sábado, 5 de julho de 2014

Te Contei, não ? - Um pouco sobre a obra de Gil Vicente

A Farsa de Inês Pereira é considerada a mais complexa peça de
Gil Vicente. Gil Vicente havia sido acusado de plagiar obras do teatro espanhol de Juan del Encina. Em vista disso, pediu para que aqueles que o acusavam dessem um tema para que ele pudesse, sobre ele, escrever uma peça. 


Deram-lhe o seguinte ditado popular como tema: Mais vale asno que me leve que cavalo que me derrube. No auge de sua carreira dramática, sobre este tema, Gil Vicente criou A Farsa de Inês Pereira, respondendo assim àqueles que o acusavam de plágio. A peça foi apresentada pela primeira vez para o rei D. João III, em 1523. Ao apresentá-la, o teatrólogo português diz: "A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, na era do Senhor 1523. O seu argumento é que, porquanto duvidavam certos homens de bom saber, se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se as furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse: é um exemplo comum que dizem: Mais vale asno que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa." A Farsa de Inês Pereira é também considerada a peça mais divertida e humanista de Gil Vicente. O aspecto humanístico da obra vê-se pelo fato de que a protagonista trai o marido e não recebe por isso nenhuma punição ou censura, diferentemente de personagens de O Auto da Barca do Inferno e O Velho da Horta, que são castigadas por fatos moralmente parecidos. É uma comédia de caráter e de costumes, que retrata a vida doméstica e envolve tipos psicologicamente bem definidos. A protagonista, Inês Pereira, é uma típica rapariga, leviana, ociosa, namoradeira, que passa o tempo todo diante do espelho, a se enfeitar, tendo em vista um casamento nobre. Por meio dessa personagem, Gil Vicente critica as jovens burguesas, ambiciosas e insensatas. Criticas também na figura de Brás da Mata, o falso escudeiro, tirano e ambicioso, malandro, galanteador, bem-falante e bom cantante, superficial e covarde. As alcoviteiras, alvo freqüente da sátira de Gil Vicente, têm na fofoqueira Lianor Vaz mais um tipo inesquecível da galeria gilvicentina. A classe sacerdotal também é satirizada. Os judeus casamenteiros, Latão e Vidal, aparecem com seu linguajar e atitudes característicos. Gil Vicente esmera-se em compor o contraste entre Pero Marques, o primeiro pretendente, camponês rústico, provinciano, meio bobo, mas honesto e com boas intenções, e Inês Pereira, calculista, frívola e ambiciosa - uma rapariga fútil e insensata, a quem a experiência acabou ensinando a sua lição de vida. Acreditando que a atitude da protagonista – expressa, inclusive, a partir de seu discurso - simboliza os valores de um mundo em transição, propiciando uma reflexão acerca das mentalidades medieval e pré-renascentista, nosso estudo propõe uma análise do auto em questão à luz dessa transição, em seus aspectos histórico, social e lingüístico, no olhar desse escritor situado entre dois mundos, sobretudo no que se refere ao papel da mulher. Estrutura da obra A Farsa de Inês Pereira é composta de três partes:
1. Inês fantasiosa - mostra Inês, seus desejos e ambições, e o momento em que é apresentada pela alcoviteira a Pero Marques. Essa parte retrata o cotidiano da protagonista e a situação da mulher na sociedade da época, por meio das falas de Inês, da mãe e da alcoviteira Lianor Vaz. 2. Inês mal-maridada - mostra as agruras do primeiro casamento de Inês. Nessa parte, o autor aborda o comércio casamenteiro, por meio das figuras dos judeus comerciantes e do arranjo matrimonial-mercantil, e o despertar de Inês para a realidade, abandonando as fantasias alimentadas até então. 3. Inês quite e desforrada - a protagonista casa-se pela segunda vez e trai o marido com um antigo admirador. Experiente e vivida, aqui Inês tira todo o proveito possível da situação que vive. Foco narrativo Não há, do modo tradicional, um narrador; em geral, há rubricas, isto é, anotações à parte da narrativa que servem de orientação para os atores ou para o leitor. São elas que esclarecem, geralmente, as questões de vestimenta, cenário, tempo, posição das personagens etc. As peças de Gil Vicente não trazem rubricas muito específicas. Outra grande característica presente no gênero dramático é a predominância do discurso direto. Como as personagens são representadas concretamente, elas mesmas têm direito à fala, sendo o diálogo o meio usado para criar a trama narrativa. Uma vez que as personagens falam diretamente, Gil Vicente, muito habilmente, soube usar essa artimanha para garantir o humor. Na fala de cada uma encontramos marcas importantes na delimitação de suas características: a ingenuidade de Pero Marques, o descaso e a argúcia de Inês, a malandragem do Escudeiro e daí em diante. Gil Vicente seguiu a Medida Velha, característica da poesia medieval. Todas as falas foram compostas em verso redondilhos maiores, isto é, com sete sílabas poéticas, e sempre rimados. Tempo / Espaço / Ação O tempo representado na peça não é indicado. As cenas vão tendo seqüência não dando a idéia de tempo decorrido entre uma e outra. A única menção feita é do período passado desde que o Escudeiro foi à guerra até a chegada da notícia de sua morte: três meses, segundo o Moço. A maioria das cenas se passa num mesmo espaço especificado apenas como a casa de Inês. Todos os personagens acabam passando por ali. Em alguns momentos, os personagens vêm se preparando no caminho para a casa, como acontece com Pero Marques, o Escudeiro e o Moço. Mas de nenhum desses lugares há indicações cenográficas específicas como descrição do ambiente, iluminação etc. A mesma desatenção aparece com relação aos trajes dos personagens. Apenas Pero Marques tem sua roupa genericamente explicitada: “Aqui vem Pero Marques, vestido como filho de lavrador rico, com um gibão azul deitado ao ombro, com o capelo por diante”. Personagens Inês Pereira: jovem esperta que se aborrece com o trabalho doméstico. Deseja ter liberdade e se divertir. Sonha casar-se com um marido que queira também aproveitar a
vida. Principal personagem da peça. Moça bonita, solteira, pequena-burguesa. Seu cotidiano é enfadonho: passa os dias bordando, fiando, costurando. Sonha casar-se, vendo no casamento uma libertação dos trabalhos domésticos. Despreza o casamento com um homem simples, preferindo um marido de comportamento refinado. Idealiza-o como um fino cavalheiro que soubesse cantar e dançar. Contraria as recomendações maternas rejeitando Pero Marques e casando-se com Brás da Mata, frustra-se com a experiência e aprende que a vida pode ser boa ao lado de um humilde camponês. Inês deixa-se levar pelas aparências e ridiculariza Pero Marques despedindo-o de sua casa para receber Brás da Mata. Casa-se com ele, mas sua vida torna-se uma prisão, ela não pode sair e é constantemente vigiada por um moço. Inês sofre e chega a desejar a morte do marido. Ele morre covardemente na guerra e Inês casa-se com Pero Marques. Ele satisfaz todos os seus desejos e chega até a carregá-la nas costas para um encontro com um amante (sem saber, porém, que era para isso). Mãe de Inês: mulher de boa condição econômica, que sonha casar Inês com um homem de posses. É a típica dona de casa pequeno-burguesa e provinciana. Preocupada com a educação e o futuro da filha em idade de casar. Dá conselhos prudentes, inspirada por uma sabedoria popular imemorial. Chega a ser comovente em sua singela ternura pela filha, a quem presenteia com uma casa por ocasião das núpcias. Leonor Vaz: fofoqueira, encarregava-se normalmente em arranjar casamentos e encontros amorosos. É o esterótipo da comadre casamenteira que sabe seu ofício e