto volume das cartas, a ser lançado no fim de 2013, com 306 documentos. “É o período da solidão”, diz Sílvia Eleutério. “Ele dependia dos amigos e se mantinha inconsolável.” Segundo Irene Moutinho, Machado solitário ficou mais carinhoso. Irene descobriu uma carta de 1905 em que ele agradece a uma menina, Alba Araújo, filha de um casal amigo, por tê-lo presenteado com um gato, que ele batizou de Gatinho Preto – pseudônimo que ele já usara em manuscritos. “É possível estudar a relação de Machado com os animais”, diz Rouanet. Machado e Carolina tratavam como filha Graziela, uma cadela tenerife. Ele se mostra carinhoso com os cães no conto “Miss Dollar” e no romance Quincas Borba. No conto “A causa secreta”, porém, descreve a tortura de um rato.

Formular analogias entre vida e texto é um jogo infinito para Rouanet, Irene e Sílvia. Juntos no projeto de decifrar a letra miúda de Machado desde 2006, eles se chamam de “trio de malucos”. Avaliam que os cinco volumes totalizarão 1.146 cartas. “Se não descobrirmos mais coisas”, diz Rouanet. “Nosso sonho é achar manuscritos nas mãos de um colecionador oculto.” Às descobertas documentais sobre Machado se somam as interpretações psicanalíticas de Rouanet sobre ele, suas palavras e as relações com seus contemporâneos. “A gente não revoluciona, mas contribui para a pequena história machadiana”, diz ele. A modéstia de Rouanet não faz jus à excelente recepção que a obra tem obtido. Segundo o professor inglês John Gledson, um respeitado estudioso machadiano, a edição da correspondência torna urgente uma nova biografia de Machado. Que personagem sairia dela? O trio se entreolha, mas não arrisca um palpite. “Uma coisa é certa”, afirma Rouanet. “Será diferente da imagem que Machado ajudou a construir.”  

Diálogos machadianos (Foto: Acervo/ABL)

DESCOBERTAS Sergio Paulo Rouanet, Sílvia Eleutério e Irene Moutinho (sentada) na biblioteca da Academia Brasileira de Letras.  De 2006 até hoje, o trabalho de decifrar a letra miúda de Machado lançou  luz sobre ele (Foto: Foto: Gilvan Barreto/Ed. Globo, reprodução e divulgação)

Revista Época

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