segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Te Contei, não? - A Censura militar

Em 1973, o governo militar vetou a música “Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula)”, do ídolo brega Odair José.  A letra não pregava a resistência contra a ditadura nem falava de qualquer herói vermelho. Foi tudo culpa do refrão: “Pare de tomar a pílula, porque ela não deixa o nosso filho nascer. Pare de tomar a pílula, pois ela não deixa sua barriga crescer”. O governo militar patrocinava campanha nacional de controle da natalidade e não tolerou o sucesso popular desses versos, numa demonstração do alcance da censura na época.
Durante o regime militar, a repressão à produção cultural perseguiu qualquer idéia que pudesse ser interpretada como contrária às da caserna, mesmo as que não tinham conteúdo diretamente político. Por conta disso, os militares foram capazes de prender, seqüestrar, torturar e exilar artistas, jornalistas e intelectuais. Não fosse esse lado trágico, o saldo do período poderia ser considerado cômico, tantas foram as trapalhadas da censura na hora de lidar com a liberdade de expressão. O regime vetou uma apresentação do balé Bolshoi, companhia de dança estatal da União Soviética comunista. Filmes de kung-fu foram proibidos por conter “substrato maoísta”. O poeta Ferreira Gullar uma vez teve uma pasta com artigos apreendida em sua casa e acredita que a inscrição na capa – Do Cubismo à Arte Neoconcreta – foi interpretada pelo oficial como uma referência a Cuba. Até a dupla de compositores Dom e Ravel, que havia emplacado “Eu Te Amo Meu Brasil”, hino ufanista que mereceu cumprimentos pessoais do presidente Medici, teve de se explicar aos censores.
Com Geisel e sua promessa de abertura lenta, gradual e segura, artistas e intelectuais esperavam um certo alívio na repressão cultural. Esqueceram de combinar com o então ministro da Justiça, Armando Falcão. Em sua gestão, continuaram a ser expedidas dezenas de portarias cortando trechos de filmes, riscando faixas de discos ou vetando obras inteiras. Compositores, cineastas, escritores, jornalistas e dramaturgos se esmeravam em usar a criatividade para driblar a tesoura dos censores, usando para isso letras cheias de metáforas – expediente que começou nos anos de chumbo e ficou conhecido como linguagem de frestas.
A resistência artística, assim como a censura, tiveram diferentes fases durante o regime militar. Os primeiros anos depois do golpe foram de relativa liberdade de expressão. A censura tinha seus limites, refletindo a linha do ambíguo e moderado marechal Castello Branco. Com o endurecimento do regime, após 1968, a resistência cultural passou a viver maus momentos. Funcionários da Divisão de Censura de Diversões Públicas da Polícia Federal se instalaram nas redações dos principais jornais e revistas, controlando tudo o que estava para ser publicado. Vira e mexe o espaço de notícias, fotos e charges censuradas acabava preenchido por receitas culinárias e versos de Camões, em sinal de protesto. A fúria do aparato repressivo resultou em teatros destruídos, no seqüestro e interrogatório de artistas e no exílio de compositores e escritores.
Nessa fase, a produção cultural de contestação ao regime era “engajada”, com atenção aos grandes temas ideológicos da esquerda, como a luta pela reforma agrária e pela justiça social. Mas os sucessos nas rádios e nas lojas ficava para a música mais popular, que ressaltava as qualidades do país, como a ufanista “País Tropical”, de Jorge Ben (na época, sem o “jor” no final do nome), que cantava o Brasil como “país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”.
No período Geisel, a cultura e a resistência sofrem influência das idéias da contracultura. Era um movimento que pregava uma ação social e política de oposição à violência e aos valores da sociedade de consumo e a favor das liberdades sexuais, do uso de drogas para ampliar os limites da percepção e da vida em comunidades alternativas. Nos Estados Unidos, essa atitude serviu de combustível para o movimento hippie. No Brasil, afetou especialmente o teatro e a música, então as principais frentes de contestação ao autoritarismo. Gil, Caetano e os Novos Baianos – grupo que vivia em comunidade e reunia Moraes Moreira, Pepeu Gomes e Baby (na época) Consuelo – transformam a busca pelo prazer no tema principal de suas canções. O lançamento do disco Bicho, de Caetano, em 1977, é um marco da influência da contracultura. A faixa “Odara” – que traz os versos “deixe eu dançar / pro meu corpo ficar odara” (palavra africana que significa “sentir-se feliz”) – levou a esquerda engajada a acusar a postura “bicho-grilo” de Caetano e dos baianos de ser alienada e alienante. Além dessa turma pós-tropicalista, a postura mais radical da contracultura influenciou a vertente roqueira nacional, representada pela debochada Rita Lee e pelo maluco beleza Raul Seixas.
A contestação aos valores defendidos pelos militares também chegou à chamada música cafona. “A partir de 1974, com o fim do milagre econômico, há uma mudança de enfoque na música popular, que no período de 1969 a 1973 se caracterizou pelo ufanismo, e ocorre um boom da música de protesto”, relata o historiador Paulo César de Araújo. Para ele, “a música popular firmava-se como o grande canal de expressão de uma ampla camada da população brasileira, que, nesse sentido, não ficou calada e se pronunciou por meio de sambas, boleros e, principalmente, baladas”.
