O Rio de Manuel Bandeira
O que diria Bandeira se soubesse que, 45 anos depois de sua morte, uma ninguém formada em Letras viajaria para a Cidade Maravilhosa só por causa dele?
Ainda que nascido no Recife, cidade que na sua obra representa antes uma utopia do que uma referência geográfica, o lugar da obra de Manuel Bandeira é o Rio de Janeiro. Durante os 70 anos em que viveu ali, viu desde o bondinho ser instalado no Pão de Açúcar até o Cristo Redentor ser erigido no alto do Corcovado. Claro que, como eu, Bandeira tinha uma opinião sobre tudo, mas esse post não é sobre o processo de urbanização do Rio de Janeiro ao longo do século XX, e sim sobre o que restou daquela cidade em 2013.
Ao chegar à capital da República Velha com a família, em 1896, Bandeira foi morar nas Laranjeiras, rua que depois de uma curva se transforma em Cosme Velho onde era, portanto, vizinho de Machado de Assis. Diz a lenda que um dia, menino a caminho da escola, Manuel impressionou o mestre recitando a primeira estrofe deOs Lusíadas, que Machado tinha esquecido. O trilho do bonde foi arrancado e usado para compor os andaimes na construção do Cristo. Não tenho nenhuma pista sobre onde seria a casa da família Bandeira em Laranjeiras, mas a casa de Machado e Carolina foi derrubada (o que restou de seus móveis está exposto em uma sala na ABL) e no seu lugar se encontra um prédio, onde os únicos resquícios do antigo morador são um restaurante chamado Assis e esta placa:
O que diria Bandeira se descobrisse que o Largo do Boticário, reduto histórico cuja degradação o deprimia, porque as suas casas tinham substituído o “velho autêntico” pelo “velho fingido”, e a velha mangueira onde ele subia na infância fora queimada, se encontra ainda mais abandonado, usado meramente como estacionamento, e suas casas ameaçadas pela umidade e pelas gambiarras?
Depois de morar em São Paulo, onde fez um ano de faculdade de Arquitetura, e na Suíça, onde fez o tratamento para tuberculose, Bandeira se mudou para um quarto na rua do Curvelo, em Santa Teresa, endereço em que passaria os mais importantes anos de sua vida e onde escreveria boa parte de sua obra. Sozinho e pobre, contava porém com uma vista privilegiada da sua janela, que descreve em inúmeros poemas. O poeta só se mudou dali quando a casa foi derrubada; mas ainda hoje quem sobe a rua Dias de Barros até o Museu das Ruínas, onde um centro cultural funciona na antiga casa de Laurinda Santos Lobo, consegue, no alto da escadaria de ferro que reconstitui a original, ter uma visão muito próxima daquela que Bandeira apreciava de seu quarto na antiga rua do Curvelo. O que diria Bandeira se me visse, no alto do morro do Curvelo, o mais perto provável do ponto em que se localizava o seu quarto no beco, chorar pela primeira vez na vida diante de uma paisagem?
Expulso de seu quarto em Santa Teresa, Bandeira se mudou para o derradeiro endereço no Castelo, na avenida Beira-Mar, onde dizia que não via mais “sombranceiramente” a paisagem, mas sim como se estivesse “dentro dela”. A visão do seu quarto, no entanto, não era nada agradável: o apartamento dos fundos dava para o pátio que acabou inspirando inúmeros poemas pelo acúmulo de lixo e a fedentina que empesteava tudo, principalmente em dias de chuva, e que só foi resolvido depois de três (03) administrações municipais. O pátio ainda existe, servindo hoje de estacionamento para os moradores dos prédios do entorno, ainda que me chamasse a atenção um enorme cartaz proibindo o seu uso como depósito de lixo.
Mais tarde, Bandeira se mudaria finalmente para um outro apartamento no mesmo edifício (a localização da ABL, a apenas uma quadra do edifício São Miguel, talvez explique a preferência pelo endereço), desta vez localizado na parte da frente, de onde é possível ver o parque do Aterro do Flamengo e também o aeroporto: “Todos os dias o aeroporto em frente me dá lições de partir”. O que diria Bandeira se visse, meio século depois de sua morte, sua presença ser lembrada por uma singela placa, que lembra que ele e Cândido Portinari habitaram naquele prédio? Meio entediado, o paciente segurança explica que todos os conjuntos são agora de uso comercial: o quarto andar, de um dos apartamentos que Bandeira habitou, é hoje sede de um partido político.
E assim terminam os resquícios da existência de Manuel Bandeira no Rio de Janeiro. Não visitei o seu túmulo, no mausoléu da ABL, em sinal de respeito, porque ele fora contra a sua construção, que lhe dava arrepios. Mas devo dizer que, como tudo neste triste país, o potencial turístico da cidade do Rio de Janeiro é escandalosamente subaproveitado. Em qualquer cidade alemã por onde passou um poeta qualquer encontramos o quarto do fulano aberto à visitação por módicos 5€: não é questão de respeito, é questão de esperteza, que o brasileiro só acha que tem. Da quantidade absurda de grandes escritores e artistas que fixaram residência no Rio, apenas uma minoria é lembrada por plaquinhas escondidas nas fachadas (não incluí aqui a placa que lembra a residência de Pedro Nava na Glória, tão escura que se confunde com a pedra) e por uma ou outra estátua como a célebre de Drummond, em Copacabana. Em São Paulo, nem plaquinhas existem, e quem passa pela rua Mário de Andrade nem desconfia de que ele morava na Barra Funda. Não deveria ser necessário ter feito mestrado sobre Manuel Bandeira para redescobrir essa paisagem fantástica, e ver nela a própria história do Rio de Janeiro.
http://oquediriabandeira.wordpress.com/2013/08/02/o-rio-de-manuel-bandeira/comment-page-1/
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