sábado, 19 de julho de 2014

Te Contei, não ? - O fim da ingenuidade

O fim da ingenuidade

Fichas do cárcere são exemplos extremos de como os filhos do “ventre livre” foram abandonados à própria sorte pela ausência de políticas públicas

Marilene Rosa Nogueira da Silva




“E de repente uma lei surgiu, que os filhos dos escravos não seriam mais escravos no Brasil”. Assim em 1968, nos tempos sombrios da ditadura militar, Nilton Russo, Zeca Melodia e Carlinhos da Madrugada cantaram a liberdade num dos refrãos mais famosos do carnaval carioca. No “Sublime Pergaminho”, samba-enredo que embalou a Unidos de Lucas, a lei monumento do abolicionismo transforma-se em alegoria. Mas em 28 de setembro de 1871, no encerramento da histórica sessão do Parlamento, flores são jogadas das galerias. Por 59 votos a favor e 39 contra estava aprovada a Lei do Ventre Livre.

Em carta ao Conde d’Eu, o Visconde do Rio Branco – presidente do Conselho de Ministros, político que sancionou a lei – relata que o representante diplomático dos Estados Unidos recolheu algumas daquelas flores para enviar ao seu país, para mostrar que fazemos sob chuva de pétalas o que lá tanto sangue custou. A princesa Isabel congratula-se com o Parlamento pelo que chama de “marco de uma nova era de progresso material e moral do Brasil”.

Nem tudo eram flores, porém. Por trás dessas belas imagens, quais foram as negociações para a aprovação daquele monumento do abolicionismo? Que efeito surtiu na sociedade? E, principalmente, quem seria o sujeito dessa história?

Do complexo jogo de interesses que mobilizou proprietários, políticos e advogados do Império, emerge a figura jurídica do “ingênuo” – o nascido de mãe escrava, que pela lei ganhava a liberdade. A proposta dogabinete conservador presidido por Rio Branco, discutida durante vários meses até ser formatada em dez artigos e incisos, espelha os medos dos senhores com a nova situação:

"Os filhos da mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei serão considerados de condição livre. §1º Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção, ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos (...) A indenização pecuniária acima fixada será paga em títulos de renda com o juro anual de 6%, os quais se considerarão extintos no fim de trinta anos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de trinta dias, a contar daquele em que o menor chegar à idade de oito anos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbítrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor."

O gabinete expede várias leis complementares, como a que destina parte do Fundo de Emancipação à educação dos ingênuos. Se era complicado gerir tal fundo, imagine criar e administrar cotas que estabelecessem um lugar para os ingênuos num sistema educacional excludente. Vigorava um decreto de 1854 proibindo a matrícula de meninos que padecessem de moléstias contagiosas, que não fossem vacinados e, principalmente, que fossem escravos.

Mais de dez anos depois de aprovada a Lei do Ventre Livre, o problema do acesso à educação ainda fragilizava a condição social dos ingênuos: “Não deve ser objeto de nossas reflexões a posição desses menores desprotegidos cujo número aumenta todos os dias, e que aí crescem sem educação intelectual, religiosa e profissional, entre pais escravos e a sociedade, que os declarou livres, a eles pobres órfãos, mas não os prepara para um dia ocuparem a posição que lhes compete, a esquecer a injúria que recebem na violência mantida contra aqueles que lhe deram o nascimento?”, discursou o conselheiro André Augusto de Pádua Fleury na Câmara, em 10 de maio de 1882.

Situação ainda mais grave diante da prática de reescravização: os ingênuos continuaram sendo vendidos, alugados, anunciados nos jornais da Corte em listas que expunham a mercadoria ilegal certificada por tabeliães públicos. Na Gazeta da Tarde de 24 de dezembro de 1882, dez ingênuos foram oferecidos a preços que iam de 10 mil réis por uma criança de 2 anos a 400 mil réis por um moleque de 9 anos. Noutra lista, o “riobranco” (como também se chamavam os filhosde ventre liberado) Luiz era avaliado por 5 mil réis.

Como fiscalizar o destino dos milhares de ingênuos em todo o país? Como impedir ilegalidades com menores que, agora tutelados, eram entregues a associações que deveriam prepará-los para o exercício de um ofício após completarem 21 anos de idade?

