Teatro em Machado de Assis
Machado foi em sua juventude um aplicado dramaturgo, porém sem o brilho que caracterizou a obra do grande romancista e contista na maturidade.
por Elaine Bittencourt
Um grande homem também pode se esconder atrás de si mesmo. No Brasil, Machado de Assis é um exemplo desta situação um tanto estranha, mas não incomum: mesmo após cem anos de sua morte, data celebrada 2008, são as últimas décadas de sua vida o foco das atenções da maioria dos seus admiradores, leigos ou estudiosos de sua obra.
Parece não haver absolutamente nada de interessante na vida do jovem Joaquim Maria Machado de Assis, a não ser, porém, alguns fatos folclóricos, como o garoto pobre, mulato, gago e epilético que superaria na maturidade todos estes obstáculos para se tornar, com obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas, o maior romancista brasileiro de todos os tempos.
Mas ninguém, nem um Machado de Assis, produz uma obra de tal qualidade sem referências anteriores. Seu passado (bem menos trágico do que se costuma apregoar) é de vital importância para sua formação e para a compreensão de seus escritos. E nem mesmo sua obra dos primeiros tempos é tão insignificante quando querem fazer crer julgamentos que, se não apressados, podem ser criticados tanto pela valorização única da obra da maturidade como pela dificuldade em entender o valor destas produções iniciais do autor, que possuem, sim, qualidades, ainda que não estejam, é bem verdade, à altura dos romances escritos na velhice.
A título quase de curiosidade, ensina-se nas escolas que Machado era também poeta - o primeiro trabalho literário publicado de Machado de Assis foi o poema Ela, que saiu na revista A Marmota Fluminense, em 1855 - mas que não fez nada digno de nota neste campo, com exceção de dois poemas, entre eles Carolina. Agora, uma recente edição completa de suas poesias (Toda Poesia de Machado de Assis, Editora Record) revela o exagero desta afirmação, quase um dogma. Mas há ainda sobre Machado um outro véu a cobrir sua produção: o desprezo pela sua produção teatral.
"Certamente, o romancista, o narrador, é maior, mais maduro, com um pensamento e uma mensagem original que fará dele um escritor universal, mas há uma preparação, uma evolução e, principalmente, por intermédio do jornalista, do cronista, há uma atenção permanente sobre sua época (geralmente subestimada)", escreve o pesquisador francês Jean-Michel Massa no texto 'A Década do Teatro: 1859-1869', incluído em Cadernos de Literatura Brasileira - Machado de Assis, editado este ano pelo Instituto Moreira Salles.
Nessa evolução citada pelo autor, o teatro teve papel de suma importância, servindo mesmo de trampolim para as ambições do jovem Machado. E antes de explicar como isso se deu, é preciso corrigir alguns detalhes de sua biografia. Ao contrário da imagem do velho doente e epilético, o escritor, no auge dos seus 20 anos, gozava de boa saúde, numa época em que seus amigos morriam vitimados pela tuberculose, como Casimiro de Abreu e Macedinho.
O jornalismo abre portas a Machado de Assis, que, como crítico de teatro, logo se vê participando ativamente da vida cultural do Rio de Janeiro. Como diz Massa, ele "aposta no teatro para alcançar a glória". Visita atrizes, comparece às premières de teatro, escreve sobre as peças em revistas e jornais, frequenta festas, declama em reuniões públicas e saraus seus próprios poemas e textos de amigos - evidência de que nesta época não sofria com a gagueira.
Esse jovem vibrante, cercado pelo teatro, então dominado pelos textos importados de Paris, percebe no meio uma possibilidade de ascensão. Não há autores de peso no Brasil que possam lhe fazer concorrência. O escritor elege então um formato que parece destinado ao sucesso: passa a falar das mulheres e de amor.
A comédia Hoje Avental, Amanhã Luva, de 1859, remete ao mito de Cinderela, a moça pobre que consegue ascender socialmente. Um de seus primeiros textos é uma adaptação de La Chasse au Lion, de Gustave Vattier e Émile de Najac. Sua próxima peça, Desencanto, terá um tema recorrente em sua produção, as jovens viúvas.