dele se desincumbe com desenvoltura. Sabe valorizar seu produto com argumentos práticos de quem tem a experiência e o senso das coisas da vida. Pero Marques: primeiro pretendente de Inês rejeitado por ser grosseiro e simplório, apesar da boa condição financeira. Foi seu segundo marido. Camponês simples, não conhece os costumes das pessoas da cidade. É uma personagem ambígüa, ao mesmo tempo que é ridicularizado pela ingenuidade, é valorizado pela integridade de caráter. Fiel e dedicado, revela se um gentil e carinhoso marido. É tão simples que não sabe para que serve uma cadeira. É teimoso como um asno e diz que não se casará até que Inês o aceite um dia. Latão e Vidal: judeus casamenteiros, assim como Leonor. Os judeus casamenteiros são muito parecidos, têm as mesmas características, na verdade são o mesmo repartido em dois. São a caricatura do judeu hábil no comércio. Faladores, insinuantes, humildes, serviçais e maliciosos, são o estereótipo de que a literatura às vezes se serviu, como, por exemplo, no caso desta peça de Gil Vicente. Brás da Mata: escudeiro, índole má, primeiro marido de Inês. Interesseiro e dissimulado é a representação da esperteza das classes superiores. É um nobre empobrecido que não perde o orgulho e pretende aproveitar-se economicamente de Inês através do dote. Brás da Mata é um escudeiro, isto é, homem das armas que auxiliava os cavaleiros fidalgos. Na mudança do feudalismo para o capitalismo, a maioria permaneceu numa condição subalterna, procurando imitar a aristocracia. Moço: criado de Brás. Pobre coitado, explorado por um amo infame. Humilde, deixa-se explorar e acredita ingenuamente nas promessas do Escudeiro. Cumpre sua obrigação sem ver recompensa, mas é capaz de, em suas queixas, insinuar as farpas com que cutuca o
mau patrão. Ermitão: antigo pretendente de Inês e amante depois de seu casamento com Pero. É um falso monge que veste o hábito para conseguir realizar seu propósito de possuir Inês. Fernando e Luzia: amigos e vizinhos da mãe de Inês. 



Auto da Índia
O Auto da Índia (1509), de Gil Vicente, apresentado em Almada perante a rainha D. Leonor, é o primeiro texto teatral onde é representada uma intriga, uma história completa e atual. Se o tema do adultério é intemporal, as circunstâncias "deste" adultério são as da primeira década do século XVI, quando, por trás da glória e da fachada épica da expansão ultramarina, era já possível perceber as profundas alterações, nem todas positivas, que essa expansão estava provocando na sociedade portuguesa. A mesma idéia foi expressa sessenta anos mais tarde por Camões, no episódio do "Velho do Restelo". Há outros aspectos que distinguem este auto dos anteriores. Além de ser o primeiro a contar uma intriga, com princípio e fim, é também a primeira "farsa" escrita por Gil Vicente e a primeira das suas peças escrita maioritariamente em português. No Auto da Índia a única personagem a falar em castelhano é o "Castelhano", com o objetivo óbvio de conseguir o efeito de real. Por último, é também o primeiro auto a pôr em cena personagens femininas. ESTRUTURA INTERNA Por representar uma intriga com princípio e fim, é fácil identificar a sua estrutura tripartida. A ação mostra ao público o adultério da Ama, o que exige a ausência do Marido. Assim, a 1ª parte corresponde à fase de expectativa da Ama, relativamente à partida ou não do Marido, e à distensão que se segue à confirmação da saída da armada e que ela aproveita para confessar a sua pré-disposição ao adultério. Vai até ao verso 96. A 2ª parte é a fase do adultério. Sucessivamente, entram em cena os pretendentes, Castelhano e Lemos; o adultério consuma-se; a Ama revela, sem qualquer escrúpulo ou pudor, toda a sua leviandade, falsidade e imoralidade. A partir do verso 393 entramos na 3ª parte, que corresponde à chegada do Marido. Desaparecem as condições que propiciaram o adultério e a Ama leva ao auge a sua hipocrisia. Poderá parecer estranho que o crime da Ama fique impune, mas temos que reconhecer que o seu castigo destruiria o efeito cômico característico da farsa. Por outro lado, parece sensato pensar que o objetivo de Gil Vicente não era punir o adultério, mas sim preveni-lo. A mensagem implícita parece ser esta: o castigo do infrator (a Ama) não repara a falta (o adultério); o que interessa é eliminar as condições objetivas que propiciam a falta. ESPAÇO Toda a ação decorre num único espaço - a casa da Ama. Os elementos textuais, no entanto, permitem subdividi-lo em três: a câmara da Ama, onde decorre a maior parte da ação; a cozinha, onde se esconde o Lemos em determinado momento e que é referida no discurso outras vezes; e o quintal, onde o Castelhano aguarda, noite fora, autorização para entrar. Por razões de ordem técnica, facilmente compreensíveis, o espaço representado, numa peça de teatro, é sempre reduzido e neste caso é único. Gil Vicente não chegou a conhecer a estruturação das peças em atos distintos, que permitem a alternância de espaços
diferentes. Daí que tenha concebido a intriga de forma a poder decorrer contínua no mesmo espaço. Para compensar essa limitação, atribuiu à personagem da Moça, além de outras, a função de mensageira: é ela que vai ao exterior e de lá traz as notícias que modificam o desenrolar da ação. Naturalmente, o espaço aludido é bem mais vasto: estende-se à cidade, ao mar, à Índia, para onde o Marido se ausenta e de onde regressa no final da representação. TEMPO O tratamento do tempo, no Auto da Índia, constituía para Gil Vicente um problema difícil. O fato da ação decorrer de forma contínua num mesmo espaço sugere que os acontecimentos se sucedem ao longo de um período de cerca de vinte e quatro horas. O Marido ausenta-se de madrugada; logo a seguir o Castelhano visita a Ama; o Castelhano sai e, pouco depois, Lemos chega e fica para jantar e passar a noite; entretanto, o Castelhano regressa e aguarda no quintal, durante a noite, autorização para entrar até desistir e ir embora; no dia seguinte, de madrugada o Lemos vai embora e pouco depois o Marido regressa. No entanto, o tempo representado corresponde, não a um dia e uma noite, mas a um período de cerca de três anos. É o discurso das personagens, principalmente da Moça, que faz a marcação do decorrer do tempo e leva o público a rejeitar a duração de vinte e quatro horas. Logo de início somos informados que o Marido partiu para uma viagem marítima e deixou à mulher mantimentos para três anos: Leixou-lhe pera tres annos Trigo, azeite, mel e panos. A confirmação vem-nos pela boca da Ama, quando recebe Lemos e lhe diz que o marido se ausentou para a Índia (v. 238). Como na época a duração média de uma viagem de ida e volta à Índia era de dois e meio a três anos, desfaz-se de vez, na mente dos espectadores, a impressão de que o tempo representado se reduz, neste momento, a algumas horas. Numa fase mais avançada da representação é a Moça que vai marcando o decorrer do tempo e prenunciando o regresso do Marido, dizendo: (...) agora vai em dous annos Que eu fui lavar os panos Alem do chão d'Alcami; E logo partiu a armada (...) Tres annos ha Que partio Tristão da Cunha. PERSONAGENS Ama - É a personagem principal, a única que permanece em cena do início ao fim da representação. É em torna dela que gira toda a ação. Desse modo é fácil ao público (e ao leitor) perceber que o objetivo fundamental do autor é criticar o comportamento imoral das esposas na ausência dos maridos. No entanto, ao mandar o Marido para a Índia, Gil Vicente, implicitamente, introduz um segundo aspecto crítico: o efeito perverso que a expansão ultramarina produzia na ordem social e moral do país, facilitando a degradação moral do ambiente familiar.