Alguns deles a vida levou até a Casa de Correção da Corte, inaugurada em 1850 e onde se instalou uma Detenção seis anos depois. Situado na Freguesia de Santo Antônio, atual bairro do Estácio, esse complexo dedicava-se a um esforço diário para classificar, definir e separar os presos por categorias. Entre elas, a dos ingênuos. Para estes deserdados, estar ali era uma peculiar forma de “inclusão” – encontrar-se no meio dos excluídos, no lugar da punição e correção dos africanos livres, dos menores desvalidos, dos considerados de má índole, das mulheres nocivas à sociedade. Para aqueles homens e mulheres considerados sem qualidades, a qualificação especial da prisão.

Nos livros de matrículas, as pessoas ordinárias, de vidas condensadas em algumas linhas e destinadas a desaparecer, ganharam a posteridade por obra involuntária do escrivão. As chamadas criaturinhas de cadeia, vidas breves nascidas após a lei de 28 de setembro de 1871, ainda sob a tutela dos senhores, foram conduzidas com suas mães para a Casa de Detenção. As fichas dos riobrancosretratam a incompletude daqueles que não tiveram tempo para aprender um ofício, nem mesmo para o crime. Uma espécie cruel de certidão de nascimento concedida pela burocracia em suas cerimônias institucionais de encarceramento. Eles recebiam um número de matrícula e uma data de entrada, sem registro de saída. Provavelmente não resistiam às condições precárias das instalações provisórias para onde eram enviados.Afinal, se não havia uma prisão feminina, o que dizer de uma prisão para as escravas com seus filhos? Anônimas das ruas da cidade ou saídas do interior dos sobrados, elas foram detidas e identificadas como lavadeiras, domésticas, cozinheiras, engomadeiras, solteiras. De diferentes idades, mas todas elas acusadas de desordens e desobediência ao senhor, presas por queixar-se, talvez de seus proprietários, por obscenidades e insultos morais, eram encaminhadas com ofício do fiscal de quarteirão, ou dos próprios senhores, para o chefe da Polícia.

Com seus quatro filhos, todos nomeados ingênuos, deu entrada em 9 de setembro de 1882 na detenção a escrava Deolinda, de propriedade de Antonio Augusto Cezar de Azevedo. Diz sua ficha que era natural de São Paulo, 33 anos, parda, solteira, engomadeira, vestindo saia de chita e paletó quando detida. O primeiro dos filhos contava então 13 anos, era natural de Araruama, copeiro, cor preta, cabelo carapinha, vestia calça de casimira de cor, camisa branca e paletó. A segunda do Rio de Janeiro, cor morena, 8 anos, solteira, cabelos carapinhos, saia de chita. O terceiro, 6 anos, pele morena, camisola de chita. Da última, com apenas dois meses, sabe-se que usava camisola de chita. Outras fichas, outros ingênuos, ao lado da sucinta descrição. Carlos, filho de Saturnina, detida em 2 de agosto de 1881, natural do Rio de Janeiro, idade aproximada 11 meses, cor preta, cabelos carapinhos, trajando camisola de chita. Catharina, idade aproximada de cinco meses, e Claudemira, de 5 anos, filhas da escrava Maria, deram entrada em 2 de março de 1882 sem o motivo da prisão. Francisca, filha da escrava Floriana, do Rio de Janeiro, idade aproximada de 2 anos, parda clara, cabelos lisos, trajando camisola de chita, presa em 9 de março de 1881. Manoel, pardo, filho da detenta Joaquina, também do Rio de Janeiro, idade aproximada de 10 meses, trajando camisola de chita. Nomes semelhantes, vestimentas semelhantes, a mesma condição jurídica, diferenciados pelo número de matrícula e pelo crime do ventre que o gerou.

O poder de punir colocou essas pessoas na prisão, sob a burocracia que garantiu que sua existência chegasse até nosso conhecimento. Louvados como beneficiários de uma lei libertadora, lá estavam os ingênuos, os riobrancos, os nascituros: transformados em prisioneiros pelos crimes de suas mães. Símbolos não da civilidade que os discursos do poder se esmeravam em anunciar, mas da barbárie que não se extinguiria pelo século seguinte e além.



Marilene Rosa Nogueira da Silva é professora de Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autora de Livro Negro na rua: a nova face da escravidão (Hucitec, 1988).



Saiba mais

CONRAD, Roberto. Os últimos anos da escravatura no Brasil. São Paulo: Civilização Brasileira, 1982.

MOURA, Clóvis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.

PENA, Eduardo Spiller. Pajens da Casa Imperial: Jurisconsultos, escravidão e a lei de 1871. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001.

SENADO FEDERAL. Abolição no Parlamento – 65 anos de lutas (1823-1888). Lei n. 2010. vol. 1, p. 486-491. Brasília: Senado Federal, 1988.

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