quinta-feira, 10 de julho de 2014

Te Contei, não ? - É bom pra ioiô, é bom pra iaiá


O afoxé é uma das marcas do negro na Bahia e fruto de uma herança cultural que permanece em processo de transformação
//Por Jaime Sodré
Os elementos de matrizes africanas implementados, em especial, no Brasil traduzem misto de afirmação e desafios diante de uma sociedade que idealizava um país de características europeias, de “refino e civilidade”. Entre os elementos de caracterização da contribuição africana ao nosso “ser de brasilidade”, encontramos o Desfile de Afoxés realizado em Salvador, na Bahia. Uma expressão carnavalesca, cujas raízes estão aliadas à religiosidade afro-baiana.

Bem cultural que, como signo, no entender de Ednalva Queiroz, historiadora, exige o correspondente suporte físico, “dimensão material que serve de base para a comunicação de uma estrutura simbólica que lhe dá sentido”. Ambiente onde os sujeitos atuam baseados em códigos, de acordo com o que estabelece a Constituição Brasileira, na condição de “referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos fundadores da sociedade”.

Pelo seu valor, inclui-se essa manifestação cultural no Livro Especial de Registro de Eventos e Celebrações como um ato de reconhecimento da importância desse evento e da necessária preservação, na qualidade de um acontecimento particular, peculiar, culturalmente atuante, de um patrimônio essencial e identitário para a população do estado da Bahia.    

Conforme Magnair Barbosa, também historiadora, os registros a respeito dos afoxés na Bahia datam do fim do século XIX, exatamente em 1895. Afirmamos que essa notação vincula-se ao fato de alguns clubes negros já apresentarem uma formatação carnavalesca, quando passam a “receber postulações e visibilidade”.

Em sua definição clássica, o afoxé é uma manifestação carnavalesca, “levado” pelo ritmo do “ijexá”, cadência percussiva típica dessa entidade. Integram-se a essa expressão artístico-cultural os cânticos, as indumentárias, os instrumentos musicais, além dos rituais sagrados numa preparação para o desfile, ou seja, para que o cortejo ganhe as ruas, sem problemas.

Olga Cacciatore acentua o caráter religioso do afoxé, “uma festa realizada como obrigação pelos integrantes do candomblé”, hoje mais flexível nesse item. Nina Rodrigues também se preocupou com o afoxé e afirmava que o desfile dessas entidades era “reprodução da África inculta que veio escravizada para o Brasil”, ligadas às práticas ”fetichistas” e mágico-religiosas africanas. Dizia, sem muita admiração: “Candomblé de qualidade inferior”.

Por outro lado, o médico e antropólogo Nina, como testemunha presencial, influenciado pelo cientificismo da ocasião, valorizava o desfile da Embaixada Africana, mas depreciava os Pândegos da África, que, segundo ele, “exibiam uma imagem inadequada para a Bahia”, estado empenhado em “civilizar-se”. A Embaixada Africana, admirada pelo Mestre, tinha para ele um valor superior.

Em um ambiente repressivo aos clubes africanos, eram os afoxés que utilizavam as brechas possíveis, emergentes na pós-abolição, para as exibições, sendo por vezes notificados pela elite e pela imprensa.

Inicialmente, a formatação pioneira do afoxé se constituía de arautos (músicos anunciadores), guarda branca, rei e rainha, o famoso Babalotim (boneco símbolo) e, bordado com fios de ouro sobre tecido de veludo, o estandarte, acompanhado de guarda de honra. A charanga reunia músicos que tocavam atabaques, com destaque especial para agogôs, xequerês e afoxés.

Manuel Querino, um negro estudioso das contribuições africanas que assim se expressara a respeito do desfile dos Pândegos da África no carnaval de 1897, informava que o tema remetia à festa realizada em janeiro em Lagos, na Nigéria, que se chamava Domurixá, a festa da rainha, reafirmando e vinculando os elementos dessa entidade à realidade africana.


Os clubes Embaixada Africana e Pândegos da África, chamados de afoxés, possuíam organizações diferenciadas, considerados “os mais inteligentes adaptados à civilização”. As festas carnavalescas da Bahia evidenciavam os clubes organizados por africanos, negros, crioulos e mestiços. Nesses anos, os clubes ricos e importantes foram Embaixada Africana e Filhos da África, mas havia incontáveis grupos de africanos e os máscaras negras isolados, dizia Nina Rodrigues.

No ano de 1902, os afoxés pediram licença à prefeitura de Salvador para realizar um desfile, mas as autoridades negaram. Esse fato fora debatido pela imprensa e a proibição traduzia um debate político e racial na disputa por espaços entre a elite branca e os negros libertos.

O Jornal de Notícias reclamava: “A nossa polícia não se dignou ainda a providenciar para que nas próximas festas carnavalescas a Bahia não ofereça o triste espetáculo de outros anos...”. Dentro desse clima, assim respondeu o senhor Chefe de Polícia e Segurança Pública, afirmando que nenhum clube poderia sair às ruas sem autorização prévia da polícia. Em sua portaria, ele notificava que “a exibição de clubes de costumes africanos, candomblés” estava absolutamente proibida.

É de fundamental importância compreender o contexto conflituoso entre a elite branca e a população negra, para entendermos as estratégias que objetivavam a manutenção das tradições festivas negras. Os traços excludentes não cessaram com a instalação da República, quando as demarcações de privilégios para brancos e de proibições para negros se mantiveram. As características da sociedade senhorial, visivelmente excludente e até mesmo racista, perduravam na Bahia.

