Publicada em 2014/03/17 15:42 - por: Redação
Quando ouve os suaves acordes de “Disfarça e chora”, Denílson Moreira, biógrafo de Cartola, imediatamente se lembra dos detalhes da nada amena história que precedeu o lançamento do primeiro disco do sambista, gravado há 40 anos.
Apesar de ser um respeitado compositor desde os anos 1930, o fundador da Mangueira só conseguiu gravar um trabalho solo aos 65 anos. E, mesmo assim, o público brasileiro por pouco não pôde escutar o LP que reúne “O sol nascerá” e “Alvorada” e se tornou um dos maiores clássicos do samba. O trabalho ficou engavetado durante dois meses, enquanto o produtor João Carlos Botezelli, o Pelão, convencia Marcus Pereira, dono da gravadora, da qualidade daquilo que eles tinham nas mãos.
— As pessoas diziam que o Cartola era bom compositor, mas não vendia como intérprete. Implicavam muito com a voz dele. O Pelão conta que o Marcus Pereira ouviu o choro da cuíca e perguntou por que ele havia gravado um latido de cachorro! O disco só saiu com muita insistência — explica o biógrafo.
Tamanha luta deu resultado. O trabalho é fundamental para a afirmação de Cartola como um dos maiores nomes da música brasileira. A gravação impulsionou o número de shows feitos pelo artista e multiplicou o valor de seu cachê, além de ter aberto as portas para os outros três discos que ele gravou em vida. Para a neta Nilcemar Nogueira, o trabalho consagrou de vez o compositor:
— Ele costumava dizer: “Minha vida é igual a filme de mocinho, eu só venci no final”. Aquele foi o momento de consagração, quando enfim Cartola pôde ter sua obra difundida, ter reconhecimento. Além disso, o LP saiu por um selo alternativo e despertou o interesse de uma gravadora multinacional, a RCA. A mesma que, anos antes, não havia enxergado o valor daquela obra.
A verdade é que o álbum só deslanchou por causa de um encontro fortuito. Um dia, já desanimado, Pelão comentou com o jornalista Maurício Kubrusly sobre o disco. Na manhã seguinte, o então colunista do “Jornal da Tarde” (e hoje repórter da TV Globo) deu uma nota que dizia algo como “vem aí o melhor disco do ano: o primeiro LP de Cartola”. Assim que leu o jornal, Pereira autorizou o lançamento, para a sorte dos apaixonados pela Música Popular Brasileira.
Afinal, Cartola e Pelão arregimentaram uma verdadeira seleção brasileira para gravar o trabalho, como o genial violonista Dino Sete Cordas e Mestre Marçal, cuja cuíca fora criminosamente confundida por Pereira. Além disso, ele reuniu parcerias novas e antigas com bambas da mais alta patente. Aos 83 anos, Elton Medeiros relembra “O sol nascerá”, sua primeira parceria com Cartola:
— Quando o Cartola morava na Rua dos Andradas, eu costumava bater papo com ele até tarde da noite. Mas, até por uma questão de hierarquia, nunca iria pedir para fazermos uma música juntos. Afinal, quando eu nasci ele já era um compositor consagrado! Até que um dia, enquanto conversávamos, ele disse: “Vamos fazer uma música?”. Então, começou a dedilhar o violão e cantar “A sorrir eu pretendo levar a vida”. Senti que aquilo era forte. Terminamos tudo naquela hora, e, quando saí de lá, já cantarolava “O sol nascerá”. Essa música foi gravada primeiro no disco da Nara Leão (de 1964) e dez anos depois entrou também no disco dele.
Assim como o refrão de “O sol nascerá”, que tem o tristíssimo verso “Pois chorando eu vi a mocidade perdida”, o LP é repleto de letras em que Cartola expressa melancolia. Lamentos como “Quem me vê sorrindo pensa que estou alegre/ O meu sorriso é por consolação/ Porque sei conter para ninguém ver/ O pranto do meu coração”, em “Quem me vê sorrindo”, ajudam a explicar um pouco o compositor que, apesar de genial, só foi reconhecido plenamente na velhice.
— Depois do sucesso, ele ficou ressabiado. Ele passou a ser procurado por gente que, no passado, ignorava seu trabalho. Por isso, ele segurava suas composições e guardava para os intérpretes com quem ele tinha uma relação mais longa. Cartola era muito pé no chão e não se rendia fácil a qualquer elogio — explica Denílson Moreira.
Fonte: Portal Áfricas
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