sábado, 9 de fevereiro de 2013

Crônica do Dia - Não choro mais



Não chorei quando soube da tragédia de Santa Maria, e até agora não houve pranto. Meu choque foi um choque mudo, frio, escaldado, choque maior até por constatar que o incêndio no Sul é apenas o mais recente horror de uma fileira que remonta à infância, desde que me entendo por gente, quando ouvia Gil cantar “Aquele abraço” no rádio Transglobe de meu pai.
Com ele, o pai, passei, de carro, sob o viaduto Paulo de Frontin horas antes de sua queda, em 1971. Fiquei dias e noites, menino de 6 anos, tentando reconstituir o momento da queda, não havia infográficos, era só a mente mesmo a criar o horror e a imaginar-se nele: eu e meu pai, se estivéssemos lá, como seria nossa morte? Choraria, décadas depois, com a tarde que caía como um viaduto na letra de Aldir Blanc.
Pelo rádio de meu pai não ouvia nada sobre o brutal regime que assolava o país e que fazia tantas vítimas pelas quais também se chorava, e pelas quais o Gil choraria, em retrospecto, paradoxalmente pedindo que o pranto cessasse. Foi quando pensei: “Então pronto: não choro mais.”
Mas chorei, chorei quando Lennon foi baleado, olhando pela janela de esquadrias de alumínio da casa de minha avó, em Copacabana, e mirando além do Atlântico para algum lugar, lá, onde John não estava mais.
Chorei com os rostos esmagados no alambrado de um estádio na Inglaterra, impressionado com as fotos que mostravam as fisionomias moldadas pelo gradeado, em processo de serem quebradas e ainda vivas. Chorei eu mesmo quase massacrado num Flamengo e Atlético-MG no Maracanã em 1980, próximo às bilheterias, entre ferrolhos, já estava no chão e um amigo me puxou de volta para a multidão.
Chorei com o descaso no Bateau Mouche, em 1988, e chorei, de novo, tempos atrás, inflamado, quando vi que a justiça, 20 anos depois, não se fez, e os larápios estão em algum tipo de paz, a paz do psicopata, ou a paz espreitada pela culpa, que é o pior dos infernos, e nesse caso alguma justiça, sempre, se faz.
Chorei com o massacre em Eldorado dos Carajás. Chorei com o índio incendiado em Brasília. E choro quando vejo o quanto se despreza e se desrespeita os índios no Brasil. Chorei ao ver como os franceses desrespeitam seus velhos. Chorei quando, após capotar com meu carro, vi, mais de perto, como se tratam os velhos doentes num hospital público, após ter sido espreitado por câmeras de televisão antes de os bombeiros me resgatarem.
Chorei quando vi como se tratam os presos, inclusive os inocentes, no meu país, alimentando o ódio que se voltará, no futuro, contra os homens de bem. Chorei quando vi o Brasil fazendo salamaleques a Collor, em ver como somos cegos, mesmo quando esclarecidos.
Chorei ao ver as primeiras fotos da queda do avião da TAM em 1996, chegarem à sucursal de São Paulo de O GLOBO, onde eu trabalhava. Os fatos daqueles 30 segundos não cabiam naquelas imagens. E chorei de raiva dos passageiros que não embarcaram e que se declararam escolhidos por Deus para serem poupados, como se, para seu Deus, tivesse mesmo chegado a hora das crianças carbonizadas no voo da morte.
Mas não choro mais. De tanto que chorei ao constatar o cinismo das autoridades do Rio diante do que aconteceu com o bondinho de Santa Teresa, que deixaram apodrecer e matou e feriu em 2011. E, se não estivesse sem lágrimas neste momento, choraria com a reportagem de Luiz Felipe Reis, publicada esta semana, e com as caras de santo que as autoridades fizeram diante do próprio descaso com os espaços culturais do Rio, um mea culpa disfarçado de contrição. Choraria, mas não consigo, pelos que se sentem elevados a santos e purificados de todos os seus pecados por prestarem solidariedade, usando a tragédia para fins de expurgo e exibindo suas benfeitorias como troféus, fazendo barulho, sem o mínimo respeito.
Tenho vontade, mas não consigo, de chorar ao tentar calcular quantas outras vidas, sem que saibamos por ser impossível tudo ver, estãos se perdendo enquanto o Brasil chora Santa Maria: como disse-me o Pedro Bial em entrevista que sai amanhã, há 300 Santas Marias por dia, espalhadas pelo país, mas não podemos saber, não podemos chorar todas, embora saibamos dos crimes que se cometem hora a hora por ganância ou por falta de apreço oficial pela coisa pública.
Por isso não choro mais, até segunda ordem. Até que me mandem chorar. Até que a crosta de lágrimas se desfaça em sangue e o pranto represado se esvaia, enfim.


E-mail: arnaldo@oglobo.com.br

Arnaldo Bloch - O Globo

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