A Ama apresenta-se como "moça e fermosa" e serve-se disso como justificação para o seu comportamento imoral: Est'era bem graciosa, Quem se ve moça e fermosa Esperar pola ira ma. Partem em Maio daqui, Quando o sangue novo atiça: Parece-te que é justiça? Revela-se uma mulher sensual e leviana, incapaz de controlar os seus desejos sexuais durante a ausência do marido. Essa licenciosidade leva-a a aceitar sem dificuldade o assédio dos dois namorados (Castelhano e Lemos); leva-a mesmo a estimular as propostas imorais dos dois: Vós querieis ficar cá? Agora he cedo ainda; Tornareis vós outra vinda, E tudo bem se fará. Que foi do vosso passear, Com luar e sem luar, Toda a noite nesta rua? Mostra-se desde o início uma mulher falsa, mentirosa e hipócrita. Engana, não apenas o marido, mas os próprios amantes, escondendo a cada um deles a existência do outro. Colocando em cena, não um, mas dois amantes, o autor sublinha a licenciosidade e leviandade da Ama. E a sua hipocrisia é evidente: apesar do comportamento manifestamente imoral, procura por todos os meios preservar a imagem pública de uma mulher honesta e virtuosa: Foi-se à India meu marido, E depois homem nacido Não veio onde vós cuidais; A vezinhança que dirá, Se meu marido aqui não'stá, E vos ouvirem cantar? Essa hipocrisia torna-se ainda mais evidente com o regresso do marido. Nessa altura garante-lhe que sofreu muito a sua ausência, que rezou pela sua segurança e permaneceu esses três anos recatadamente em casa, aguardando o seu regresso. Vai ao ponto de manifestar ciúme pelas presumíveis aventuras amorosas do marido na Índia. A imagem que ela procura transmitir para o exterior, para o marido e para os próprios amantes contrasta com o seu efetivo comportamento. Só nos monólogos e nos diálogos com a Moça é que ela revela sem disfarce a sua verdadeira maneira de ser. E é também uma mulher extremamente manhosa e habilidosa. Consegue esconder o seu comportamento leviano do marido, mas, de certo modo, também dos amantes. Quando o
Castelhano a procura e ela está com o Lemos em casa, consegue esconder a existência de cada um deles do outro. Através da personagem Ama, Gil Vicente traça um retrato realista de um determinado tipo de mulher, bem diferente da imagem feminina, profundamente idealizada, que nos é transmitida pela poesia lírica da época. A Ama representa todas aquelas mulheres que, abandonadas pelos maridos empenhados na aventura ultramarina, se mostravam incapazes de resistir ao assédio dos pretendentes, incorrendo em adultério. Nesse sentido, materializa também um dos aspectos negativos da expansão. Moça - Como personagem-tipo, representa os dependentes domésticos, obrigados a submeter-se aos caprichos e maus tratos dos patrões, que reagem a essa situação ironicamente, observando e criticando os comportamentos incorrectos dos seus senhores. Mas esta personagem tem, na economia do auto, um estatuto especial. Por um lado, é uma personagem, ao mesmo nível das outras, na medida em que intervém no desenrolar dos acontecimentos. Assume então o papel de confidente e amiga. A sua presença permite à Ama revelar o seu verdadeiro caráter, que ela esconde, quer do marido, quer dos amantes. É em conversa com ela que a Ama manifesta o seu desagrado pela hipótese de o marido, afinal, não partir; o desejo de que ele não regresse da Índia; as suas infidelidades anteriores, bem como a sua intenção de o trair enquanto estiver na Índia. Como amiga, mostra preocupação com o seu estado de espírito, quando, na primeira cena, a encontra desolada; procura tranquilizá-la, apressando-se a saber se o Marido, afinal, parte ou não parte; atreve-se mesmo a aconselhá-la, alertando-a para a fanfarronice e o caráter pouco recomendável do Castelhano: Jesu! Como he rebolão! Dae, dae ó demo o ladrão. (...) Não vos fieis vós naquelle, Porque aquillo he refião. Mas ela coloca-se também no papel de espectadora. Observa os comportamentos da Ama, diverte-se com eles e julga-os severamente. Essa crítica é feita quase sempre em apartes. Desmente as acusações feitas pela Ama ao marido: Todas ficassem assi. Leixou-lhe pera tres annos Trigo, azeite, mel e panos. Condena o seu comportamento devasso, a sua manha e hipocrisia: Quantas artes, quantas manhas, Que sabe fazer minha ama! Hum na rua, outro na cama! Manifesta satisfação, com um certo sabor de vingança pelas humilhações sofridas, quando o regresso do Marido põe termo aos arranjos da Ama:
Raivar, que este he outro jôgo. Quando interrogada pela Ama sobre os seus apartes, responde-lhe ironicamente, declarando em voz alta o contrário do que transmitira ao público, o que produz um imediato efeito cômico. A par disso tudo, funciona como intermediária entre o interior e o exterior. É ela que sai, logo no início, para confirmar a partida do marido. É ela, igualmente, que traz da rua a notícia do seu regresso. Com a ação concentrada num espaço único e limitado (a câmara, a cozinha e o quintal da casa da Ama) era necessária uma personagem que funcionasse como mensageira e introduzisse no diálogo as notícias que suscitam alterações dramáticas no desenrolar da intriga. Além disso, como já foi referido, é a ela que o autor atribui a função de marcar o decorrer do tempo representado: primeiro, prenunciando a duração de três anos; mais tarde, anunciando efetivamente o decorrer do tempo (dois anos..., três anos...). É uma mulher de idade indefinida; subserviente, por necessidade; fiel à sua ama, que nunca denuncia; perspicaz e atenta aos comportamentos da sua senhora; sensata, pois não se deixa iludir pelo aparato e as falas pomposas do Lemos e do Castelhano; crítica, é a única personagem que mostra ser capaz de distinguir claramente o certo do errado. Castelhano - É uma personagem de origem social humilde, provavelmente um vendedor ambulante (é certamente a ele que a Ama se refere, quando fala no "castelhano vinagreiro"). Oportunista, procura imediatamente seduzir a Ama, assim que se apercebe da ausência do marido. Utiliza como estratégia de sedução a lisonja e um discurso empolado, retórico, excessivo e inadequado ao seu estatuto humilde. Ao mesmo tempo revela-se um fanfarrão, exagerando a sua valentia. O excesso, quer do discurso, quer da fanfarronice, tornam-no ridículo, perante o