A nova atitude e o sucesso daquele tipo de música despertaram a preocupação dos censores de Armando Falcão. Apesar de ainda manter suas atenções para estrelas como Chico Buarque, a censura atingirá em cheio a produção dos compositores e cantores populares românticos. “Eu não tenho dúvida que essas canções contribuíram para uma visão crítica do seu consumidor, porque parte delas trazia questionamentos contundentes quanto às relações sociais”, afirma Araújo. Exemplo disso, de acordo com o historiador, é que os latifundiários da região do Araguaia (PA) proibiram os trabalhadores rurais de cantarem a canção “O Caminhante”, da dupla Dom e Ravel, lançada em 1974. “Onde piso dizem ‘isso não é seu’ / tanta coisa boa eu deixo de fazer / grande parte de caminhantes já morreu / sem o nosso pobre mundo compreender”, diz o refrão dessa música. Outro exemplo insólito foi o veto da Censura Federal à regravação em 1974 da canção “Tortura de Amor”, de Waldick Soriano, por conta justamente de seu título.
Encarregados de lidar com sutilezas e interpretações, os censores com freqüência metiam os pés pelas mãos. Chico Buarque adotou o nome artístico de “Julinho de Adelaide” para ter suas composições liberadas. A estratégia deu certo e as canções de “Julinho” tornaram-se sucessos. Entre elas, “Jorge Maravilha”, que traz os versos “você não gosta de mim, mas sua filha gosta”. A canção surgiu após um agente da Polícia Federal abordar Chico e lhe pedir um autógrafo, justificando: “É para minha filha”. No início dos anos 70, as vitrines do país expunham livremente a capa do inovador disco Tom Zé e Todos os Olhos, que trazia um ânus fotografado bem de perto com uma bolinha de gude no meio, simulando um olho (veja acima). Outra que a censura não entendeu e liberou foi “Festa Imodesta”, de Caetano Veloso, gravada por Chico Buarque no disco Sinal Fechado (1974). A canção, em um típico uso da linguagem de frestas, traz nos versos críticas à própria censura: “Tudo aquilo que o malandro pronuncia / e que o otário silencia / toda festa que se dá ou não se dá / passa pela fresta da cesta e resta a vida”.
No teatro, Chico Buarque se baseou em um clássico para escrever com Paulo Pontes a peça Gota d·Água. Os autores transportaram o enredo da tragédia grega Medéia para uma favela em processo de reurbanização com a construção de um conjunto habitacional. A peça tinha como pano de fundo uma crítica ao milagre econômico, a partir da mobilização da população do morro contra os preços extorsivos das unidades postas à venda. Passou.
Para algumas obras, a censura significou anos de espera. O Abajur Lilás, de Plínio Marcos, que fazia uma crítica irônica à repressão, foi proibida duas vezes, em 1970 e em 1975, sob a alegação que atentava contra a moral e os bons costumes. A peça, que mostra o conflito entre prostitutas, um homossexual cafetão e seu guarda-costas, incluindo tortura e assassinato, só foi liberada em 1980.
No cinema, a produção nacional de resistência à ditadura praticamente deixa de existir nos anos da distensão. Nesse período, alguns dos diretores do contestador Cinema Novo, como Cacá Diegues, ironicamente têm suas obras apoiadas pelo órgão oficial de fomento ao cinema do governo militar: a Embrafilme. O “cinema de resistência” que restava explorava o erotismo, como as pornochanchadas produzidas na Boca do Lixo, em São Paulo, que afrontavam os padrões morais vigentes. Para burlar a Censura Federal, os cineastas da “Boca” inseriam cenas propositadamente censuráveis nos filmes. Os censores tascavam a tesoura nesses trechos e deixavam passar o resto.
O sopro punk nos 80
Se a contracultura influenciou a resistência artística em boa parte da década de 70, no período final do regime militar ela foi influenciada por idéias antagônicas ao “paz e amor” dos hippies. Os ares do movimento punk, por exemplo, tiveram forte presença na canção pop brasileira dos anos 80. Com o desmantelamento de boa parte do aparato censor e repressor no governo Figueiredo, parte do pop-rock nacional dos anos 80 virou trilha sonora da redemocratização do país – basta lembrar “Inútil”, da banda Ultraje a Rigor, que no tempo das Diretas Já reclamava: “A gente não sabemos escolher presidente / A gente somos inútil”.
Essa canção de consumo em larga escala foi além do protesto e da lamentação da canção engajada dos anos 60 e 70. Titãs, Plebe Rude e Ira!, por exemplo, incentivavam em suas canções uma ação imediata pela mudança. Em 1985, ano que marcou o fim da ditadura militar e a posse do primeiro civil após 21 anos, a banda Legião Urbana lançou seu primeiro disco e, ressoando o melhor estilo punk, mandou um recado contra os anos de autoritarismo nos versos da canção “Geração Coca-Cola”: “Desde pequenos nós comemos lixo / comercial e industrial / mas agora chegou nossa vez / vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês”.
Mesmo com a volta da democracia, vira e mexe há arroubos governamentais em tolher liberdades de expressão e informação. Foi o caso do veto à exibição do filme Je Vous Salue, Marie, de Jean-Luc Goddard, na gestão Sarney. Sob Lula, o governo cogitou retaliar o correspondente Larry Rother, do New York Times, depois de matéria negativa para o presidente, e criou restrições à divulgação de pesquisas do IBGE – exemplos de que a resistência ao autoritarismo deve ser permanente.