O carnaval iria instalar-se naquele estado às vésperas da República, em 1884, até quando nos dias precedentes à Quaresma se festejava o entrudo português, que chegara à Bahia na primeira metade do século XVII. Um “carnaval luso” objetivava “polir as manifestações populares”, medida que pretendia excluir as manifestações lúdicas negras.

As práticas culturais negras eram tidas como “africanismos”, termo carregado do estigma de ações perigosas e, por isso, reprimidas. Na sociedade da época, os negros, com suas “africanidades”, isto é, práticas e costumes festivos ou sociais, eram associados à imoralidade, à pobreza e à subversão.

Apesar dessa visão distorcida, o afoxé tem o seu valor irrefutável como um componente da criatividade artística, cultural e melódica brasileira. O afoxé é uma marca sociocultural do negro na Bahia e fruto de uma herança cultural dinâmica, em permanente processo de transformação e ressignificação. Em um ritmo cadenciado do ijexá, o Desfile do Afoxé pede passagem em uma reverência respeitosa aos Deuses Africanos.           

Filosofia do tambor
Definimos o afoxé como elemento primordial, cultural de base africana, a que chamamos de “Filosofia do Tambor”. Além de desempenhar atributos musicais lúdicos, o gênero não se limita a esse aspecto, sendo o elemento que assegura a ideia da experimentação plena da “vida aqui e agora”. Outro papel fundamental dos tambores é “convocar”, mediante toques sagrados, os “Santos”. Acreditamos que nas sociedades onde, por razões repressivas, entre as quais as de natureza religiosa, o tambor não soara, viu-se florescer uma cultura tímida.

O “aqui é agora”, princípio filosófico desfrutado na sua integralidade, é uma homenagem à vida plena, sem sabor de pecado e ao som do tambor, mas exigiu enfrentamentos. O candomblé, nos seus primórdios, além de contar com a atuação nos locais distantes, evitando a vigilância repressiva, era e ainda é um centro gerador de uma musicalidade ritual, estimulante, uma coreografia litúrgica especial, que ao final dos atos celebratórios prosseguia com uma expressão de caráter lúdico-recreativo, uma espécie de confraternização, chamada “batuque”.

Para verificar isso, basta recorrermos aos noticiários, em especial os do jornal O Alabama, que, na época, notificando à polícia essas manifestações, exigia providências contra “estas manifestações bárbaras” e “imorais”. Ainda hoje alguns templos de candomblé realizam festas de caráter recrea-
tivo, às quais muitos chamam de “jazzes”.


Assim é que, após a missa encomendada pela Sociedade Fiéis de São Bartolomeu do Terreiro do Bogum, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, depois dos voduns incorporarem em seus fiéis, eles são recepcionados pelos toques do Sirê, no candomblé. Em seguida vêm a feijoada e os musicais populares. Dessa forma, o religioso precede ao lúdico ou recreativo.

É apoiado nessa necessidade de celebrar a vida em um espaço público que o povo-de-santo vai ao carnaval, em forma de afoxé, sem perder o vínculo religioso. Para tanto, essa organização necessita de elementos coreográficos e musicais do candomblé, no que couber. Como instrumental, o agogô ou o apito, detentores do andamento do seu ritmo básico, são percutidos pelos “mais velhos”. Os tambores não podem ser os consagrados nos templos: o Rum, o Rumpi e o Lé. Para isso, atabaques ou timbaus, não sacralizados, são tocados preferencialmente por ogans, xicarongomas, huntós ou alabés, pessoas ligadas ao candomblé.

Antigamente havia os instrumentos dos “afoxés femininos”, entre eles os tambores, conduzidos pelas mulheres do Axé apertados às axilas, como os “tambores falantes” africanos. Encourados com peles de carneiro, cabra e até mesmo, na época, com “couro de cobra”, os tambores eram pintados de branco e azul.

Hoje vemos os Filhos de Gandhy apresentarem a sua seção de clarins, majestosa, utilizada inclusive para saudações durante a romaria, similares às obrigações religiosas consagradas a Oxalá, nos terreiros. Havia, inclusive, como integrantes da orquestra do afoxé, o xequerê, cabaça coberta de contas, chamado nessa organização carnavalesca de “Afoxé”. O estandarte é belo e vistoso, ricamente bordado e decorado, conduzido pelo dançarino, tendo à frente o “Boneco” ou “Kalunga”.

As composições musicais eram as “cantigas fracas”, sem o poder de provocar manifestações como as “cantigas fortes”, vedadas à execução pública. Cuidado que minha Mãe Menininha teve ao ser consagrada como madrinha dos Filhos de Gandhy, fornecendo-lhes o repertório apropriado para a rua nos dias de carnaval. Mais tarde, surgiram os compositores que, abordando a temática mítica do candomblé, sem falar dos “fundamentos”, comporiam no ritmo do ijexá um repertório para os desfiles e ensaios. Nos dias atuais, a temática tornou-se mais livre, sem, contudo, ultrapassar os limites do que pode ser cantado ou pronunciado em via pública durante a folia.

Ao contrário dos tempos antigos, já se usa a amplificação dos tambores e das vozes através dos “carros de som”, em virtude do grande volume de foliões, principalmente nos Filhos de Gandhy. Não se têm notícias, ao menos nas tradicionais entidades, da utilização de instrumentos musicais eletroeletrônicos, a exemplo de guitarras, baixos, teclados etc.

Jaime Sodré é mestre em Teoria e História da Arte, 
doutorando em Educação e Contemporaneidade e professor da Universidade do Estado da Bahia.
 

Publicado na edição 55, de fevereiro de 2014 

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