público e perante a Ama. A imagem de homem culto, civilizado, que procura transmitir com a sua pomposa declaração (culto da aparência), é desfeita na sua segunda intervenção, ao reagir com grande violência verbal, quando se sente rejeitado pela Ama, impossibilitada de o receber, devido à presença de Lemos. O modo como se veste revela a sua origem humilde, que ele procura disfarçar, insinuando ser homem de posses, apesar do aspecto que apresenta. Através dele (e de Lemos, como veremos), Gil Vicente aproveita para introduzir um outro tópico de crítica - o culto das aparências, típico duma sociedade onde os bens materiais são já o valor dominante: Que aunque tal capa me veis, Tengo mas que pensareis: Y no lo tomeis en grueso. Embora não se sinta nada impressionada com a apresentação espalhafatosa do castelhano, a Ama aceita-lhe a corte e marca-lhe um encontro amoroso, o que serve para acentuar o seu caráter leviano. Lemos - Lemos, tal como o Castelhano, é introduzido na peça para caracterizar a Ama como uma mulher leviana e adúltera. Trata-se de um escudeiro pobre, que procura esconder a decadência, com modos delicados e um discurso galanteador. Também ele documenta o culto das aparências, com mais
sucesso do que o Castelhano, visto que o estatuto social superior e as suas maneiras delicadas seduzem a Ama e levam-na a preferi-lo ao Castelhano. Ostenta um desafogo material que não engana a Moça, quando presunçosamente a manda fazer compras, pois de imediato rejeita os alimentos caros e dá-lhe muito pouco dinheiro para as despesas. Vá esta moça à ribeira E traga-a ca toda inteira, Que toda s'ha de gastar. Também ele procura (e consegue) aproveitar-se da ausência do Marido para obter os favores sexuais da Ama, que, aliás, mostra ter percebido há muito a corte distante de Lemos. Marido - O Marido está fisicamente ausente, ao longo da maior parte da representação; só no final entra em cena, encerrando desse modo o conflito dramático. De fato, a sua ausência é condição essencial para que a intriga se desenvolva no sentido pretendido pelo autor: é ela que cria as condições necessárias para que a leviandade da Ama se transforme em adultério, o que, provavelmente, já acontecera antes: Hi se vai elle a pescar Meia legoa polo mar, Isto bem o sabes tu; No contexto, a expressão "Isto bem o sabes tu" perde toda a ambiguidade e fica claro que significa "bem sabes que lhe sou infiel". Podemos talvez falar de uma "ausência-presença", já que a sua existência condiciona o desenrolar da ação: é o seu afastamento que permite os avanços amorosos do Castelhano e do Lemos e o adultério da Ama, do mesmo modo que o seu regresso põe fim (ao menos por algum tempo) a essa situação. Representa todos aqueles portugueses com experiência marítima, pescadores ou marinheiros, que se alistavam nas armadas para a Índia, na mira de um enriquecimento fácil, impossível no Reino. A Índia constituía na época uma miragem, um mundo de riquezas, aparentemente ao alcance de quem tivesse coragem para enfrentar os riscos e desconfortos da viagem. Na mira do lucro fácil dispunham-se a correr todos os riscos: viagens demoradas e perigosas; doenças fatais; tempestades; climas estranhos e doentios; combates com os habitantes locais. Para os que conseguiam regressar, quase sempre o lucro era reduzido. A própria personagem o reconhece, dizendo Se não fôra o capitão, Eu trouxera, a meu quinhão, Hum milhão vos certifico. Daí que muitos entendessem que não se justificava o sacrifício de ir procurar tão longe um lucro improvável. De certo modo o Castelhano exprime essa ideia ao dizer Que mas India que vos, Que mas piedras preciosas,
Que mas alindadas cosas, Que estardes juntos los dos? Esse desejo insensato de enriquecer rapidamente tem consequências. Com o seu chefe afastado, algumas famílias passam necessidades. Não foi isso que aconteceu com a Ama, mas a sua acusação, embora mentirosa, alerta-nos para uma realidade que deveria ser muito frequente: Leixou-me aquelle fastio Sem ceitil. Mas todas elas ficavam afectivamente desamparadas: famílias sem pais e sem maridos, sujeitas aos assédios dos oportunistas. Nessas condições o adultério era sempre possível e muitas vezes concretizava-se. A personagem-tipo do Marido representa portanto todos os maridos enganados pelas esposas, que, na sua ingenuidade, aceitam como boas todas as manifestações de amor e fidelidade das respectivas consortes. Pode então dizer-se que esta personagem condensa os aspectos negativos da expansão portuguesa. CÔMICO Sendo Auto da Índia uma farsa, um dos objetivos do autor era divertir o seu público, recorrendo para isso ao cômico. Tal como em muitas outras peças de Gil Vicente, é possível encontrar aqui três tipos de cômico. O cômico de linguagem resulta da exploração de certas virtualidades da língua; aquilo que se diz e o modo como se diz suscita o riso no espectador. No Auto da Índia está presente ao longo de todo o texto, por exemplo, em algumas expressões insultuosas dirigidas pela Ama à Moça, mas sobretudo na fala do Castelhano, pomposa, exagerada, cheias de expressões de cunho literário, que, por inadequadas às personagens e à situação, provocam o riso na Ama e no público. O cômico de caráter resulta da própria maneira de ser e de se comportar de determinadas personagens. O Castelhano, pelo seu exagero, pela sua fanfarronice, pelo contraste entre aquilo que diz e aquilo que é constitui um bom exemplo desse tipo de cômico. Também o Marido, pelo modo ingênuo como aceita todas as declarações da Ama, exemplifica este tipo de cômico. Na personagem de Lemos é possível igualmente encontrar o cômico de caráter, ao apresentar-se com um chapéu ("sombrero") excessivamente grande e ao ter que revelar a sua sovinice perante o hábil interrogatório da Moça. A própria Ama, pela hipocrisia com que fala ao Marido e finge ciúmes, documente também este tipo de cômico. O cômico de situação surge quando, no decorrer da representação, uma personagem é colocada numa posição ridícula. É o que acontece com o Castelhano, obrigado a aguardar no quintal, ao frio, durante a noite, autorização para entrar em casa da Ama. O mesmo acontece, quando Lemos é constrangido a esconder-se na cozinha para que a Ama possa tranquilamente falar com o Castelhano. Por outro lado, Gil Vicente lança mão de determinados recursos para obter efeitos cômicos. Consegue-o pela ironia, sobretudo nas falas da Moça, ao fazê-la dizer em voz alta à Ama o contrário do que tinha declarado no aparte anterior. Recorre igualmente à caricatura, que consiste em exagerar um ou mais traços específicos de uma dada personagem, como acontece no caso do Castelhano. Por fim lança mão da sátira, isto é, da crítica divertida dos