Na pior fase, astros da MPB trocaram palcos por exílio

Após o AI-5, cantores foram "convidados" a deixar o país
O uso de metáforas e de mensagens disfarçadas nas músicas foi uma maneira que os compositores encontraram nos anos de chumbo para dar seu recado contornando a censura. Bom exemplo disso é Apesar de Você, de Chico Buarque. Lançada em 1970, a composição, que trata aparentemente de uma briga de namorados, pode ser interpretada como uma mensagem ao presidente Medici: “Você vai pagar e é dobrado / cada lágrima rolada / nesse meu penar / apesar de você / amanhã há de ser / outro dia / você vai se dar mal”. Mensagem que os censores só entenderam após o compacto ter vendido cerca de cem mil cópias. A verdade é que essa estratégia teve sucesso limitado, em um período em que os militares deixaram a sutileza de lado. Quando o regime endureceu, a censura e a repressão à produção cultural se intensificaram, gerando o que o escritor Alceu de Amoroso Lima classificava como “terrorismo cultural”. Pior: a ameaça a artistas e intelectuais passou a ser também física.
Em 1968, durante uma das apresentações da peça Roda Viva, de Chico Buarque, dirigida por José Celso Martinez Corrêa, o espetáculo foi atacado pelo terrorismo paramilitar do Comando de Caça aos Comunistas (CCC). A reação da direita à história que contava a ascensão e a queda de um ídolo, preenchida com paródias bíblicas e com cenas antropofágicas, resultou em atores espancados e cenários destruídos pelo CCC.
No mesmo ano, o cantor e compositor Geraldo Vandré participou do III Festival Internacional da Canção com “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores”. “Há soldados armados, amados ou não / quase todos perdidos / de armas na mão / nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição / de morrer pela pátria / e viver sem razão”, dizia a canção. Consagrada pelo público, que a adotou como um hino contra o regime, ela despertou a fúria imediata dos militares. Logo após a decretação do AI-5, um dos primeiros artistas que a ditadura procurava era Geraldo Vandré. O compositor ficou escondido na fazenda de Guimarães Rosa, no sertão mineiro, sob abrigo da viúva do escritor, até o momento de partir para o auto-exílio. Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque também receberam a visita dos militares logo após a decretação do AI-5. Caetano e Gil foram presos depois do Natal de 1968. Os cantores de “Soy Loco por Ti, América”, na qual prestavam homenagens a Che Guevara, foram presos para prestar esclarecimentos sobre a participação deles na Passeata dos Cem Mil. Durante dois meses, foram transferidos de quartel para quartel. Após o Carnaval de 1969, os dois passaram a viver sob o regime de “confinamento” em Salvador, tendo que se apresentar diariamente ao chefe da Polícia Federal. A seguir, foram “convidados” a deixar o país e iniciaram o auto-exílio em Londres. Chico Buarque foi preso alguns dias antes de Gil e Caetano. Após passar o dia depondo no Ministério do Exército, foi informado que não poderia deixar a cidade. No início de janeiro de 1969, recebeu autorização para se apresentar em um festival de música em Cannes, na França. De lá seguiu para a Itália, onde foi convencido por Vinícius de Moraes a permanecer em auto-exílio, que acabou durando pouco mais de um ano.
A canção popular, que atingia o público de menor poder aquisitivo e era usualmente tachada de “alienante”, também estabeleceu suas trincheiras contra o autoritarismo nos anos de chumbo. Benito di Paula incluiu em seu primeiro LP, de 1971, a canção “Apesar de Você”, de Chico Buarque, e acabou tendo seu disco censurado. E, por ironia, apesar de todas as canções engajadas da MPB, foi um bolero brega de Waldick Soriano, lançado em 1972, que se transformou, rápida e inusitadamente, por conta de seu sucesso, numa canção popular de protesto contra o autoritarismo – “Eu Não Sou Cachorro, Não”.