Seus textos, porém, não serão bem aceitos. Seu amigo Quintino Bocaiúva, crítico respeitado, dispara: "As tuas comédias são para serem lidas e não representadas." A frase soa profética, antecipando a derrota de Machado como homem de teatro, batalha perdida década após década, e que ecoa ainda hoje entre os estudiosos de produção machadiana, como prova a posição de Sábato Magaldi. O crítico diz que "feitas as mais diversas ponderações, é forçoso concluir: as peças de Machado de Assis não apresentam grandes qualidades em si". E completa: "Tivesse o autor cultivado apenas o teatro, seu nome seria absolutamente secundário na literatura brasileira."
Se não era brilhante, o escritor aos poucos lapidava a escrita. Escreve a primeira peça em 1859 e, em 1862, consegue estrear um texto no palco, bem antes de completar trinta anos. Machado trabalha compulsivamente, escreve e traduz peças, textos que se perderam, como Gabriela, encenada em 1962, em São Paulo. No total, foram 25 peças em uma década, das quais hoje 13 estão desaparecidas.
Observando seus textos conhecidos, outro pesquisador de sua obra, João Roberto de Faria, autor da compilação Teatro de Machado de Assis (Martins Fontes, 2003), aponta que o escritor adotou um estilo muito em voga na França, o que ele chama de provérbio dramático, um tipo de texto que em a história deve deixar claro alguma expressão deste tipo. É o caso, por exemplo, de As Forcas Caudinas (1863?- 1865?), no qual a viúva Emília vive uma situação tal como: "Quem com ferro fere com ferro será ferido".
Entender detalhes como esse facilitam a compreensão de Machado de Assis como dramaturgo, autor que também estava sujeito ao estilo e gosto da época. "Só é possível entender essa produção conhecendo o ambiente em que Machado cresceu intelectualmente e o próprio teatro de seu tempo", diz Faria, que acaba de lançar, pela editora Perspectiva, Machado de Assis: do Teatro, obra que aborda o trabalho do autor como crítico de teatro reunindo os textos publicados por ele na imprensa.
Para Faria, muitos dos que estudaram esta produção de Machado tinham pouco conhecimento sobre como era o teatro no Brasil do século XIX. O público, então, se rendia aos franceses e parecia preferir nos palcos os dramalhões ultrarromânticos ou melodramas. Mas, claro, o Bruxo do Cosme Velho, ainda que rendido ao gosto do público - a quem tentava conquistar -, fazia tudo a seu modo. "Avesso aos recursos do baixo cômico ou burlesco, buscou sempre o bom gosto e a leveza. Em suas comédias (...) tudo é extremamente ágil, agradável, por conta da linguagem marcada por chistes, mordacidade, ironia por vezes um cinismo maroto", escreve Faria
"Como, para Machado de Assis, conciliar o sucesso teatral com suas ideias mais rigorosas, quase princípios?", questiona Jean- Michel Massa. Lúcido e já um tanto desiludido, o Bruxo do Cosme Velho desiste dos palcos. Casa-se com D. Carolina e passa a ter uma existência mais tranquila, longe da agitação da juventude. Escreve seus romances, mas não abandona definitivamente o teatro no qual exercitara algumas das mais marcantes características de sua literatura, como a linguagem cifrada, a espirituosidade e os diálogos inteligentes. Na velhice, o Machado de Assis, consagrado pelos grandes romances, saudoso quem sabe dos velhos tempos, volta ao gênero, com Lição de Botânica. Considerada sua melhor peça, foi escrita em 1905.
Romancista aclamado, não deixara nunca de ser um homem de teatro. Hoje, pouco a pouco, o dramaturgo finalmente parece começar a sair da sombra do escritor. Críticos experimentados, como Bárbara Heliodora, percebem o jovem Machado com outros olhos. No recém-publicado O Teatro Explicado a Meus Filhos, ela diz: "As peças que escreveu têm o mesmo sabor de verdade da vida brasileira que seus mais notáveis romances." Há ainda um longo caminho a ser percorrido no estudo e reavaliação da obra teatral de Machado, mas gradativamente o preconceito perpetuado ao longo de tantas décadas parece ruir. Cem anos depois, O Bruxo do Cosme Velho ainda parece ter feitiços escondidos na manga. Só nos resta a instigante tarefa de encontrá-los.
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