quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Te Contei, não ? - Vozes de bastidores

  • As pesquisas sobre as histórias do teatro e da música não têm registrado suficientemente a incrível contribuição de Martins Pena (1815-1848) na articulação entre esses dois campos. Em suas 20 comédias, escritas entre 1833 e 1847, a musicalidade é evidente. A lista é extensa, reunindo menções no texto, utilização em cena como recursos musicais e indicações sonoras.
    São muitas as músicas vocais, como modinhas, loas da folia de reis, modas regionais, acalantos, árias de ópera e responsórios. Há dançasas mais diversas,de tiranas a fados, marchas a polcas, batuques, galopes, cachucha, curitiba. O autor cita instrumentos– piano, machete, viola, corneta, pandeiro, fagote, flauta, sanfona, realejo –, compositores e intérpretescomo Malibran, Bassini, Bellini, Bériot, Berlioz, Paganini, Saint-Saëns e um certo “Charlatinini” (nome fictício). E ainda indica fontes sonoras não convencionais, como sinos, pratos, caquinhos, flatos, louça quebrando, bofetadas, chicotadas e o pipocar de fogos de artifício. 
    Parece improvável que alguma companhia teatral da época tivesse condições financeiras de levar ao palco tantas sonoridades, mas, em algumas ocasiões, isso ocorreu. Em 5 de setembro de 1840, o Jornal do Commercio registrou um relato sobre a performance do segundo quadro de “A família e a festa da roça” (1837). Não foi sem surpresa que o comentarista viu o palco do principal teatro da Corte abrigar a Festa do Espírito Santo, com seus foliões e músicas conduzidas pelos barbeiros. Além de fazer sangrias medicinais, os barbeiros negros tocavam danças europeias (valsas, quadrilhas e contradanças francesas) e afro-brasileiras, como o lundu, considerado lascivo pelos observadores da época. Essas músicas, tocadas em instrumentos de sopro, cordas e percussão, animavam as procissões da Corte e as festas de irmandades católicas, como as de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e as do Divino Espírito Santo – sempre sob vigilância da polícia. Para escaparem ao controle das autoridades e sobreviverem financeiramente, os artistas e as irmandades criaram estratégias de resistência. Parte da receita obtida com a venda de bilhetes das comédias de Martins Pena era revertida em benefício das irmandades, ajudando seus membros a obter a liberdade de irmãos escravizados e suas famílias. Em troca, irmandades negras, como a de Nossa Senhora da Lampadosa – à qual pertencia o poeta e tipógrafo mulato Paula Brito (1809-1861), editor das comédias de Martins Pena –, realizavam missas cantadas e festas em benefício do teatro.
    Na mesma comédia, Martins Pena se utiliza do recurso do teatro dentro do teatro e faz a plateia ver a si mesma sob o palco, representada por personagens da Corte que assistem, comentam, criticam preconceituosamente ou se surpreendem com o cortejo da folia na roça. Ele cria um espaço ambíguo em que, de um lado, os citadinos discriminavam a figura do roceiro e, de outro, projetavam na mesma figura seus anseios nacionalistas, revestindo esse personagem do protótipo de “brasileiro”, em oposição ao estrangeiro europeu e à cultura da metrópole.
    Se em “A família e a festa da roça” a música foi trazida das festas das ruas e da “roça” para o teatro, em outras comédias o percurso foi o inverso. A modinha (anônima) “Astuciosos os homens são” – incluída na comédia “O cigano” (1845) – exemplifica como a população escutava as árias de ópera e as modificava, adaptando-as a seus próprios interesses. Como revela a partitura para canto e piano, essa modinha apresenta melodia semelhante a uma ária, mas o ritmo repetitivo do acompanhamento no piano invoca uma dança popular. De maneira curiosa, a mesma melodia foi republicada no ano de 1860, na Inglaterra, em livro de James Wetherell. Entre os anos de 1843 e 1857, o autor inglês a teria escutado em Salvador. Aparentemente, a canção havia completado o percurso teatro-rua iniciado no Rio de Janeiro e, em vez de acompanhada pelo piano – instrumento-símbolo da elite afrancesada da Corte imperial –, ganhou o violão como base para o canto: “Astuciosos os homens são, enganadores por condição...”.
    A comédia “Quem casa, quer casa” (1845) desfia mais ironias sobre os imitadores da música erudita europeia. O personagem Eduardo, que mora de favor na casa dos sogros, passa os dias tocando febrilmente sua rabeca e inferniza os moradores da casa. A música que ele tenta tocar é o “Capricho para violino e piano, Le Trêmolo”, do belga Charles Auguste de Bériot (1802-1870). Ao que tudo indica, Pena teria escutado essa música no Teatro São Pedro de Alcântara, em 25 de agosto de 1845, durante recital do violinista italiano Agostinho Robbio. Este se dizia discípulo do virtuoso Niccolò Paganini (1782-1840), sem jamais o ter sido. A comédia ironiza o culto à originalidade romântica ao se referir à suposta capacidade de um violinista imitar em seu instrumento o gorjeio dos pássaros e o zurro dos burros, entre outras façanhas exóticas.
    A ária de ópera e o lundu de barbeiros negros. Os sinos da igreja e a modinha. O violino e os sons da natureza tropical. As músicas das comédias e folhetins de Martins Pena aproximavam mundos artísticos e sociais distantes, das Américas, da África e da Europa. Enquanto milhares de exemplares de suas comédias eram vendidos nas ruas da Corte, Martins Pena era visto com certo desdém pela elite letrada “séria”, chegando a ser censurado por instituições ligadas à monarquia. As gargalhadas que provocava nos teatros escancaravam tensões da sociedade escravocrata e patriarcal, revelando as ambiguidades de um Brasil trágico e cômico. Mas, sobretudo, musical.
    Luiz Costa-Lima Netoé professor de música na Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Pena e cursa o doutorado em Musicologia na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

