sábado, 5 de julho de 2014

Personalidades - Conceição Evaristo

Vozes-mulheres

Conceição Evaristo

A voz de minha bisavó ecoou
criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos 
De uma infância perdida.

A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
No fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado 
rumo à favela.

A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.

A voz de minha filha 
recorre todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem - o hoje - o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.



In Cadernos Negros, vol. 13, São Paulo, 1990.








“O que eu tenho pontuado é isso: é o direito da escrita e da leitura que o povo pede, que o povo demanda. É um direito de qualquer um, escrevendo ou não segundo as normas cultas da língua. É um direito que as pessoas também querem exercer. Então Carolina Maria de Jesus não tinha nenhuma dificuldade de dizer, de se afirmar como escritora. (…) E quando mulheres do povo como Carolina, como minha mãe, como eu, nos dispomos a escrever, eu acho que a gente está rompendo com o lugar que normalmente nos é reservado, né? A mulher negra, ela pode cantar, ela pode dançar, ela pode cozinhar, ela pode se prostituir, mas escrever, não, escrever é uma coisa… é um exercício que a elite julga que só ela tem esse direito. (…) Então eu gosto de dizer isso:  escrever, o exercício da escrita, é um direito que todo mundo tem. Como o exercício da leitura, como o exercício do prazer, como ter uma casa, como ter a comida (…). A literatura feita pelas pessoas do povo, ela rompe com o lugar pré-determinado.”
[Conceição Evaristo, em entrevista concedida a mim em 30 de setembro de 2010]
Conceição Evaristo - Imagem: Portal Geledés
Conceição Evaristo nasceu em 1946, em uma favela na cidade de Belo Horizonte. Filha de uma lavadeira que, assim como Carolina Maria de Jesus*, matinha um diário onde anotava as dificuldades de um cotidiano sofrido, Conceição cresceu rodeada por palavras. Como gosta de enfatizar em suas entrevistas, isso não significa dizer que vivesse cercada de livros, mas que bebia na fonte da memória familiar através das histórias que os mais velhos lhe contavam.
Tendo sido exposta desde pequena às crueldades do racismo, Conceição tornou-se uma escritora negra de projeção internacional, além de uma militante que atua dentro e fora dos marcos da academia: é mestre em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e conclui atualmente seu doutorado em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense. Publicou seu primeiro poema em 1990, no décimo terceiro volume dos Cadernos Negros, editado pelo grupo Quilombhoje, de São Paulo. Desde então, publicou diversos poemas e contos nos Cadernos, além de uma coletânea de poemas e dois romances.
No entanto, é muito provável que você nunca tenha ouvido seu nome. E mais: te desafio a encontrar os livros dela à venda. Nós, blogueiras feministas, decidimos ler e discutir seus poemas esse mês e nos deparamos com uma dificuldade enorme para adquirir os livros. Uma das mais importantes escritoras negras da atualidade não figura nas prateleiras das grandes livrarias no país, tampouco nos grandes manuais de literatura brasileira. Por que será? O que tem a obra de Conceição que a impede de circular amplamente, apesar do prestígio que ela obteve nos meios especializados, nos meios “negros”?
Como diz Cuti, escritor e pesquisador da literatura negra, “a literatura é poder, poder de convencimento, de alimentar o imaginário, fonte inspiradora do pensamento e da ação”. A obra de Conceição Evaristo tem o objetivo claro de revelar a desigualdade velada em nossa sociedade, de recuperar uma memória sofrida da população afro-brasileira em toda sua riqueza e sua potencialidade de ação.
Dia 20 de novembro, foi o dia nacional da consciência negra, dia em que é comum se evocarem as grandes contribuições afro-brasileiras pra nossa sociedade: música, gingado, capoeira, feijoada… mas o conjunto não pode parar por aí. É preciso fazer emergir a luta, o conflito, os impedimentos e a demanda por igualdade. É preciso lembrar que vivemos em um país racista que, mesmo quando celebra o negro, acaba por fechá-lo nos costumes, no lúdico, mantendo o impedimento ao domínio intelectual e político. Conceição Evaristo nos diz isso: a mulher negra não é só pra ser corpo, beleza, dança… “Negro é lindo”, mas lindo também porque pensa, porque escreve, porque debate, porque luta.
*Carolina Maria de Jesus (1914-1977) é autora de Quarto de Despejo – Diário de uma favelada (1950). Best-seller à época de sua publicação e traduzido em 13 idiomas desde então, o livro narra as mazelas e discriminações enfrentadas pela autora na periferia de São Paulo. Mas também aposto que você não deve ter ouvido falar dela. Informe-se! :)

Nenhum comentário:

Postar um comentário