comportamentos humanos. CRÍTICA SOCIAL Conforme já vimos, com esta farsa Gil Vicente procura criticar situações e comportamentos sociais. Quais são eles? - Degradação moral da família, traduzida no adultério, facilitado pela ausência prolongada dos maridos envolvidos na aventura colonial. - Motivações egoístas e interesseiras da expansão ultramarina. - Materialismo da sociedade, traduzido na busca de um enriquecimento rápido. - Culto das aparências, com as pessoas procurando ostentar uma posição e uma riqueza que, de fato, não possuem - caráter documental e atualidade do auto. O valor documental deste auto é inegável e resulta evidente das anotações anteriores. Cada uma das personagens representa um tipo social, com seu comportamento próprio e seus defeitos, que são habilmente ridicularizados. O texto permite-nos apreender a outra face da gesta dos Descobrimentos, a face menos heróica, mais prosaica, expondo as verdadeiras motivações materialistas dos agentes da expansão e os efeitos perversos que ela tinha sobre a estrutura familiar e social. Nesse aspecto podemos considerá-la como o contraponto de Os Lusíadas. Por outro lado, há no texto aspectos intemporais que lhe concedem uma inegável atualidade. Descontados os aspectos circunstanciais, as críticas de Gil Vicente são perfeitamente atuais: é atual a infidelidade no casamento, a falta de respeito pelos compromissos assumidos; é atual o materialismo desenfreado, a hipervalorização dos bens materiais em detrimento de valores mais nobres; atual é também a crítica da ostentação, do culto das aparências. Fonte parcial: Aprender Português (Net Cabo, Portugal)
Auto da Barca do Inferno
Escrita em 1517, durante a transição entre Idade Média e Renascimento, o Auto da Barca do Inferno, é uma das obras mais representativas do teatro vicentino. Como em tantas outras peças, nesta o autor aproveita a temática religiosa como pretexto para a crítica de costumes. É uma das peças mais famosas do dramaturgo. Segundo a edição original, foi composto para contemplação da sereníssima e muito católica rainha Lianor, nossa senhora, e representado por seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei Manuel, primeiro de Portugal deste nome. Gil Vicente, ao apresentar seu Auto da Barca do Inferno, utiliza a expressão "auto de moralidade", com a qual os historiadores da literatura designam algumas produções do final da Idade Média em que os personagens (alegóricos) personificam exclusiva ou predominantemente idéias abstratas dispostas entre o Bem e o Mal. Pouco tempo antes, a palavra francesa moralité era empregada para designar obras poéticas de caráter didático-moral, tal como, a nosso ver, o termo deve ser entendido na obra. Em seguida, o escritor julga necessário declarar o argumento utilizado para compor a
trama. As almas, após se libertarem de seus corpos terrestres, dirigem-se a um braço de mar onde dois barcos as esperam: um deles, conduzido por um Anjo, levará as almas ao Paraíso e outro, tripulado pelo Diabo e seu Companheiro, dirige-se ao Inferno. E de se supor que o porto em que estão as barcas seja o Purgatório. Primeira das três "barcas" escritas por Gil Vicente, a do Inferno tem como personagens almas de representantes das variadas classes sociais e de algumas atividades diversas, além de quatro cavaleiros cruzados. Cada personagem é julgada e condenada ao seu destino, embarcando em companhia do Diabo ou do Anjo. Foi escrita em versos rimados, fundindo poesia e teatro, fazendo com que o texto, cheio de ironia, trocadilhos, metáforas e ritmo, fluísse naturalmente. Faz parte da trilogia dos Autos da Barca (do Inferno, do Purgatório, do Céu). Temática Sátira social - Esta obra tem dado margem a leituras muito resumidas, que grosseiramente nela só vêem uma farsa. Mas se Gil Vicente fez a análise impiedosa das "doenças" que corroíam a sociedade em que viveu, não foi para ficar por aí, como nas farsas, mas para propor um caminho decidido de transformação. Esta obra é normalmente classificada como "auto de moralidade", mas muitas vezes aproximando-se da farsa. Esta obra retrata um pouco do que era a sociedade portuguesa do século XVI, e apesar de este auto se designar como o Auto da Barca do Inferno, este é mais o auto do julgamento das almas. Talvez tenha este nome pois quase todas as personagens têm como destino a Barca do Inferno. Na peça, é clara a inteção do autor em expor de forma satírica e despojada os grandes vícios humanos. A forma encontrada para isso reside nos personagens, ou melhor, nas almas que se apresentam no porto em busca do transporte para o outro lado, dentro da visão católica e platônica de céu e inferno. Ela proporciona uma amostra do que era a sociedade lisboeta das décadas iniciais do século XVI, embora alguns dos assuntos discorridos sejam pertinentes à atualidade. Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, é um auto onde o barqueiro do inferno e o do céu esperam à margem os condenados e os agraciados. Os que morrem chegam e são acusados pelo Diabo e pelo Anjo, mas apenas o Anjo absolve. Estilo Obra escrita em versos heptassílabos, em tom coloquial e com intenção marcadamente doutrinária, fundindo em algumas passagens o português, o latim e o espanhol. Cada personagem apresenta, através da fala, traços que denunciam sua condição social. Estrutura Como já citado, a peça se caracteriza como um auto, designação genérica para peças cuja finalidade é tanto divertir quanto instruir; seus temas, podendo ser religiosos ou profanos, sérios ou cômicos, devem, no entanto, guardar um profundo sentimento moralizador. O auto não tem uma estrutura definida, não estando dividido em atos ou cenas, é uma peça teatral em um único ato, subdividido em cenas marcadas pelos diálogos que o Anjo ou o Diabo travam com os personagens.
