“Pagu. Cabelos compridos, maquiagem forte nos olhos, lábios vermelhos e um olhar desafiador. Linda, inteligente e versátil”. Esta era a legenda da foto que imortalizou a artista Patrícia Galvão na edição de junho de 1929 da revista modernista Para Todos, na qual colaborava.
O apelido pelo qual ficou conhecida foi inventado pelo poeta Raul Bopp (1898-1984). Conta o biógrafo da autora, Augusto dos Santos, que a ideia nasceu de um equívoco. Bopp a aconselhou a usar um pseudônimo literário formado pelas duas primeiras letras do nome e as duas primeiras do sobrenome. Mas o poeta achava que seu sobrenome era Goulart, por isso propôs Pagu. E “pegou”.
Ela chegou a recorrer a outros pseudônimos para representar os momentos que vivia. Na infância era chamada de Zaza, assinou os primeiros poemas como Patsi, adotou o nome de Mara Lobo ao lançar seu romance Parque industrial (1933) e de Ariel em seus artigos no jornal A Noite.
A versatilidade não estava apenas nas assinaturas, mas também nas atividades que desenvolvia. Apesar de ter vivido só 52 anos (1910-1962), foi jornalista, crítica literária, escritora modernista íntima de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, militante comunista presa e torturada durante a ditadura do Estado Novo, diretora de teatro e mãe.
Pagu nasceu no interior de São Paulo, em São João de Boa Vista, na divisa com Minas Gerais, mas cresceu na capital paulista. Foi na metrópole que escandalizou os vizinhos com suas saias curtas e boca pintada de vermelho num tempo em que a regra para as moças de boa família era casar-se bem e ser uma boa esposa, mãe e dona de casa. Nas artes, sua extrema versatilidade e sua rebeldia resultaram em cartas, artigos, poesias – novos experimentos que podiam ser vistos já no final da década de 1920 na Revista de Antropofagia.
Inovadora e libertária também na conduta pessoal, engravidou de Oswald de Andrade em 1929, quando ele ainda estava casado com Tarsila do Amaral. Seu envolvimento com um dos principais líderes do modernismo ficou marcado nos versos “se o lar de Tarsila vacila/ é pelo angu da Pagu”, escritos pelo próprio Oswald. No mesmo ano ela se casou com o pintor Waldemar Belisário para salvar as aparências, mas meses depois o matrimônio foi anulado. No dia 5 de janeiro de 1930, Pagu e Oswald firmaram um compromisso verbal de casamento no Cemitério da Consolação. Ao nascer, o bebê do casal ganhou o nome de Rudá (falecido em janeiro deste ano).
Juntos, Pagu e Oswald lançaram em São Paulo o jornal "O Homem do Povo", que após oito números foi fechado pela polícia e empastelado pelos estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Coerente com suas heroínas proletárias, ela se filiou ao Partido Comunista Brasileiro, atuou na imprensa ligada ao “Partidão” e foi morar numa vila operária. Anos depois, criticou a rigidez e o sectarismo da “proletarização” a que foi submetida, mas com emoção lembrou-se da dedicação e do companheirismo que testemunhou nos encontros do partido: “Do que pude ouvir na conferência, das discussões a que assisti, das resoluções políticas adotadas, achei magnífico, perfeito, lógico, justo. Vendo as figuras encovadas, sorridentes, amarelas dos companheiros que se despediam como irmãos, senti um bem-estar envolvente. Minha alegria se penetrava de uma fé absoluta. E a minha convicção era inexpugnável. O proletariado brasileiro guiado por uma vanguarda daquela têmpera se libertaria, seria vitorioso, dentro de pouco tempo”, contou Pagu ao aderir ao Partido Comunista Brasileiro, em 1931, na carta que escreveu ao seu marido Geraldo Ferraz e que foi publicada na biografia lançada por seu segundo filho, Geraldo Galvão Ferraz.
A publicação do Livro Parque industrial, em 1933, fez dela, mais uma vez, alvo de críticas. Por ser considerada planfletária, a obra inaugurou uma literatura política militante que passou a ser mais valorizada recentemente. O texto é inovador pelo seu estilo “cinematográfico”. “Poderia ser lido hoje como se fosse o roteiro de um vídeo”, explica a antropóloga Mariza Corrêa.
A obra denuncia a dupla moral sexual, que exigia castidade e virgindade das mulheres, ao mesmo tempo em que estimulava a liberdade sexual para os homens da época e o uso que os “filhinhos de papai” faziam das operárias pobres. Em poucas linhas, Pagu descreveu a incursão dos “riquinhos” no bairro operário do Brás, aproveitando os festejos do carnaval: “Todas as meninas bonitas estão sendo bolinadas. Os irmãozinhos seguram as velas a troco de balas. A burguesia procura no Brás carne fresca e nova. O Carnaval continua. Abafa e engana a revolta dos explorados”.
