domingo, 13 de julho de 2014

Crônica do Dia - Veto do Cristo é golpe de estado - Arnaldo Blcoh

O Redentor é da Arquidiocese. Não é sequer da cidade. Como vai ser da arte?


O veto da imagem do Cristo Redentor no episódio de José Padilha em “Rio, eu te amo”, como vimos, choca o país e o mundo, por ser óbvia censura eclesiástica num país em que há plena separação entre Igreja e Estado; por sobrepor-se ao público e até ao direito de ir e vir, olhar, e filmar, o principal monumento carioca (o que corresponde a proibir um discurso sobre a cidade e inibir a relação do cidadão com um símbolo a céu aberto); por afrontar a lei ao impor uma justiça divina à coisa pública, deixando nua e impotente a Justiça dos homens; por expor a submissão e subserviência de boa parte da atual classe artística à cruzada censória (estabelecida, voluntariamente ou não, pelo brutalmente equivocado movimento Procure Saber), constrangida e traumatizada que está com a indústria dos processos que vem tolhendo, da maneira mais torpe e burra, a liberdade de narrar a própria História.

Há, contudo, algo ainda mais grave na maneira como a Arquidiocese do Rio se posicionou em relação ao assunto e algo obscuro na própria bula que, atualmente, rege o status do Cristo Redentor. O direito, no momento, concedido à Igreja Católica, sobre a estátua e a imagem que esta evoca, é também o direito sobre a própria presença espiritual mediada por esta imagem. O direito à propriedade do Cristo e à sua visão tem um caráter híbrido, uma vez que o catolicismo, que tem no animismo seu maior poder, ao contrário de outras vertentes cristãs, é essencialmente calcado nos símbolos e no imagético, e trabalha suas imagens de pedra, gesso, madeira, ouro, como se estivessem carregadas da substância divina. Isso não ocorre somente nas narrativas milagreiras, de caráter mais mítico e nem sempre autorizadas pela Cúria (estátuas que choram, santas que sangram) mas também em componentes materiais da liturgia: a hóstia é tida, efetivamente, como corpo de Cristo; o vinho é seu sangue; todo o encanto da comunhão está nesta mística.

A cruz, por sua vez, pregada nas igrejas, nas paredes das casas, no peito de tanta gente, ou no terço que envolve as mãos; o corpo maltratado do redentor em peças sagradas, suas chagas a expressar o sofrimento de cada indivíduo, e as representações de sua presença nas artes sacras, nos tetos das capelas, mundo afora, praticamente removem a membrana que divide o símbolo/matéria da substância da crença, tornando o espírito, uma massa que se molda, aqui, aos desígnios de lá, num fenômeno de mídia cujo caráter agressivo ninguém que crê pode aceitar.

Quando, então, um diálogo ficcional, um filme (e pouco importa se é corrosivo ou laudatório) é proibido pela Igreja sem que nada se faça em contrário, avança o pior fundamentalismo que pode haver: aquele que impede de falar, de se aproximar, de expressar. O Cristo é da Arquidiocese. Não é sequer da cidade. Como vai ser da arte? Como abrir ao público (na formulação do discurso ou em sua recepção) o direito de ecoar, na arte, a riqueza de conteúdo que envolve a relação com uma entidade idolatrada?

Na prática, se esse eco é inibido, inibe-se, também, o próprio diálogo do indivíduo com seu interior, com a dúvida, com a busca de dissolvê-la através da crise existencial que todos, em algum momento, enfrentam, e que muitas vezes é a base para um crescimento em direção à religião ou à descrença, que é tão legítima quanto qualquer outra visão do mundo e dos fenômenos. É como se o próprio Deus do catolicismo fosse propriedade da Igreja. É o uso de Jesus como peça de marketing, ferramenta de poder, escravo dos homens.

Os atos da Arquidiocese do Rio transformam o Cristo em propriedade privada e intelectual dos que se arvoram poderes divinos. O arcabouço jurídico que permite que a Igreja Católica possua direitos de imagem sobre o Cristo e legisle sobre as relações da cidade com seu maior símbolo e dos fiéis com aquilo que este representa, estão à altura, em termos de violência, do Santo Ofício, das bulas medievais, do absolutismo s delirante, e fere não apenas o Rio, mas a própria soberania do Estado, que representa, e serve, ao povo, secularmente.

A gravidade desta situação deve ser observada como ameaça não só à liberdade de criar, mas à Liberdade com “L” maiúsculo, à democracia, aos poderes, ao governo, ao país, ao indivíduo, aos coletivos, à Humanidade, à Civilização e a Deus, o criador, se existir; e também a seu filho, Jesus, que, ele mesmo, homem, blasfemou na cruz, expressou-se, desconfiado de que o pai o abandonara.

Por isso, a reação não deve se limitar à classe artística, a cineastas, a produtores, a meia dúzia de juízes ou a párocos respeitáveis que enxergam o que há de insano, ou até de profano, sacrílego. Deve ser uma reação de toda a sociedade, dos governos, de Dilma, do Ministério Público, da OAB, do Judiciário como um todo, da oposição, e de todo o povo brasileiro — ao menos de quem, em seu seio, ama a liberdade de crer, ou não, em paz e em liberdade.




Nenhum comentário:

Postar um comentário