Cenário Um ancoradouro, no qual estão atracadas duas barcas. Todos os mortos, necessariamente, têm de passar por esta paragem, sendo julgados e condenados ou à barca da Glória ou à barca do Inferno. A peça tem seu início quando as almas chegam subitamente a um rio (ou braço de mar) que, forçosamente, todos os mortos terão de atravessar, não sem antes sofrerem um julgamento. Ao que tudo indica, o cenário da peça era rudimentar, possivelmente um salão (quarto) e alguns poucos móveis e panos. A mímica tem lugar de destaque, servindo de marcação e de direcionamento da ação. Personagens Diabo: condutor das almas ao Inferno, conhece muito bem cada um dos personagens que lhe cai às mãos; é zombeteiro, irônico e bom argumentador. Gil Vicente não pinta o Diabo como responsável pelos fracassos e males humanos; o Diabo é um juiz, que exibe às claras o lado mais recôndito dos personagens, penetrando nas consciências humamas e revelando o que cada um deles procura esconder. Fidalgo: representa a nobreza, e chega com um pajem, tem uma roupagem exagerada e uma cadeira de espaldar, elementos característicos de seu status social. O diabo alega que o Fidalgo o acompanhará por ter tido uma vida de luxúria e de pecados, sendo portanto, condenado pela vida pecaminosa, em que a luxúria, a tirania e a falta de modéstia pesam como graves defeitos. Ao Fidalgo, nada lhe valem as compras de indulgências, ou orações encomendadas. A figura do Fidalgo, arrogante e orgulhoso, permite a crítica vicentina à nobreza, e é centrada nos dois principais defeitos humanos: o orgulho e a prática da tirania. Onzeneiro: o segundo personagem a ser inquirido é o Onzeneiro, usurário que ao chegar à barca do Diabo descobre que seu rico dinheiro ficara em terra. Utilizando o pretexto de ir buscar o dinheiro, tenta convencer o Diabo a deixá-lo retornar, demonstrando seu apreço às coisas mundanas. O Diabo não aceita que o Onzeneiro volte à terra para reaver suas riquezas, condenando-o ao fogo do Inferno. Parvo: um dos poucos a não ser condenado ao Inferno. O Parvo chega desprovido de tudo, é simples, sem malícia e consegue driblar o Diabo, e até injuriá-lo. É uma alma pura, cujos valores são legítimos e sinceros. Ao passar pela barca do Anjo, diz ser ninguém. Então, por sua humildade e por seus verdadeiros valores, é conduzido ao Paraíso. Em várias passagens da peça, o Parvo ironiza a pretensão de outros personagens, que se querem passar por "inocentes" diante do Diabo. Sapateiro: representante dos mestres de ofício, que chega à embarcação do Diabo carregando seu instrumento de trabalho, o avental e as formas. É um desonesto explorador do povo. Habituado a ludibriar os homens, procura enganar o Diabo, que espertamente não se deixa levar por seus artifícios e o condena. Frade: como todos os representantes do clero, focalizados por Gil Vicente, o Frade é alegre, cantante, bom dançarino e mau-caráter. Chega acompanhado de sua amante, e acredita que por ter rezado e estar a serviço da fé, deveria ser perdoado de seus pecados
mundanos. Dá uma lição de esgrima ao Diabo (que finge não saber manejar uma arma), o que prova a culpa do espadachim, já que frades não lidam com armas. E contra suas expectativas, é condenado ao fogo do inferno. Deve-se dosar que Gil Vicente desfecha ardorosa crítica ao clero, acreditando-o incapaz de pregar as três coisas mais simples: a paz, a verdade e a fé. Brísida Vaz: agenciadora de meretrizes, misto de alcoviteira e feiticeira. Por sua devassidão e falta de escrúpulos, é condenada. É conhecida de outros personagens que utilizaram em vida seus serviços. Inescrupulosa, traiçoeira, cheia de ardis, não consegue fugir à condenação. Personagem que faz o público leitor conhecer a qualidade moral de outros personagens que com ela se relacionaram. Judeu: entra acompanhado de seu bode. Detestado por todos, até mesmo pelo Diabo que quase se recusa a levá-lo, é igualmente condenado, inclusive por não seguir os preceitos religiosos da fé cristã. Bom lembrar que, durante o reinado de D. Manuel, houve uma perseguição aos judeus visando à sua expulsão do território português; alguns se foram, carregando grandes fortunas; outros, converteram-se ao cristianismo, sendo tachados cristãos novos. Corregedor e o Procurador: ambos representantes do judiciário: juiz e advogado. Deveriam ser exemplos de bom comportamento e acabaram sendo condenados justamente por serem tão imorais quanto os mais imorais dos mortais, manipulando a justiça de acordo com as propinas recebidas, pois faziam da lei sua fonte de recursos ilícitos e de manipulação de sentenças. A índole moralizadora do teatro vicentino fica bastante patente com mais essa condenação, envolvendo a Justiça humana, na figura dos representantes do Direito. Enforcado: chega ao batel acreditando ter o perdão garantido por seu julgamento terreno e posterior condenação à morte. Isso teriam lhe redimido dos pecados, mas é condenado também a ir para o Inferno. Cavaleiros Cruzados: finalmente chegam à barca quatro cavaleiros cruzados, que lutam pelo triunfo da fé cristã e morrem em poder dos mouros. Obviamente, com uma ficha impecável, serão todos julgados, perdoados e conduzidos à Barca da Glória. Cada um dos personagens focalizados adentram a morte com seus instrumentos terrenos, são venais, inconscientes e por causa de seus pecados não atingem a Glória, a salvação eterna. Destaque deve ser feito à figura do Diabo, personagem vigorosa que, como vimos, conhece a arte de persuadir, é ágil no ataque, zomba, retruca, argumenta e penetra nas consciências humanas. Ao Diabo cabe denunciar os vícios e as fraquezas, sendo o personagem mais importante na crítica que Gil Vicente tece de sua época. Surgem ao longo do auto três tipos de cômico, o de caráter, o de situação e o de linguagem. O cômico de caráter é aquele que é demonstrado pela personalidade da personagem Parvo, que devido à sua pobreza de espírito não mede suas palavras, não podendo ser responsabilizado pelos seus erros. O cômico de situação é o criado à volta de certa situação, como o Fidalgo, em que é zombado pelo Diabo, e o seu orgulho pisado. Por fim, o cômico de linguagem é aquele que é proferido por certa personagem, como as falas do Diabo. Análise do personagem "Diabo" (por Saiane Marin, aluna do curso de Licenciatura em Letras Português-Inglês da UTFPR,Campus Pato Branco)