Assim como na vida de Pagu, a questão da defesa da mulher, principalmente da mulher pobre, está presente em "Parque industrial". Na ficção, a operária Corina é seduzida e enganada pelo burguês Alfredo, mesmo com os alertas de Otávia (o alter ego de Pagu): “Ele nunca casará com você. Ele não terá a coragem de procurar uma esposa fora de sua classe. O que ele faz é só seduzir as pequenas como você, que desconhecem o abismo que nos separa dele”.
Na vida real, Pagu iniciava naquela época um período turbulento, dedicado ao comunismo. Mesmo com um filho pequeno em casa, saiu viajando pelo mundo como correspondente de jornais do Rio e de São Paulo. Visitou a China e em seguida a União Soviética, onde se decepcionou com a situação interna. Percebeu que em Moscou o turismo comunista permanecia em hotéis de luxo, enquanto nas ruas as crianças morriam de fome.
Na escala seguinte de sua viagem, Paris, ela ingressou no Partido Comunista Francês, militando sob a identidade de Leonnie. Foi presa e repatriada para o Brasil. Após o retorno, separou-se definitivamente de Oswald de Andrade. Em 1935, após participar da Levante Comunista, Pagu foi detida, torturada e condenada a dois anos de prisão. Em 1938, voltou a ser presa e foi condenada a mais dois anos.
O longo período que passou na cadeia fez com que sofresse uma grande transformação, dando lugar a mais uma de suas facetas. Já havia desaparecido a linda jovem, musa modernista, que causava escândalo nos moralistas e enfrentava, desbocada, as agressões verbais. A militante política foi abandonada e entrou em cena a mulher com uma permanente sombra nos olhos e um sorriso amargo no canto da boca, rompida definitivamente com o Partido Comunista e casada com o jornalista Geraldo Ferraz, com quem teve, em 1941, o filho Geraldo Galvão Ferraz.
O jornalismo passou a ser sua principal atividade profissional, tornando-se crítica literária e trabalhando na Vanguarda Socialista. Seu segundo romance, A famosa revista, publicado em 1945, denunciou os desmandos do Partido Comunista. A aproximação com as atividades teatrais ocorreu em 1952, quando começou a frequentar a Escola de Arte Dramática de São Paulo, sob a direção de Alfredo de Mesquita. Nos anos seguintes, aprofundou seus laços com o teatro e o jornalismo, liderando a construção do Teatro Municipal de Santos, formando grupos cênicos amadores e fundando a Associação dos Jornalistas Profissionais de Santos. Traduziu e divulgou a obra de autores pouco conhecidos no Brasil, como o modernista suíço Blaise Cendrars e o dramaturgo espanhol radicado na França Fernando Arrabal, e trabalhou incessantemente até ser acometida por um câncer.
Morreu no dia 16 de dezembro de 1962. A Tribuna publicou seu obituário, escrito por Geraldo Ferraz. No texto “Patrícia Galvão, militante do ideal”, o companheiro traçou sua trajetória e lembrou que “em agosto de 1931, aqui em Santos, num comício do Partido na Praça da República, é ela, à frente, quem levanta do chão, ensanguentada, a cabeça do estivador Herculano de Souza, que expira em seu colo. É, nesse momento, a primeira mulher a ser presa no Brasil, na luta revolucionária e ideológica”.
A morte prematura de Pagu – dois anos antes do golpe militar de 1964 e a seis anos das manifestações de maio de 1968 – fez a luta pelos direitos das mulheres perder um reforço de peso e impediu o Brasil de contar com uma militante experiente durante o combate à ditadura. Mas seu exemplo pode ter servido para outras mulheres que se engajaram na defesa da liberdade nos anos seguintes. Algumas foram presas e torturadas como Pagu. Mas, tal como ela, a maioria seguiu lutando por seus ideais.
Maria Lygia Quartim de Moraes é professora da Universidade Estadual de Campinas e autora de “A solidão de Pagu”, publicado em As esquerdas no Brasil – Nacionalismo e reformismo radical (1945-1964), volume 2, de Jorge Ferreira e Daniel Aarão Reis (org.) (Civilização Brasileira, 2007).
Saiba Mais - Bibliografia
CAMPOS, Augusto de. Pagu – Vida e obra. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982.
CORRÊA, Mariza. “A propósito de Pagu” In: Cadernos Pagu. pp 7-17.
FURLANI, Lucia M. Teixeira. Pagu – Patrícia Galvão. Santos: Editora Unisanta, 4ª ed., 1999.
GALVÃO, Patrícia. Paixão Pagu – Uma biografia precoce de Patrícia Galvão, organizado por Geraldo Galvão Ferraz. Rio de Janeiro: Agir, 2005.
___. Parque industrial. Porto Alegre e São Paulo: EDUFScar, 1994.
ZATS, Lia. Pagu. São Paulo: Instituto Callis, 2005.
Saiba Mais - Filme
“Pagu”, de Rudá de Andrade, 2001.
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