Das cantigas trovadorescas ao Cordel
Este artigo é uma homenagem aos poetas do povo
por Luzdalva S. Magi*
“... Eu sou de uma terra que o povo padece Mas não esmorece e procura vencer. Da terra querida, que a linda cabocla De riso na boca zomba no sofrer Não nego meu sangue, não nego meu nome Olho para a fome, pergunto: o que há? Eu sou brasileiro, filho do Nordeste, Sou cabra da Peste, sou do Ceará...
(Patativa do Assaré) ”
A Literatura de Cordel surgiu primeiramente na forma de cantigas trovadorescas que eram acompanhadas por instrumentos musicais, versos compostos para cantar e dançar, o que facilitava ao ouvinte a memorização e assimilação do tema apresentado. A presença de rimas, as constantes repetições eram os recursos utilizados pelos compositores para que o público assimilasse o discurso inserido na obra. Não havia registro escrito, apenas a apresentação oral dos versos compostos. Muito tempo depois, com o surgimento do Humanismo, é que a poesia e a música se separaram. Atualmente, o papel dos trovadores, menestréis e jograis foi assumido por cantores e grupos musicais que fazem uso do verso e da melodia para levar seu discurso ao público.
As cantigas de amigo traziam características de confissão e anseios e o eu lírico feminino falava de possibilidades reais de sentimentos. Esse tipo de cantiga era comumente utilizado em bailados e celebrações de grupos agrícolas, nos quais a característica matriarcal era forte e influente – nos rituais da primavera, nas festas comemorativas, ela sacramentava a importância social do ser feminino. No entanto, em outras situações, essa mesma cantiga era a síntese da mulher sofredora, que vaga pela praia e fala com os elementos da natureza, está à espera do seu amado que partiu para terras distantes, que canta ao acaso sua dor e o temor obscuro de não mais rever o ente querido.
“Ondas do mar de Vigo
Se vistes meu amigo?
E, ai, Deus, se verra cedo!
Ondas do mar levado
Se vistes meu amado?
E, ai, Deus, se verra cedo!”
As transformações sofridas pelas cantigas de amigo não a esvaziaram de seu sentido primeiro. Traços comuns entre elas e obras e composições atuais são facilmente observáveis. Vamos usar como termo de comparação a canção de Caetano Veloso e Ferreira Goulart, Onde Andarás, gravada por grandes intérpretes, como Joanna, Marisa Monte e Maria Bethânia.
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Onde andarás nesta tarde vazia
Tão clara e sem fim
Enquanto o mar bate azul em Ipanema
Em que bar, em que cinema te esqueces de mim.
(...)
Eu sei, meu endereço apagaste do teu coração,
(...)
Não serve pra nada a escada, o elevador,
Já não serve pra nada a janela
A cortina amarela, perdi meu amor
E é por isso que eu saio pra rua
Sem saber pra quê
Na esperança talvez de que o acaso,
Por mero descaso, me leve a você.
(...)
POR DENTRO Trovadorismo, também conhecido como Primeira Época Medieval, é o primeiro movimento literário da língua portuguesa. Seu surgimento ocorreu no século XII, quando Portugal começava a despontar como nação independente. Os textos produzidos, em sua maioria poemas – considerados cantigas –, eram criados para serem cantados ao som de flauta, viola ou alaúde. Os trovadores, autores de origem nobre, eram aqueles que compunham as poesias e as melodias que as acompanhavam. Os jograis, indivíduos considerados de origem vil, eram primordialmente cantores, apesar de, por vezes, também escreverem os versos que declamavam. Havia, ainda, os menestréis, artistas da corte ou ambulantes, que, a serviço de senhores, recitavam e cantavam poemas em verso, frequentemente com acompanhamento instrumental. Há divergências entre os autores sobre quem, à época, abaixo dos trovadores, teria gozado de mais prestígio, se os jograis, ou os menestréis. Conheça as origens do Trovadorismo em: pt.wikipedia.org/ wiki/Trovadorismo> A melancolia do abandono, o sopro de desesperança, o vagar pela praia acalentando o desejo de encontrar o amor distante está presente como em qualquer canção medieval, muda a linguagem, sim, porém a mensagem e o traço sentimental e desvairado permanecem intocáveis como nas falas dos antigos menestréis. Essa mágica da poética que acontece sinestesicamente é que enleva e cativa o ouvinte e que o faz repetir mecanicamente um refrão. Os vários tipos de cantigas de alguma forma permaneceram, chegaram ao Brasil com os colonizadores e foram se adaptando, como todo traço cultural se adapta. Dessa adaptação é que surgiu a modalidade de expressão poética chamada Cordel, comum no Nordeste brasileiro, tendo como similar do menestrel o repentista. O gênero é chamado Cordel porque os livretos eram compostos de folhas atadas por uma espécie de barbante, os quais eram expostos em varais nas feiras livres para serem comercializados. Na França, a Literatura de Cordel recebeu o nome de Littèrature de Colportage; na Espanha, de Pliegos Sueltos e em Portugal, de Folhas Volantes.
Os temas dos cordéis variam, podem falar de amor, de contendas, de feitos heróicos, de personagens históricos, mas o mais comum é o desafio – uma peleja poética empreendida por dois autores que têm como objetivo mostrar a presteza do verso e o raciocínio rápido. A disputa de versos é conhecida como “duelo de repentes1”. Nela, os compositores improvisam e satirizam ou elogiam seu rival. O principal autor de Cordel no Brasil foi Leandro Gomes de Barros (1865-1918), que se inspirou em cavaleiros lendários e compôs a “A Batalha de Oliveiros com Ferrabrás”, fazendo alusão a Carlos Magno e os Doze Pares de França. “Eram doze cavaleiros, Homens muito valorosos, Destemidos e animosos Entre todos os guerreiros, Como bem fosse Oliveiros, Um dos pares de fiança, Que sua perseverança Venceu todos os infiéis Eram uns leões cruéis Os Doze Pares de França! (...) ” O Cordel também assume traços bem humorados, como a crítica de costumes. Com certa galhofa e ar descompromissado, demonstra os preconceitos comportamentais da sociedade de maneira geral, como é possível verificar no excerto abaixo da obra apresentada por José Martins dos Santos, autor de Moça Namoradeira. “Aconselho às moças donzelas Que vivem na maganagem Que desprezem a malandragem E o namoro das janelas Vá lavar suas panelas, Talher, prato e frigideira, Tenho visto moça solteira Com os malandros abraçada Termina sendo falada A moça namoradeira.” O Brasil, hoje, possui dois representantes repentistas de total responsabilidade, Caju e Castanha – eles cantam o humor e a beleza, a feiura e a delicadeza e vão espalhando talento, bom humor, acidez e crítica social por onde passam. Entretanto, não são valorizados como deveriam e nos rincões afastados desse País laboram excelentes compositores e repentistas que nem sequer são conhecidos.
1 - Alguns autores consideram o cordel e o repente gêneros distintos. Afirmam que, apesar de ambos terem a mesma origem – as cantigas trovadorescas –, o repente se diferencia do cordel basicamente por ele ser baseado na criação de cantadores, ao passo que o cordel é caracterizado por ser poesia nascente da cultura popular publicada em pequenos folhetos. No entanto, nas palavras de Gonçalo Ferreira da Silva, presidente da ABLC, o repente, enquanto peleja poética, é uma das modalidades de cordel.
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Adorei!
ResponderExcluirLuzdalva Silva Magi