O Pasquim era o "nanico" que rugia

Humor e polêmica fizeram tablóide vender até 200 mil exemplares
A “imprensa nanica”, feita de revistas e jornais alternativos, formou outra trincheira contra o regime militar. Eram publicações produzidas por grupos independentes ou ligados a movimentos políticos e sociais. O tablóide O Pasquim, lançado em 1969, no Rio, era um dos destaques dos “nanicos”. Durante cinco anos e meio sofreu censura prévia. Para sobreviver à tesoura, o tablóide evitava um confronto direto com o regime, mas abusava do humor negro para ironizar o “milagre econômico”. Também usava e abusava de metáforas e adotou uma linguagem mais coloquial, voltada ao público jovem. Com cartuns criados por Henfil, Ziraldo e Fortuna e textos de Millôr Fernandes, Paulo Francis, Jaguar, Ferreira Gullar (sob o pseudônimo de Frederico Marques) e Tarso de Castro, O Pasquim transformou-se em um sucesso, com vendas semanais de até 200 mil exemplares.
Um dos momentos de maior impacto de O Pasquim foi a entrevista com Leila Diniz, estrela de cinema, teatro e TV e musa dos boêmios e das feministas. Leila falou sobre sua fascinação por sexo e de sua liberdade pessoal, de uma forma que nenhuma mulher tinha falado até então. Os palavrões que ela disse na conversa foram substituídos por asteriscos e assim escaparam da tesoura da censura.

Esquerda maldisse "alienados"

Patrulhamento teve até passeata contra o uso da guitarra elétrica
Era realmente dura a vida do artista nos tempos da ditadura. Resistir significava enfrentar não só a censura e o aparato repressivo do governo militar, mas também a patrulha ideológica da esquerda nacionalista. A prática da censura e da intolerância não era exclusividade da direita ou do regime. Universitários, jornalistas e artistas engajados vigiavam toda a produção cultural no país e não poupavam ataques contra aqueles que consideravam “alienados”. Durante a Era dos Festivais (1960-1972), setores alinhados à esquerda iniciaram uma campanha para combater a música produzida pela Jovem Guarda, por considerá-la alienante e fruto do “imperialismo cultural” anglo-americano. Em 1967, medidas da Ordem dos Músicos do Brasil, claramente protecionistas em favor dos adeptos da MPB, dificultaram a participação dos grupos e artistas da Jovem Guarda nos festivais. Nesse mesmo ano, a “passeata contra a guitarra elétrica”, liderada por Elis Regina, Gilberto Gil, Edu Lobo, MPB-4 e Jair Rodrigues, transformou-se numa manifestação ideológica contra o chamado iê-iê-iê.
Um dos mais famosos episódios de “patrulha ideológica” atingiu o compositor Caetano Veloso. Sua apresentação ao lado do grupo Os Mutantes, no Festival Internacional da Canção de 1968, no Tuca, em São Paulo, foi marcada pelo conflito. A platéia universitária vaiava a canção “É Proibido Proibir”, inspirada no lema dos estudantes franceses do histórico maio de 68, quando Caetano interrompe a performance e inicia um discurso contra os jurados e o público. Para o professor e pesquisador Marcos Napolitano, “Caetano especifica seus alvos naqueles que funcionavam como espécie de defensores do estatuto de MPB”. O tablóide O Pasquim também tinha seus “patrulheiros”, a exemplo do cartunista Henfil. Na charge Cemitério dos Mortos Vivos, publicada em 1972, aparecem nos túmulos os nomes de Dom e Ravel, Wilson Simonal, Bibi Ferreira, Zagalo, Jece Valadão e outras personalidades que ele considerava “alinhadas” ao regime militar.


Revista Aventuras na História

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