Ao ler Auto da Barca do Inferno, nota-se a importância do papel do personagem Diabo, criado por Gil Vicente em seu mais conhecido auto. De acordo com o autor é um “auto da moralidade”, sua intenção era exemplificar como se dava o comportamento de algumas pessoas que trabalhavam em determinados setores da época (décadas iniciais do século XVI), sendo assim, todos os personagens da obra são alegóricos e de narração dramática. No auto, o autor faz o Diabo – sujeito/protagonista – parecer-se com um vendedor, ou seja, ele conhece bem as pessoas e é um ótimo argumentador, e busca obter o maior número de objetos, ou seja, de almas. Porém, como o próprio nome da personagem já diz, para enfatizar os mitos, o Diabo age como zombeteiro e irônico em certos momentos da peça, exibindo o lado mais errado dos personagens e revelando o que cada um deles deseja esconder, seus vícios e suas fraquezas. Como competência, ele tem o poder de retrucar, argumentar e penetrar nas consciências humanas, e como performance acaba por levar cada personagem ao ato de refletir sobre seus feitos, para que percebam que não foram bons em vida, destacando assim o Teocentrismo medieval. Nesse momento, o diabo age como um terapeuta espiritual, mesmo sabendo que os personagens tentarão entrar na barca com o Anjo – seu oponente. Como sanção de sua competência, o Diabo consegue encher sua barca e segue em direção ao inferno. Enredo A peça inicia-se num porto imaginário, onde se encontram as duas barcas, a Barca do Inferno, cuja tripulação é o Diabo e o seu Companheiro, e a Barca da Glória, tendo como tripulação um Anjo na proa. A obra apresenta um conjunto de personagens, as almas dos mortos, que, após o traspasse, deparam-se com um braço de mar onde barcas as aguardam. O primeiro a embarcar é um Fidalgo, que chega acompanhado de um Pajem, que leva a calda da roupa do Fidalgo e também uma cadeira, para seu encosto. O Diabo mal viu o Fidalgo e já lhe falou para entrar em sua barca, pois ele iria levar mais almas e mostrar que era bom navegante. Antes disso, o companheiro do Diabo, começou a preparar a barca para que as almas dos que viessem, pudessem entrar. Quando tudo estava pronto, o Fidalgo dirigiu a palavra ao Diabo, perguntando para onde aquela barca iria. O Diabo respondeu que iria para o Inferno, então o Fidalgo resolveu ser sarcástico e falou que as roupas do Diabo pareciam de uma mulher e que sua barca era horrível. O Diabo não gostou da provocação e disse que aquela barca com certeza era ideal para ele, devido a sua impertinência. O Fidalgo espantado, diz ao Diabo que tem quem reze por ele, mas acaba recebendo a notícia de que seu pai também havia embarcado rumo ao Inferno. O Fidalgo tenta achar outra barca, que não siga ao Inferno, então resolve dirigir-se a barca do céu. Ele resolve perguntar ao Anjo, aonde sua barca iria e se ele poderia embarcar nela, mas é impedido de entrar, devido a sua tirania, pois o Anjo disse que aquela barca era muito pequena para ele, não teria espaço para o seu mau caráter. O Diabo começa a fazer propaganda de sua barca, dizendo que ela era a ideal, a melhor. Assim, O Fidalgo desconsolado, resolve embarcar na barca para o Inferno. Mas antes, o Fidalgo queria tornar a ver sua amada, pois ele disse que ela se mataria por ele, mas o Diabo falou que a mulher que ele tanto amava, estava apenas enganando-o, que tudo que ela lhe escrevia era mentira. E assim, o Diabo insistia cada vez mais para que o Fidalgo
esquecesse sua mulher e que embarcasse logo, pois ainda viria mais gente. O Diabo manda o Pajem, que estava junto com o Fidalgo, ir embora, pois ainda não era sua hora. Logo a seguir, veio um onzeneiro que questionou ao Diabo, para onde ele iria conduzir aquela barca. O Diabo querendo conduzi-lo à sua barca, perguntou por que ele tinha demorado tanto, e o Onzeneiro afirmou que havia sido devido ao dinheiro que ele queria ganhar, mas que foi por causa dele que ele havia morrido e que não sobrou nem um pouco para pagar ao barqueiro. O Onzeneiro não quis entrar na barca do Diabo, então resolveu dirigir-se à barca do céu. Chegando até a barca divina, ele pergunta ao Anjo se ele poderia embarcar, mas o Anjo afirmou que por ele, o Onzeneiro não entraria em sua barca, por ter roubado muito e por ser ganancioso. Então, negada a sua entrada na barca divina, o Onzeneiro acaba entrando na barca do Inferno. Mais uma alma se aproximou, desta vez era um Parvo, um homem tolo que perguntou se aquela barca era a barca dos tolos. O Diabo afirmou que era e que ele deveria entrar, mas o Parvo ficou reclamando que morreu na hora errada e o Diabo perguntou do que ele havia morrido, e o Parvo sendo muito sutil respondeu que havia sido de diarréia. O Parvo ao saber aonde aquela barca iria, começou a insultar o Diabo e foi tentar embarcar na barca divina. O Anjo falou que se ele quisesse, poderia entrar, pois ele não havia feito nada de mal em sua vida, mas disse para esperar para ver se tinha mais alguém que merecia entrar na barca divina. Vem um sapateiro com seu avental, carregando algumas fôrmas e chegando ao batel do inferno, chama o Diabo. Ele fica espantado com a maneira na qual o sapateiro vem carregado, cheio de pecados e de suas fôrmas. O sapateiro tenta enrolar o Diabo, dizendo que ali ele não entraria pois ele sempre se confessava, mas o Diabo joga toda a verdade na sua cara e o manda entrar logo em sua barca. O sapateiro tenta lhe dizer todas as feitorias que havia realizado, na tentativa de conseguir entrar no batel do céu, mas o Anjo lhe diz que a "carga" que ele trazia não entraria em sua barca e que o batel do Inferno era perfeito para ele. Vendo que nào conseguiu o que queria, o sapateiro se dirige à barca do Inferno e ordena que ela saia logo. Chegou um Frade, junto de uma moça, carregando em uma mão um pequeno escudo e uma espada, na outra mão, um capacete debaixo do capuz. Começou a cantarolar uma música e a dançar. Ele falou ao Diabo que era da corte, mas o próprio perguntou-lhe como ele sabia dançar o Tordião, já que era da corte. O Diabo perguntou se a moça que ele trazia era dele e se no convento não censuravam tal tipo de coisa. O Frade por sua vez diz que todos no convento são tão pecadores como ele e aproveitou para perguntar para onde aquela barca iria. Ao saber para onde iria, ficou inconformado e tentou entender porque ele teria que ir ao Inferno e não ao céu, já que era um frade. O Diabo lhe responde que foi devido ao seu comportamento durante a vida, por ter tido várias mulheres e por ter sido muito aventureiro. Assim, o Frade desafia o Diabo, mas este não faz nada e apenas observa o que o Frade faz. O Frade resolve puxar a moça para irem ao batel do Céu, mas lá se encontraram com o Parvo, que pergunta se ele havia roubado aquela espada que ele carregava. O Frade completamente arrasado, finalmente se convence que seu destino é o inferno, pois até