    Saiba mais - Bibliografia
    ARÊAS, Vilma. “A comédia no romantismo brasileiro – Martins Pena e Joaquim Manuel de Macedo”. Revista Novos Estudos, novembro, 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/nec/n76/10.pdf.
    MARTINS PENA, Luiz Carlos. Comédias. Vilma Arêas (editora). São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, três volumes.
    RABETTI, Maria de Lourdes. “Presença musical italiana na formação do teatro brasileiro”. ArtCultura, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez., 2007. Disponível em: http://www.artcultura.inhis.ufu.br/PDF15/H&T_Rabetti.pdf
    Internet
    TV Brasil/Revista de História da Biblioteca Nacional. “O Sangrador e o Doutor, Rio de Janeiro, 1820” – Histórias do Brasil (7/10). Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=P7GYjFbYXdk

    Pobre ópera brasileira
    Chovia aos cântaros no Rio de Janeiro. Eram as águas de março do ano de 1847. Sentado em uma das cadeiras do Teatro São Pedro de Alcântara, o escritor de comédias, cantor e compositor Martins Pena aguardava pela estreia da ópera “La Straniera (A Estrangeira)”, do compositor italiano Vincenzo Bellini (1801-1835). A ópera romântica era um dos mais importantes símbolos da elite cultural europeia, e sua difusão nos trópicos preenchia as aspirações da monarquia em transformar o Brasil numa nação “civilizada”.
    Os diretores do teatro retardavam o início de “A estrangeira” esperando pela chegada de mais fregueses. Para passar o tempo, Pena divertia-se anotando reflexões que seriam publicadas em seu “folhetim” de 17 de março no Jornal do Commercio: “Quando temos a fortuna de assistir à representação de uma ópera bem escrita, cujos cantores conscienciosa e artisticamente fazem o seu dever, encaramo-la como o mais belo e magnífico espetáculo que tem cogitado e cogitará jamais o espírito humano. Vemos nela a reunião de todas as belas-artes, da música, da poesia, da pintura, da arquitetura, da ótica e da mecânica, em uma palavra, a grande obra por excelência, como o seu nome indica – Ópera”.
    Utilizados normalmente como espaço de entretenimento, os “folhetins” serviam para Martins Pena de tribuna, entremostrando a “ópera da política”. Dois meses antes de escrever o trecho acima, o autor investiu contra o Conservatório Dramático Brasileiro por ter censurado a comédia “Os ciúmes de um pedestre” (1845), na qual criticava a condição de semiescravidão da mulher na sociedade da Corte. 
    Quando enfim subiu o pano, fez-se evidente a precariedade da montagem de “A estrangeira”. Para serem apresentadas nos teatros da capital do Império, as óperas tinham de sofrer cortes e adaptações até que “coubessem” nas orquestras pequenas e no elenco reduzido de cantores e cantoras. A ópera de Bellini estava uma tragédia – situação ideal para que Pena a transformasse em comédia. Após a abertura orquestral, que o folhetinista qualificou como “detestável”, teve lugar o dueto sofrível de Isoleta e o barão Valdeburgo. Em seguida, a misteriosa estrangeira entrou em cena, atravessando pelo lago “em uma canoinha de pescador rápida como um relâmpago.” Martins Pena ironizou: “Pega! Pega!... Pois não! Nem vestígios. O vento estava fresco e a piroga desapareceu...”.
    Se suas comédias eram também musicais, seus folhetins operísticos não poderiam deixar de ser cômicos. Martins Pena registrou, no “folhetim” de 8 de junho de 1847, seu sonho de criar a ópera cômica brasileira. Infelizmente, contudo, não teve tempo de realizá-lo, pois foi vitimado pela tuberculose em 1848, aos 33 anos. 
Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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