domingo, 13 de julho de 2014

Crônica do Dia - Mia, o costureiro - José Castello

Como nascem as palavras? De onde elas surgem? Que rumores, que murmúrios as precedem? Palavras se ligam a imagens. São “visões” – ilusões – com que recortamos e desenhamos a realidade. Não são meros adornos do real _ estão vivas. Essas idéias me vêm durante a leitura de “A menina sem palavra”, vibrante conto do moçambicano
Mia Couto (1955). Ele aparece em "Contos do nascer da terra", reunião de trinta e cinco relatos curtos editada pela Companhia das Letras. O conto de Mia Couto sintetiza sua estratégia literária. Expõe e solidifica suas teses a respeito da origem da literatura. Nele, por isso mesmo, me fixo. Diante de um livro, cada leitor deve encontrar sua porta de entrada pessoal. Fico com a minha, que pode ser torta, mas é minha.

          Uma menina nasceu desprovida de palavras. Balbucia apenas ruídos sem sentido, que expressam seu imenso desassossego. “Nenhuma vogal lhe saía, seus lábios se ocupavam só em sons que não somavam dois nem quatro”. Fala _ se é que fala _ uma língua única, intransmissível, que escapa a qualquer descendência. “Não é que fosse muda. Falava em língua que nem há nessa atual humanidade”. Se pensarmos bem, o destino da garota não chega a ser uma novidade. Escritores o conhecem de perto. Clarice Lispector dizia não escrever em português, mas em “lispector”. Seguindo o mesmo caminho, podemos pensar que Hilda Hilst escreveu em “hilst” e Manuel Bandeira, em “bandeira”. Cada autor fabrica sua própria língua. Cada um de nós carrega não só seu destino pessoal, mas sua maneira singular de expressar a existência.

          Um dia, depois de ouvir os pedidos do pai para que enfim falasse o bom português, a menina lhe oferece uma palavra compreensível: “Mar...” A felicidade toma conta do homem. “Disse mar, ela disse mar, repetia o pai pelos aposentos”. Esperou, resignado, que outras palavras aparecessem, mas só recebeu em troca um grande silêncio. O pai não se conformou. Se aquela palavra – mar – era a única que a filha podia pronunciar, devia ser associada a uma imagem. A imagem do próprio mar para que, da colisão entre imagem e palavra, outras palavras surgissem. Arquitetou seu plano: levaria a filha ao litoral, na esperança de que, justapostas, palavra e imagem, enfim, lhe abrissem o espírito. E foi o que fez.

          Ao chegar diante do imenso mar, a menina se imobiliza. O oceano se agita, as ondas crescem e o pai teme que elas engulam sua filha, mas nada a convence a sair do lugar. A imagem imóvel a assina _ como uma autoria em cartório. Desolado, ele se pergunta: “A miúda ganhara raiz, afloração de rocha?” Não compreende que a garota chegou a si. Ligadas, palavra e imagem formam uma espécie de âncora. Já não é mais possível arrastar a menina de volta para sua vida diária e muda. “Foi quando lhe ocorreu: sua filha só podia ser salva por uma história”. Tinha razão o pai: só o desenrolar lento de uma história _ como o fio salvador a que um equilibrista se agarra _ levaria a menina, novamente, ao movimento. Sem uma história, nada somos além de um monumento. Monumento de que? De nosso fracasso em viver. Nada somos além de pedra _ e pedras não se movem e nem falam.

          Uma história, então, lhe ocorre _ embora ele desconheça sua origem. A história de uma menina que, um dia, pede ao pai que lhe dê a lua de presente. A garota não quer pouco: deseja interferir na ordem do cosmos. A palavra cosmos vem do grego e significa ordem. A menina precisa ordenar sua própria vida e só a lua, ao que parece, pode lhe servir de centro. É, porém, um pedido impossível. O pai, ainda assim, não desiste: pega um barco e navega em direção à lua, que flutua no fundo da noite. Quando chega à borda do horizonte, esticando-se todo, consegue segurar o astro com as duas mãos. “Quando ele puxou para arrastar aquele fruto do céu se escutou um rebentamundo”. O mar se crispa, as ondas se revoltam e uma grande fenda _ um abismo _ nele se abre. Ato contínuo, a lua explode. Flocos de luar, como os cacos de uma garrafa estilhaçada, recobrem a areia da praia. Do abismo que se abriu no oceano, como um castigo por seu extravagante desejo, escorre sangue.

          Assustado com a história que sua imaginação produziu, o pai estanca. Emudece. A história termina sem um fim _ mas, a rigor, qual história tem um fim? “O pai perdeu a voz e se calou”. O relato se suspende, afunda no silêncio. Aflito, resta ao pobre pai a sensação de ter destruído tudo. De ter falhado. Até que, de repente, ele vê sua menina avançar sobre o mar. Também ela busca o que não pode ter. Imediatamente, uma fenda _ novo abismo _ se abre sobre o oceano. A realidade repete a ficção. Ela a atualiza. “O pai se espantou com aquela inesperada fratura, espelho fantástico da história que ele acabara de inventar”. A duplicação o paralisa. Só consegue implorar para que a filha volte para a areia. Mas ela não o atende, em vez disso avança mais decidida ainda sobre seu sonho. Nada a detém. De repente, para espanto do pai, ela passa a acariciar o grande abismo que, agora costurado pelo afeto, começa a se fechar. “Viu, pai? Eu acabei a sua história!”, a garota grita.

          Só então, o homem se dá conta de que não há mar algum, pois os dois continuam no quarto de dormir, de onde nunca haviam saído. Duas ficções _ o sonho da menina e o relato do pai _ os transportaram para fora, para muito além de si mesmos, sem que eles precisassem se mover. Só a ficção levou a menina a falar, só ela promoveu seu encontro com as palavras. Este conto de Mia Couto sintetiza, assim, todas as narrativas de seu livro. Nele se expressa o poder insuperável da ficção, que ultrapassa as fronteiras do real não para rasgá-las, mas para cerzi-las. Um grande manto de sonhos encobre nossa realidade e Mia Couto, com a postura de um costureiro, se encarrega de cosê-lo. Uma pergunta, logo, me vem: por que não fazemos o mesmo com nossas vidas banais? Por que não permitimos que a ficção _ a ilusão _ enfim confira um sentido e ligue o que não tem sentido algum? Se existe salvação, esta é a salvação, e nenhuma mais. 


                                 (Texto publicado no suplemento "Prosa", de O GLOBO, deste sábado 12-07-14)

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