mesmo o Parvo zombou de sua vida e de seus pecados. Dirigiu-se a barca do Inferno, resolve embarcar junto com a moça que o acompanhava. Assim que o Frade embarcou, veio a alcoviteira Brísida Vaz, chamando o Diabo para saber em qual barca ela haveria de entrar. O companheiro do Diabo lhe disse que ela não entraria na barca sem Joana de Valdês. Ela foi relatando o que estava trazendo para a barca e afirmava que iria para o Paraíso, mas o Diabo dizia que sua barca era o seu lugar, que ela teria que ficar ali. Brísida vai implorar de joelhos ao Anjo, que esse a deixe entrar em sua barca, pois ela não queria arder no fogo do inferno, dizendo que tinha o mesmo mérito de um apóstolo para entrar em sua barca. O Anjo, já sem paciência, mandou-lhe que fosse embora e que não lhe importunasse mais. Triste por não poder ir para o Paraíso, Brísida vai caminhando em direção ao batel do Inferno e resolve entrar, já que era o único lugar para onde ela poderia ir. Logo após o embarque de Brísida Vaz, veio um Judeu, carregando um bode, na qual fazia parte dos rituais de sacrifício da religião hebraica. Chegando ao batel dos danados, chama o marinheiro, que por acaso era o Diabo; perguntando a quem pertencia aquela barca. O Diabo questiona se o bode também iria junto com o Judeu, esse por sua vez afirma que sim, mas o Diabo o impede pois ele não levava para o Inferno, os caprinos. O Judeu resolve pagar alguns tostões ao Diabo, para que ele permita a entrada do bode; disse que por meio do semifará ele seria pago. Vendo que não consegue, ele xinga o Diabo e roga-lhe várias pragas, apenas por não fazer a sua vontade. O Parvo, para zombar o Judeu, perguntou se ele havia roubado aquela cabra, e aproveitou para xingá-lo. Afirmou também que ele havia urinado na igreja de São Gião e que teria comido a carne da panela do Nosso Senhor. Vendo que o Judeu era uma péssima pessoa, o Diabo ordenou-lhe logo que entrasse em sua barca, para não perderem tanto tempo com uma discussão tola. Depois que o Judeu embarcou, veio um Corregedor, carregado de feitos, que quando chegou ao batel do Inferno, com sua vara na mão, chamou o barqueiro. O barqueiro ao vê-lo, fica feliz, pois esta seria mais uma alma que ele conduziria para o fogo ardente do Inferno. O Corregedor era um amante da boa mesa e sua carga era qualificada como "gentil", pois tratava-se de processos relativos a crimes, que era um conteúdo muito agradável para o Diabo. Ele era ideal para entrar na barca do Inferno, pois durante sua vida, ele era um juíz corrupto e que aceitava perdizes como suborno. O Diabo começa a falar em latim com o Corregedor, pois era usado pela Justiça e pela Igreja, além de ser a língua internacional da cultura. Ele ordena ao seu companheiro que este apronte logo a barca e que se prepare para remar rumo ao Inferno. Os dois começam a discutir em latim, pois o Corregedor por ser achar superior ao Diabo, pensa que só porque era um juíz prestigiado, não teria que entrar em sua barca. O Diabo vai perguntando sobre todas as suas falcatruas, até citando sua mulher no meio, que aceitava suborno dos judeus, mas o Corregedor garantiu que com isso ele não estava envolvido, que estes eram os lucros de sua mulher, e não dele. Enquanto o Corregedor estava nesta conversa com o Arrais do Inferno, chegou um
Procurador, carregando vários livros. Resolve falar com o Corregedor, espantado por encontrá-lo aí, questiona para onde ele iria, mas o Diabo responde pelo Corregedor e diz que iria para o Inferno, mas que também era bom ele ir entrando logo, para retirar a água que estava entrando na barca. O Corregedor e o Procurador não quiseram entrar na barca, pois eles tinham fé em Deus e também porque havia outra barca em melhores condições, que os conduziria para um lugar mais ameno. Quando chegam ao batel divino, o Anjo e o Parvo zombam de suas ações, que eles não tinham o direito de entrar ali, pois tudo que eles haviam feito de ruim, estava sendo pago agora, com a ida de suas almas para o Inferno. Desistindo de ir para o paraíso, os dois ao entrarem no batel dos condenados, encontram Brísida Vaz. Ela por sua vez, se sentiu aliviada por estarem ali, pois enquanto estava viva foi muito castigada pela Justiça. Veio um homem que morreu enforcado e ao chegar ao batel dos mal-aventurados, começou a conversar com o Diabo. Ele tentou explicar porque ele não iria no batel do Inferno, pois que ele havia sido perdoado por Deus ao ser condenado à forca e morrer, mas isso não passou de uma mentira, pois ele teria que morrer e arder no fogo do Inferno devido aos seus erros. Desistindo de tentar fugir de seu futuro, ele acaba obedecendo as ordens do Diabo para ajudar a empurrar a barca e remar, pois o horário da partida estava próximo. Depois disso, vieram quatro Cavaleiros cantando, cada um trazia a Cruz de Cristo, pelo Senhor e também para demonstrar a sua fé, pois eles haviam lutado em uma Cruzada contra os Mulçumanos, no norte da África. Absolvidos da culpa e pena, por privilégio dos que morreram em guerra, foram cantarolando felizes indo em direção ao batel do Céu. Ao passarem na frente do batel do Inferno, cantando, segurando suas espadas e escudos, o Diabo não resiste e pergunta-lhes porque não pararam para questionar para onde sua barca iria. Convidando-os para entrar, o Diabo recebe uma resposta não muito agradável de um dos Cavaleiros, pois esse disse que quem morresse por Jesus Cristo, não entraria em tal barca. Tornaram a prosseguir, cantarolando, em direção à barca da Glória, e quando chegaram nela, o Anjo os recebeu muito bem e disse que estava à espera deles por muito tempo

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